Ter onde morar e morar bem. O direito básico consta entre as maiores demandas apontadas pela população no Plano Plurianual de Fortaleza (PPA), documento que apresenta o planejamento de políticas públicas da Cidade para os anos entre 2026 e 2029. Mais de mil propostas sobre moradia e regularização fundiária foram enviadas.

A relevância do assunto e a necessidade de soluções são reforçadas em um capítulo inteiro no Plano Diretor de Fortaleza (PD), lei que organiza e orienta a ocupação da cidade, cuja minuta foi finalizada neste mês, será discutida na Conferência das Cidades e, até o final de 2025, votada pela Câmara Municipal de Fortaleza.

O Diário do Nordeste publica neste mês uma série de reportagens especiais sobre a proposta do Plano Diretor de Fortaleza, que deve ser votada na Câmara Municipal até o fim de 2025. A ideia do conteúdo é discutir parte das propostas, destacando os impactos relacionados ao crescimento urbano da Capital para os diferentes setores da Cidade.

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Entre as ideias que tanto o PPA 2026-2029 como o novo Plano Diretor trazem para reduzir o déficit habitacional e garantir teto digno aos fortalezenses está o aproveitamento de imóveis e terrenos ociosos ou subutilizados – solução já prevista desde 2001 pela lei federal nº 10.257, o Estatuto da Cidade, mas nunca aplicada de forma efetiva.

O Plano Diretor trata essas estruturas como Imóveis Especiais de Interesse Social (IEIS), definidos como “imóveis públicos ou privados, edificados ou não, não utilizados, subutilizados, ocupados ou não, cujo objetivo é a produção de habitação de interesse social ou a reabilitação de imóvel para a promoção de Habitação de  Interesse Social – HIS”.

A minuta prevê que “o reconhecimento de imóveis como IEIS se dará através de Decreto, após avaliação técnica elaborada pelo órgão municipal  competente”, e que “para cada um deles deverá ser elaborado projeto de intervenção”, podendo prever “a arrecadação de imóveis vagos, a desapropriação, a dação em pagamento, o parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios, o IPTU progressivo e o consórcio imobiliário”.

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Uso de imóveis ociosos

Se de um lado há diversos terrenos e imóveis com pouca ou nenhuma utilização, do outro milhares de fortalezenses não têm onde morar ou vivem em lares precários – sendo a capital de um estado com déficit habitacional de 227 mil moradias. São esses locais que podem ser, aos poucos, ocupados por quem precisa de teto.

O Diário do Nordeste solicitou ao Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ipplan) um balanço atual de quantos imóveis ociosos públicos ou privados existem na Cidade ou em quais bairros predominam esses espaços. O órgão não enviou as informações e justificou que “esses dados são muito dinâmicos e mudam a cada ano”.

Por outro lado, o novo Plano Diretor de Fortaleza mapeia quais pontos da Capital compõem a Zona Especial de Interesse Social (Zeis) de tipo 3: que são justamente os “terrenos subutilizados ou não utilizados em áreas dotadas de infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos”.

Mapa de Fortaleza todo em branco e com pontos verdes destacados, mostrando localização de imóveis e terrenos vazios ou subutilizados.
Legenda: Plano Diretor de Fortaleza, em revisão, mostra mapeamento da Zeis 3: áreas com imóveis vazios, não utilizados ou subutilizados
Foto: Reprodução/Ipplan

Embora espaços nessas condições apareçam em praticamente todas as regionais, eles predominam, conforme o mapeamento municipal, em bairros como:

  • Mondubim
  • Passaré
  • Praia do Futuro
  • Sapiranga
  • Edson Queiroz

O Plano Diretor aponta que essas áreas devem ser resguardadas “à promoção ou ampliação de empreendimentos habitacionais de interesse social e a combater o déficit habitacional quantitativo de Fortaleza”.

Rérisson Máximo, membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU/CE), explica a diferença entre os tipos de ocupações.

Ele avalia que muitos desses locais estão inseridos nos chamados “vazios urbanos”, grandes zonas com terrenos sem utilização concreta – o que é contra a lei.

“Os grandes vazios urbanos estão sobretudo na parte sul de Fortaleza, mas também no sudoeste. Mesmo sendo a capital mais densa, tem muitos vazios. Não justifica construir (residenciais populares) tão longe sob o argumento de que não tem lugar: a lógica é financeira”, analisa Rérisson.

Imagem vista de baixo de um prédio abandonado no bairro Papicu, em Fortaleza
Imagem de terreno vazio, cercado por tapumes metálicos
Fachada de terreno abandonado, com fachada branca deteriorada
Legenda: Prédios não ocupados e terrenos sem utilização integram vazios urbanos de Fortaleza
Foto: Kid Júnior

“Todo imóvel, construído ou terreno, precisa cumprir uma função social, seja com ocupação por um espaço público, como parque ou praça, seja para uso habitacional”, inicia Rérisson, acrescentando que a ideia de aplicar dispositivos legais para retomar o uso desses “vazios” não é nova, “constava até no Plano Diretor anterior”, mas precisa ser regulamentada e fortalecida na Capital.

Há no Estatuto da Cidade, que é federal, pelo menos três alternativas para exigir a utilização de um imóvel ou terreno em desuso, como explica o conselheiro do CAU:

  • Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios (PEUC): proprietários são obrigados pela Prefeitura a designar uso adequado dos espaços, de modo que cumpram função social;
  • IPTU progressivo: caso não atendam a notificação de PEUC, é aplicada uma alíquota crescente do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana;
  • Desapropriação: se as duas primeiras alternativas não funcionarem, o imóvel ou terreno pode ser desapropriado e a Prefeitura paga com títulos da dívida pública.

Esses instrumentos também aparecem no Plano Diretor a ser votado pela CMF neste ano. “Fortaleza nunca aplicou nem o PEUC. O que a Prefeitura propõe é uma ideia fantástica, e que de alguma maneira está ligada ao Estatuto da Cidade”, opina Rérisson. 

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Jonas Dezidoro, titular da Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), adianta que a gestão municipal deve contratar uma consultoria para auxiliar nas tratativas sobre os imóveis privados, que são maioria, e que alguns públicos federais ociosos no Centro têm sido discutidos junto à Superintendência do Patrimônio da União (SPU).

No dia 23 de setembro deste ano, as Defensorias Públicas da União (DPU) e do Estado (DPCE) e os Ministérios Públicos do Ceará (MPCE) e Federal (MPF) recomendaram que a SPU destine dois imóveis federais “abandonados” no Centro de Fortaleza a programas habitacionais de interesse da população em situação de rua.

“Além disso, estamos organizando o fundo de terras da Habitafor. Infelizmente, tínhamos terrenos muito ruins, estamos buscando melhores. E buscando junto à Prefeitura e ao Governo do Estado opções de terrenos e imóveis pra construirmos Habitações de Interesse Social”, pondera.

Segundo ele, quatro terrenos ociosos da Prefeitura de Fortaleza já foram pré-selecionados pela Caixa Econômica Federal como “superiores” para instalação de moradias populares. “Vamos começar o processo e, logo, logo, devemos anunciar novos residenciais”, projeta o secretário.

Já o diretor do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará (Sinduscon Ceará), José Carlos Gama, aponta que a entidade é favorável às medidas sugeridas para lidar com os chamados vazios urbanos, levando em consideração o respeito ao direito de propriedade. Ele destaca que, para o mercado imobiliário, “terreno é um insumo”. “Quanto maior a oferta de terrenos apresentados, melhor, porque demanda na realidade maior, oferta maior, demanda igual, faz com que o preço do imóvel baixe”, afirma.

José Carlos Gama reitera a necessidade de o proprietário do imóvel transformar a terra em prol da sociedade. “Ou para condição da sua própria casa, ou para condição do empreendimento que venha a ter, na verdade, uma loja, um ponto comercial que traga atrativos para própria sociedade. Ou, quem sabe, fazer uma parceria com alguma construtora, com alguma incorporadora, para que naquele terreno se transforme num empreendimento habitacional e aí várias famílias possam sonhar com a aquisição da casa própria”, defende.

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Doar lotes para ‘autoconstrução’

Outras medidas na área de moradia e regularização fundiária, estas apontadas pelo PPA, são “construção de casas populares, realização de mutirões, concessão de aluguel social, parcerias com programas federais e oferta de lotes urbanizados com infraestrutura básica para viabilizar a autoconstrução”.

Esta última também aparece no Plano Diretor. O arquiteto e urbanista Rérisson Máximo relembra que foi “a grande política habitacional de Fortaleza”, com mutirões entre os anos 1970 e 1990 – e reforça que, para funcionar, ela “precisa estar alinhada ao Plano Municipal de Habitação”.

“Se a Prefeitura vai estimular e oferecer lotes urbanizados, é importante que pense também em atender a Lei da Assistência Técnica. O Poder Público precisa garantir o projeto e a orientação técnica pra reforma das casas”, alerta.

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Legenda: Residenciais do Minha Casa Minha Vida em Fortaleza são exemplos de moradias populares
Foto: Natinho Rodrigues/Arquivo SVM

O titular da Habitafor, Jonas Dezidoro, reconhece que “é uma ideia muito boa”, mas aponta a “falta de terrenos bons” como desafio. “Os bons terrenos preferimos mandar pra construção de residenciais, porque faz apartamentos, atendendo mais pessoas”, inicia. 

“Pra esses mutirões, em que a pessoa recebe o lote e faz a casinha dela ali, precisamos achar no futuro terrenos viáveis pra isso, e combinar com a assessoria técnica, demanda que somos muito cobrados pela demanda popular e pela academia”, emenda Jonas.

O secretário reconhece que a medida é indispensável, porque “muitas pessoas nunca tiveram acesso a um engenheiro ou arquiteto”. 

Você possibilitar, além do lote de terra, a assessoria técnica de como construir, qual o melhor modelo pra facilitar iluminação, ventilação e a questão urbanística, É fantástico. Mas temos uma deficiência, que é terra. Temos poucos terrenos.
Jonas Dezidoro
Secretário da Habitafor

Moradia no centro

Reconhecendo que o déficit habitacional não é só sobre ausência de teto, mas sobre as condições em que se habita, o arquiteto Rérisson Máximo destaca: “política habitacional não é feita só com uma linha de atuação”. 

Ele alerta para a importância de ampliar “o aluguel social, uma política pra população em situação de rua, ocupação do Centro e as melhorias habitacionais” – todas estas mencionadas como propostas no PPA 2026-2029.

Criança aparece de costas, vestindo apenas short verde, brincando com um carrinho em barraco de madeira
Imagem mostra tijolos reunidos iniciando a construção de uma parede num terreno amplo
Mulher de costas olha para extensão da rua repleta de barracos de madeira e papelão em Fortaleza
Legenda: Ocupações e moradias precárias erguidas por pessoas em situação de rua expõem déficit habitacional
Foto: Davi Rocha (1 e 2) / Thiago Gadelha (3)

Segundo o titular da Habitafor, será lançado na Cidade o programa “Morar Bem”, com priorização das melhorias habitacionais, “criando condições de habitabilidade” para as famílias. Além disso, o “papel da casa” deve ser entregue, até 2028, a pelo menos 50 mil famílias.

“Estamos construindo 3 mil moradias, que vão ser entregues em 2026. A moradia voltou a estar no centro do debate. Houve um vácuo grande nos últimos anos. Estamos focados em diminuir esse déficit”, finaliza.

O foco também é o principal de quem precisa de teto. As propostas sobre habitação e regularização fundiária estão entre as quatro mais citadas pela população nas propostas ao Plano Plurianual da cidade – principalmente pela Regional 10, de bairros como Mondubim, Conjunto Esperança e Parque São José. Das 1.068 propostas recebidas na temática, 420 foram de lá (quase 40% do total).

Em seguida, aparecem a Regional 1, que inclui bairros como Barra do Ceará e Jacarecanga, com 95 propostas; a Regional 6, englobando Messejana, Aerolândia e bairros adjacentes, com 89 ideias enviadas; e a Regional 4, área do Benfica ao Aeroporto, com 80 propostas participativas.

O PPA é uma exigência da Constituição Federal para os três entes – União, Estados e Municípios – e inaugura um novo ciclo de planejamento que será detalhado a cada ano, por meio da Lei Orçamentária Anual (LOA). O documento dos próximos quatro anos da Cidade ainda será votado pela Câmara Municipal de Fortaleza, ainda neste ano.

Em Fortaleza, a elaboração do plano é conduzida pela Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão (Sepog), e conta com processo participativo, em que representantes das 12 regionais da capital enviam propostas sobre áreas como saúde, educação, segurança, mobilidade urbana e moradia.

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O que Fortaleza planeja

Na atual revisão do Plano Diretor Participativo e Sustentável de Fortaleza, de acordo com o Ipplan, “está sendo previsto o Sistema de Habitação, que poderá propor ações estratégicas como o instrumento ‘Imóvel Especial de Interesse Social’ (IEIS)”.

O instituto detalha que “são imóveis públicos ou privados, não edificados, não utilizados, subutilizados, ocupados ou não, cujo objetivo é a produção de habitação de interesse social ou reabilitação de imóvel para a promoção de Habitação de Interesse Social (HIS) com a possibilidade de uso misto”. 

O órgão municipal acrescenta que o reconhecimento dos espaços como IEIS “se dará por meio de lei municipal após avaliação técnica elaborada pelo órgão municipal competente”. O projeto poderá prever “instrumentos urbanísticos definidos no Plano Diretor, como:

  • Arrecadação de imóveis vagos, a desapropriação; 
  • Dação em Pagamento, acordo no qual um devedor paga uma dívida entregando um bem diferente daquele inicialmente combinado;
  • PEUC e IPTU progressivo;
  • Consórcio imobiliário.

O Ipplan complementa que para cada imóvel vazio, subutilizado ou em outra condição já descrita deverá ser elaborado projeto de intervenção.