Como Centro de Fortaleza pode voltar a ser ‘lugar de morar’
Miolo do bairro não recebia lançamento de residencial há 17 anos.
As poucas casas que resistem no Centro de Fortaleza lembram ao presente uma marca que ficou no passado: a de um lugar para morar. Há 17 anos sem receber novos empreendimentos residenciais, o Centro deve ganhar um condomínio, no espaço do extinto ginásio do Colégio Marista, reacendendo o debate sobre os desafios de ocupar o bairro.
De acordo com o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará (Sinduscon-CE), a última construção para moradia erguida no “miolo” do Centro foi inaugurada em 2008: o Edifício Cidade, na Rua Guilherme Rocha, que naquele ano era o mais alto de Fortaleza.
Já em 2020, outro condomínio foi erguido no bairro, o Residencial Haus, na Rua Gonçalves Lêdo, mas em região já na divisa com a Aldeota, fora do que o presidente do Sinduscon define como “coração do Centro”.
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Fortalecer o Centro como lugar de morar já caminha entre as pautas de arquitetos e urbanistas, de especialistas em moradias populares, do Poder Público e até de setores ligados à economia.
Em setembro deste ano, as Defensorias Públicas da União (DPU) e do Estado (DPCE) e os Ministérios Públicos do Ceará (MPCE) e Federal (MPF) recomendaram que a Superintendência do Patrimônio da União (SPU) destine dois imóveis federais “abandonados” no bairro a programas habitacionais de interesse social.
Jonas Dezidoro, titular da Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), confirma a intenção da gestão municipal de construir moradias de interesse social na região. Um dos desafios é a disponibilidade de terrenos, “devido à especulação imobiliária”.
Mas, segundo o secretário, existem “cinco boas opções” de espaços que já foram mapeados pela Habitafor para receber futuros residenciais. “São bem no Centro mesmo”, garante.
Jonas pontua que a dificuldade de recuperar a área como lugar de morar “é comum aos grandes centros urbanos”, mas reforça que a Pasta “quer muito fazer um projeto de moradia de interesse social” no bairro, “desburocratizando” trâmites para ocupar imóveis e terrenos em desuso.
“Grande parte de quem trabalha no Centro ganha até três salários, está no nosso perfil de interesse social. O ideal é que essas pessoas morassem a, no máximo, 5 minutos do trabalho. Seria uma virada de chave fantástica a gente conseguir levar moradia ao Centro”, avalia.
“A cidade ideal que a gente imagina é aquela que a pessoa mora perto de onde trabalha, perto de um posto de saúde, de atividades culturais. E o Centro tem tudo isso. Já tem essa estrutura pronta”, complementa o titular da Habitafor.
Centro está ‘pronto’
Essa presença de infraestrutura consolidada – de transporte a serviços – é justamente o que evidencia a necessidade de retomar o Centro como lugar de morar, conforme avalia o arquiteto e urbanista Jefferson Lima, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) no Ceará.
“Seria uma forma de ocupar a área de maior e de melhor infraestrutura da cidade, seja urbana, de transporte ou de serviços. Temos a Linha Sul do metrô, a Linha Leste em construção, dois terminais de ônibus... É o bairro com mais infraestrutura de transporte de massa”, destaca.
Jefferson opina que levar a população a morar no Centro “seria uma transformação de Fortaleza, para evitar de espraiar a cidade fazendo construções longe do centro urbano, tendo que investir em infraestrutura e fazendo as pessoas perderem muito tempo com deslocamento”.
O Centro é um lugar completamente dotado das infraestruturas que a gente precisa no conceito de cidade, de morar próximo do trabalho, próximo de onde se estuda, reduzir os deslocamentos.
Para isso, ele cita que é preciso, primeiro, políticas públicas com garantia de participação popular, para que “todas as camadas sociais possam ter acesso a essa moradia no Centro”. “Não adianta fazer um grande processo de reabilitação do Centro só para rico morar. É um espaço fundamental para todos os fortalezenses”, sentencia.
Depois, é necessário interesse do mercado imobiliário de “enxergar no Centro de Fortaleza oportunidade, e não dificuldade” – o que poderia ser estimulado por meio de subsídios governamentais a quem quer construir no bairro, como sugere Diego Zaranza, membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU/CE).
O arquiteto aponta ainda que deficiências em questões urbanísticas também precisam ser sanadas para tornar a região atrativa a novos moradores. “As principais coisas a melhorar seriam a caminhabilidade, a integração dos espaços livres, a arborização, tirar cabeamentos elétricos expostos. Dar uma nova cara ao Centro, pra que as pessoas comecem a olhar de forma diferente”, avalia.
O conselheiro do CAU/CE salienta que “fazer manobras urbanísticas e políticas pra que o Centro tenha habitações residenciais é muito louvável”, mas reconhece “o grande volume de uso comercial” como origem de muitos obstáculos para essa mudança.
“O Centro tem uma grande vida durante o horário comercial, até 17h. Depois disso, começa a esvaziar: às 18h, já parece com outro tipo de local, vazio, com muito lixo. Entra um batalhão pra limpeza, e no dia seguinte ocorre tudo de novo”, lamenta.
Resolver uma questão social, a da grande quantidade de pessoas em situação de rua, se soma aos desafios. “Pra quem vai construir imóvel é visto de forma negativa, muitas têm esse entendimento. Mas é uma questão social que deve ser tratada pelo Poder Público”, reforça Diego.
Por que nos ‘mudamos’ do Centro?
Morar no Centro, em séculos passados, era sinônimo de posição social. Coisa da elite cearense. Prova disso são os palacetes e casarões antigos, poucos que ainda resistem, e os registros históricos que dão conta da ocupação de uma Fortaleza afrancesada.
O arquiteto e urbanista Diego Zaranza recobra que “Fortaleza era basicamente o Centro, restrita aos Boulevards” que, hoje, são as avenidas Duque de Caxias, Dom Manuel e Imperador. Toda a cidade passava por lá – e aí começa o movimento de “êxodo”.
“Se eu quisesse sair da Barra do Ceará à Parangaba, tinha que passar pelo Centro. Isso transformou o bairro em um ponto de passagem, de comércio, e começou a crescer bastante. Ao longo do tempo, a população começou a migrar pra ficar mais longe desse cenário”, contextualiza.
A expansão da cidade para o oeste, complementa o presidente do IAB/CE, Jefferson Lima, acompanhou essa migração.
“A cidade começa a se expandir, com a industrialização e com as residências de grande porte no bairro Jacarecanga, e surgem outras infraestruturas. Isso gerou um processo de tirar as famílias mais ricas do Centro rumo ao oeste”, rememora.
Outra “virada”, ele cita, foi o crescimento da cidade ao leste, a partir da planta desenhada por Silva Paulet. “Aí a Aldeota vai se consolidando como um bairro extremamente residencial, de médio a alto padrão, lotes grandes, e começa a tirar esses moradores do Centro – que vai ficando somente comercial”, completa.
Assim, avalia o urbanista, “buscar uma retomada da ocupação do Centro como lugar de morar não será mais por meio de casas e residências unifamiliares”, mas de construções verticalizadas – o que aumenta de forma considerável a quantidade de pessoas circulando, mas exige planejamento para não transformar as ruas em “cânions”.
“O modelo de condomínio que temos estabelecido como padrão da nossa cidade não é tão eficaz para o entorno. Muitas vezes segrega, cria pontos de insegurança na rua. Você anda em corredores, em verdadeiros cânions”, compara, sugerindo que sejam pensadas maneiras de “o térreo dialogar com a rua”.
De qualquer forma, um movimento positivo para a cidade é inevitável: “as pessoas vão ter necessidade de supermercados, de farmácias, vão consumir serviços, o próprio comércio do Centro. Vai gerar uma demanda de espaços de lazer ou de uso mais frequente dos já disponíveis”, finaliza Jefferson.