Como Centro de Fortaleza pode voltar a ser ‘lugar de morar’

Miolo do bairro não recebia lançamento de residencial há 17 anos.

Escrito por
Theyse Viana theyse.viana@svm.com.br
Imagem mostra rua tranquila do Centro de Fortaleza, com alguns carros estacionados e casas em ambos os lados. Acima, um céu azul com nuvens brancas.
Legenda: Caráter residencial do Centro foi perdido ao longo das décadas, com a expansão do comércio.
Foto: Fabiane de Paula.

As poucas casas que resistem no Centro de Fortaleza lembram ao presente uma marca que ficou no passado: a de um lugar para morar. Há 17 anos sem receber novos empreendimentos residenciais, o Centro deve ganhar um condomínio, no espaço do extinto ginásio do Colégio Marista, reacendendo o debate sobre os desafios de ocupar o bairro.

De acordo com o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará (Sinduscon-CE), a última construção para moradia erguida no “miolo” do Centro foi inaugurada em 2008: o Edifício Cidade, na Rua Guilherme Rocha, que naquele ano era o mais alto de Fortaleza.

Já em 2020, outro condomínio foi erguido no bairro, o Residencial Haus, na Rua Gonçalves Lêdo, mas em região já na divisa com a Aldeota, fora do que o presidente do Sinduscon define como “coração do Centro”.

Veja também

Fortalecer o Centro como lugar de morar já caminha entre as pautas de arquitetos e urbanistas, de especialistas em moradias populares, do Poder Público e até de setores ligados à economia.

Imagem mostra fachadas de diversas casas em rua tranquila do Centro de Fortaleza. Na calçada, uma grande árvore se ergue.
Legenda: Algumas ruas do Centro de Fortaleza mantêm perfil residencial.
Foto: Fabiane de Paula.

Em setembro deste ano, as Defensorias Públicas da União (DPU) e do Estado (DPCE) e os Ministérios Públicos do Ceará (MPCE) e Federal (MPF) recomendaram que a Superintendência do Patrimônio da União (SPU) destine dois imóveis federais “abandonados” no bairro a programas habitacionais de interesse social.

Jonas Dezidoro, titular da Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), confirma a intenção da gestão municipal de construir moradias de interesse social na região. Um dos desafios é a disponibilidade de terrenos, “devido à especulação imobiliária”.

Mas, segundo o secretário, existem “cinco boas opções” de espaços que já foram mapeados pela Habitafor para receber futuros residenciais. “São bem no Centro mesmo”, garante.

Jonas pontua que a dificuldade de recuperar a área como lugar de morar “é comum aos grandes centros urbanos”, mas reforça que a Pasta “quer muito fazer um projeto de moradia de interesse social” no bairro, “desburocratizando” trâmites para ocupar imóveis e terrenos em desuso.

“Grande parte de quem trabalha no Centro ganha até três salários, está no nosso perfil de interesse social. O ideal é que essas pessoas morassem a, no máximo, 5 minutos do trabalho. Seria uma virada de chave fantástica a gente conseguir levar moradia ao Centro”, avalia.

“A cidade ideal que a gente imagina é aquela que a pessoa mora perto de onde trabalha, perto de um posto de saúde, de atividades culturais. E o Centro tem tudo isso. Já tem essa estrutura pronta”, complementa o titular da Habitafor.

Centro está ‘pronto’

Imagem mostra casas com fachadas antigas no Centro de Fortaleza.
Legenda: Fachadas antigas são resquícios de um Centro residencial que foi enfraquecido com o tempo.
Foto: Fabiane de Paula.

Essa presença de infraestrutura consolidada – de transporte a serviços – é justamente o que evidencia a necessidade de retomar o Centro como lugar de morar, conforme avalia o arquiteto e urbanista Jefferson Lima, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) no Ceará.

“Seria uma forma de ocupar a área de maior e de melhor infraestrutura da cidade, seja urbana, de transporte ou de serviços. Temos a Linha Sul do metrô, a Linha Leste em construção, dois terminais de ônibus... É o bairro com mais infraestrutura de transporte de massa”, destaca. 

Jefferson opina que levar a população a morar no Centro “seria uma transformação de Fortaleza, para evitar de espraiar a cidade fazendo construções longe do centro urbano, tendo que investir em infraestrutura e fazendo as pessoas perderem muito tempo com deslocamento”.

O Centro é um lugar completamente dotado das infraestruturas que a gente precisa no conceito de cidade, de morar próximo do trabalho, próximo de onde se estuda, reduzir os deslocamentos.
Jefferson Lima
Arquiteto, urbanista e presidente do IAB/CE

Para isso, ele cita que é preciso, primeiro, políticas públicas com garantia de participação popular, para que “todas as camadas sociais possam ter acesso a essa moradia no Centro”. “Não adianta fazer um grande processo de reabilitação do Centro só para rico morar. É um espaço fundamental para todos os fortalezenses”, sentencia.

Depois, é necessário interesse do mercado imobiliário de “enxergar no Centro de Fortaleza oportunidade, e não dificuldade” – o que poderia ser estimulado por meio de subsídios governamentais a quem quer construir no bairro, como sugere Diego Zaranza, membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU/CE).

O arquiteto aponta ainda que deficiências em questões urbanísticas também precisam ser sanadas para tornar a região atrativa a novos moradores. “As principais coisas a melhorar seriam a caminhabilidade, a integração dos espaços livres, a arborização, tirar cabeamentos elétricos expostos. Dar uma nova cara ao Centro, pra que as pessoas comecem a olhar de forma diferente”, avalia. 

Imagem mostra movimentação de pessoas na Praça do Ferreira, no Centro de Fortaleza.
Legenda: Queda na movimentação após horário comercial é um dos desafios para ocupação residencial do Centro.
Foto: Kid Júnior.

O conselheiro do CAU/CE salienta que “fazer manobras urbanísticas e políticas pra que o Centro tenha habitações residenciais é muito louvável”, mas reconhece “o grande volume de uso comercial” como origem de muitos obstáculos para essa mudança.

“O Centro tem uma grande vida durante o horário comercial, até 17h. Depois disso, começa a esvaziar: às 18h, já parece com outro tipo de local, vazio, com muito lixo. Entra um batalhão pra limpeza, e no dia seguinte ocorre tudo de novo”, lamenta.

Resolver uma questão social, a da grande quantidade de pessoas em situação de rua, se soma aos desafios. “Pra quem vai construir imóvel é visto de forma negativa, muitas têm esse entendimento. Mas é uma questão social que deve ser tratada pelo Poder Público”, reforça Diego.

Por que nos ‘mudamos’ do Centro?

Imagem dos anos 1930 mostra rua Gonçalves Ledo, em Fortaleza. Rua é de calçamento, com casas de muro baixo. À direita, um carro antigo aparece na imagem.
Legenda: Rua Gonçalves Lêdo, entre ruas Rocha Lima e Padre Valdevino, nos anos 1930. No quarteirão inteiro, hoje, existem apenas uma casa e um pequeno prédio residencial.
Foto: Fortaleza em Fotos/Acervo Digital PMF

Morar no Centro, em séculos passados, era sinônimo de posição social. Coisa da elite cearense. Prova disso são os palacetes e casarões antigos, poucos que ainda resistem, e os registros históricos que dão conta da ocupação de uma Fortaleza afrancesada.

O arquiteto e urbanista Diego Zaranza recobra que “Fortaleza era basicamente o Centro, restrita aos Boulevards” que, hoje, são as avenidas Duque de Caxias, Dom Manuel e Imperador. Toda a cidade passava por lá – e aí começa o movimento de “êxodo”.

“Se eu quisesse sair da Barra do Ceará à Parangaba, tinha que passar pelo Centro. Isso transformou o bairro em um ponto de passagem, de comércio, e começou a crescer bastante. Ao longo do tempo, a população começou a migrar pra ficar mais longe desse cenário”, contextualiza.

A expansão da cidade para o oeste, complementa o presidente do IAB/CE, Jefferson Lima, acompanhou essa migração.

“A cidade começa a se expandir, com a industrialização e com as residências de grande porte no bairro Jacarecanga, e surgem outras infraestruturas. Isso gerou um processo de tirar as famílias mais ricas do Centro rumo ao oeste”, rememora.

Outra “virada”, ele cita, foi o crescimento da cidade ao leste, a partir da planta desenhada por Silva Paulet. “Aí a Aldeota vai se consolidando como um bairro extremamente residencial, de médio a alto padrão, lotes grandes, e começa a tirar esses moradores do Centro – que vai ficando somente comercial”, completa.

Assim, avalia o urbanista, “buscar uma retomada da ocupação do Centro como lugar de morar não será mais por meio de casas e residências unifamiliares”, mas de construções verticalizadas – o que aumenta de forma considerável a quantidade de pessoas circulando, mas exige planejamento para não transformar as ruas em “cânions”.

“O modelo de condomínio que temos estabelecido como padrão da nossa cidade não é tão eficaz para o entorno. Muitas vezes segrega, cria pontos de insegurança na rua. Você anda em corredores, em verdadeiros cânions”, compara, sugerindo que sejam pensadas maneiras de “o térreo dialogar com a rua”.

De qualquer forma, um movimento positivo para a cidade é inevitável: “as pessoas vão ter necessidade de supermercados, de farmácias, vão consumir serviços, o próprio comércio do Centro. Vai gerar uma demanda de espaços de lazer ou de uso mais frequente dos já disponíveis”, finaliza Jefferson.

Newsletter

Escolha suas newsletters favoritas e mantenha-se informado
Este conteúdo é útil para você?
Assuntos Relacionados