‘Vazios urbanos’ em Fortaleza aumentam sensação de insegurança, degradam e segregam territórios
“Aqui é muito esquisito. Quando dá seis horas da noite, num tem quem queira ficar na rua. É perigoso, deserto. Mas com essa construção, a gente imagina que vai ser diferente desses anos todos com os galpões fechados. Vai ter movimento e melhorar”. O relato da comerciante Vicência Maria Serafim, 60 anos, moradora do bairro Montese, em Fortaleza, une queixas e expectativas. Ela se refere a um problema complexo, que não é novo e segue espalhado em diversos bairros da Capital: os chamados vazios urbanos, cujos efeitos vão da segregação urbana à interferência no desenvolvimento da cidade.
Nas definições urbanísticas, os vazios urbanos são áreas que, - tal qual era o espaço em frente à casa de Vicência - têm imóveis (terrenos ou edificações) ociosos ou subutilizados, como lotes vazios, galpões, fábricas e construções abandonadas, edificações antigas inutilizadas ou subutilizadas, que, no dia a dia, geram lacunas de uso e ocupação do espaço urbano.
Esses vazios espalhados em bairros diversos por diferentes motivos impõem uma série de obstáculos a quem habita ou utiliza o entorno, como o estabelecimento de dinâmicas com áreas desertas e a perpetuação da sensação de insegurança, a degradação de determinados territórios e a segregação dessas regiões no ambiente urbano.
Para discutir o impacto deste tema na rotina da população, o Diário do Nordeste publica nesta semana uma série de reportagens sobre os vazios urbanos de Fortaleza. Além de caracterizar os que são esses espaços e quais os impactos para o desenvolvimento da cidade, também iremos abordar o quê o Plano Diretor aponta para resolver a situação e exemplos de prédios ociosos e subutilizados na Capital que tiveram o uso transformado indicando soluções reais para ocupar de forma positiva o que antes eram vazios urbanos.
No caso da comerciante Vicência, por mais de 20 anos, um conjunto de edificações industriais usadas nas décadas de 1970 a 1990, no Montese, como sede de uma grande fábrica têxtil, na Rua Zacarias Gondim, apesar de desativado seguiu erguido e inutilizado até o final de 2023, quando foi demolido.
Desde então, um novo empreendimento privado está sendo erguido no lugar e abrigará uma série de lojas. De acordo com Vicência, que mora na mesma casa no bairro há 45 anos, a vizinhança projeta que, após décadas de ônus devido ao “vazio” gerado pelos galpões ociosos, agora, ganhará mais qualidade no ambiente de moradia e a área passará a ser mais atrativa e valorizada. É a projeção de que a reativação do espaço irá melhorar a cidade.
Onde estão os vazios urbanos de Fortaleza?
A situação identificada no Montese, na qual um conjunto de galpões permaneceu por anos desocupado com o patrimônio em degradação, gerando um grande território ermo, inóspito e apartado, se repete em diversas áreas e bairros de Fortaleza, sendo “comuns” naqueles que já tiveram características industriais, como os da área Oeste de Fortaleza. Mas não só neles.
Avenidas como a Francisco Sá, Dom Manuel, Mister Hull, Barão de Studart, João Pessoa, Washington Soares, e, além do Montese, bairros como Centro, Sapiranga, Vicente Pinzón, Praia do Futuro, Papicu, Carlito Pamplona, Jacarecanga, Álvaro Weyne, Antônio Bezerra, Parque Presidente Vargas, Vila União, São João do Tauape, Aldeota, Benfica, Novo Mondubim, Canindezinho, Parangaba, Dom Lustosa, Floresta, Praia da Iracema, Edson Queiroz, Sapiranga, Jangurussu, Cambeba e Siqueira têm algumas amostras dos vazios urbanos da Capital. É o que registram pesquisas acadêmicas e documentos oficiais utilizados pela própria gestão municipal e consultados pela reportagem.
Em Fortaleza, um dos primeiros mapas de vazios urbanos foi apresentado em 2009 no Plano Habitacional para Reabilitação da Área Central de Fortaleza, feito pela Prefeitura, quando foram identificadas quatro tipologias naquela região: galpões desocupados, terrenos vazios, estacionamentos e edifícios ociosos ou subutilizados.
Naquele momento, um dos debates mais intensos e que acabou não saindo do papel era justamente o potencial dos vazios urbanos na área central para reutilização por uso habitacional.
A identificação de parte desses vazios urbanos consta também no Plano Diretor de Fortaleza de 2009 (Lei Complementar 62/2009) com o estabelecimento de algumas dessas áreas como Zona Especial de Interesse Social de tipo 3, conhecida como “Zeis de vazio”. As Zeis 3 concentram terrenos não edificados ou imóveis subutilizados e ociosos em espaços dotados de infraestrutura e, conforme o Plano Diretor, devem ser destinados à implementação de habitações de interesse social.
Na proposta preliminar do novo Plano, que passa por revisão já que a norma em vigor está desatualizada desde 2019, alguns desses vazios urbanos identificados anteriormente continuam. Mas, especialistas que acompanham o debate da nova versão e ouvidos pelo Diário do Nordeste apontam que a quantidade de vazios contabilizados pela Prefeitura foi subdimensionada. Segundo eles, o número agora é ainda maior que em 2009, e a gestão municipal precisa rever essa identificação.
O documento que dará base ao Plano ainda segue em discussão e a possibilidade de aumentar a quantidade de vazios urbanos mapeados, classificados como Zeis 3, pode ser alterada.
No debate atual espaços como as Oficinas do Urubu (parque de manutenção da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima - RFFSA), na Av. Francisco Sá; o terreno de uma fábrica abandonada na rua Teodomiro de Castro; outro próximo à antiga fábrica de uma cervejaria na Mister Hull; outro vizinho a um hipermercado também na Francisco Sá; e outra área na Av. Monsenhor Tabosa são exemplos práticos de vazios urbanos.
Na nova proposta os critérios de demarcação das Zeis de tipo 3 são os seguintes:
- Terrenos vazios remanescentes em áreas de Zeis 3 demarcados no Plano Diretor de 2009;
- Vazios urbanos maiores de 2.500m² fora de zonas ambientais;
- Terrenos que não tenham carência de mais do que 2 infraestruturas urbanas (transporte, iluminação, esgotamento, coleta de lixo, dentre outros);
- Terrenos próximos às Zeis 1 (que são os assentamentos irregulares);
Questionado sobre o mapeamento desses vazios e os efeitos que eles provocam, em nota, o Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ipplan), órgão da Prefeitura de Fortaleza, reforçou que “analisando outras cidades do Brasil e do mundo, percebe-se que este é um desafio coletivo: garantir o uso e o adensamento de áreas, especialmente as que já são dotadas de infraestrutura”.
Conforme o Ipplan, “por diferentes razões, pela dinâmica urbana, as regiões das cidades vão assumindo novas funções. Por isso, é preciso redirecionar essa ocupação para garantir uma dinâmica urbana mais compatível com os dias atuais”.
A nota diz ainda que “esse tipo de desafio é percebido, por exemplo, na avenida Francisco Sá, que já foi uma área industrial e que hoje assume novas funções. Os incentivos urbanísticos existentes na região ainda foram suficientes para modificar a dinâmica do entorno”.
Sobre o levantamento mais atualizado que a Prefeitura de Fortaleza dispõe sobre os vazios urbanos em Fortaleza, o Ipplan diz que a cidade tem uma “base consolidada de cadastro territorial multifinalitário, sendo uma referência nacional. Esse cadastro é utilizado pelas diferentes pastas da gestão, principalmente pelas secretarias municipais de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) e de Finanças (Sefin) e pelo Ipplan".
Efeitos no uso da cidade
A situação que une vazios urbanos e imóveis inutilizados, em muitos casos, em áreas da cidade que são completamente dotadas de recursos e infraestrutura, gera, dentre outros impactos negativos, o não cumprimento da função social da propriedade, além de uma cidade mais segregada. Outro ponto é que, em diversos vazios, esses imóveis têm pouco ou nenhum grau de conservação pelos proprietários, o que gera também repercussões negativas para o entorno.
Estamos falando na Capital mais densa do país, de acordo com o último Censo. Teve uma evasão populacional em certo nível, mas é importante observar isso para uma Capital em constante crescimento. Perdemos população para os municípios ao redor justamente por questões urbanas como o crescimento exponencial do aluguel. Vemos constantes resquícios de terrenos vazios no eixo da Washington Soares no caminho rumo ao Eusébio. Como também há muitos vazios no Centro, na Parangaba e Montese.
Na avaliação do arquiteto e pesquisador Vinícius Saraiva, uma das implicações da persistência desses vazios é “a valorização imobiliária e o adensamento excessivo em determinadas áreas”, o que implica também, argumenta Vinícius, no desenvolvimento desigual da cidade com uma acentuada concentração fundiária.
O arquiteto e urbanista, conselheiro Estadual do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/Ceará) e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Rérisson Máximo, explica que “quando se fala em vazios urbanos, logo associamos a grandes terrenos que não foram ocupados com edificações na cidade. Em Fortaleza, mas também em quase todas as cidades pequenas ou grandes eles existem”.
De uma forma simples e objetiva, quanto mais vazios urbanos existem em áreas com oferta de infraestrutura e serviços urbanos, mais a cidade cresce de forma espraiada, ocupando regiões periféricas e, assim, aumentando o custo do próprio poder público em levar melhorias para estas áreas.
Mas, acrescenta ele, “faz mais sentido falar em imóveis - terrenos ou edificações - não utilizados ou subutilizados”. De acordo com Rérisson, esse conjunto diverso de situações envolvendo os imóveis vazios ou abandonados causa impactos negativos da perspectiva social, pois podem ser pontos de descarte de resíduos sólidos ou gerar sensação de insegurança pública, por exemplo, e também na dimensão do planejamento urbano ao produzir um efeito ligado ao custo de moradia na cidade.
Rérisson diz ainda que os vazios urbanos trazem ônus para o poder público e para os moradores, sobretudo os mais pobres, e em paralelo, argumenta: “os bônus ficam com aqueles poucos que detêm a propriedade dos imóveis não utilizados ou subutilizados. Ou seja, é um problema que deve ser enfrentado pelo Estado através de políticas urbanas que invertam essa ordem”.
Há áreas específicas para a ocorrência de vazios urbanos?
Os vazios urbanos, conforme já evidenciado, estão presentes em diversas áreas de Fortaleza. O arquiteto Rérisson Máximo explica que “as cidades possuem realidades diversas e complexas que impedem de afirmar que os vazios urbanos são mais recorrentes em áreas menos valorizadas”.
De acordo com ele, estas áreas, em geral periféricas, “possuem grandes glebas vazias justamente pela dinâmica de crescimento do território urbano que amplia o perímetro urbano, muitas vezes incorporando áreas rurais e sem infraestrutura, ao invés de ocupar terrenos mais bem localizados”.
Essa dinâmica, destaca, “segue uma lógica econômica, ditada pelos interesses econômicos do setor imobiliário, mas que tem impacto na cidade e na sua população como um todo”. Contudo, reforça, terrenos e edificações não utilizados ou subutilizados estão presentes também nas áreas mais valorizadas e cita bairros como Papicu, Aldeota e Luciano Cavalcante, que “possuem inúmeros terrenos vazios”, diz ele.
Já a arquiteta e urbanista e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Bruna Santiago, avalia que “a maior parte dos vazios está em áreas ditas desvalorizadas, hoje em dia, para o mercado imobiliário”, muito embora, no passado, “elas tenham sido valorizadas”.
Ela explica que no movimento envolvendo a utilização dessas áreas é possível que um bairro que sempre foi periférico, desvalorizado, tenha muitos terrenos vazios, justamente, porque “nunca chegou ninguém lá para construir”, em paralelo, bairros que eram valorizados, muitas vezes, têm construções que foram esvaziadas com a desvalorização, resultando também em vazios.
O que precisa ser feito nesses vazios?
Um dos primeiros pontos é que a legislação brasileira já prevê mecanismos para coibir ou tentar reverter a situação desses vazios e, conforme destaca Rérisson, “diante da ocorrência desse problema o Estado deve atuar no sentido de cumprir o que está posto na Constituição Federal. Em seu artigo 182, o texto constitucional aponta que a política de desenvolvimento urbano deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. Os vazios urbanos ferem essa diretriz”.
Ele enfatiza que as políticas públicas, sobretudo, as municipais, devem atender ao que está posto no Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) que “aponta para a necessidade da propriedade urbana cumprir sua função social”.
O arquiteto Vinícius reitera que “a própria negligência do poder público, a falta de atenção e vontade política para operacionalizar instrumentos urbanísticos e fazer valer o que estava preciso no Plano Diretor paulatinamente fez com que esses terrenos fossem ocupados”. Logo, destaca, “o que o Estado pode fazer é considerar as políticas habitacionais conectadas à política urbana”.
Um meio de operacionalizar o que está na legislação, defendem, é fazer valer a priorização desses terrenos para receber habitação de interesse social ou equipamentos públicos.
A arquiteta Bruna Santiago também enfatiza que a resolução desse problema, sobretudo, nas áreas centrais e infraestruturadas passa pela prioridade de construção de moradias populares. “Causaria um impacto positivo muito grande na vida das famílias de baixa renda, porque temos um déficit habitacional muito grande e não são só as pessoas que estão sem casa, mas também as que moram em condições precárias, por exemplo”, opina.