Cineasta amador cria ‘Hollywood cearense’ em povoado e transforma quase todos os habitantes em atores

Comunidade de Salgado dos Mendes, em Forquilha, já produziu mais de 30 filmes em quase 20 anos

Escrito por
Nícolas Paulino nicolas.paulino@svm.com.br
Placa de Bem-vindo à Hollywood cearense perto de estrada no Ceará
Legenda: Placa da Hollywood cearense foi posta numa das entradas do povoado há seis anos
Foto: Davi Rocha

Seria um pequeno povoado como qualquer outro no interior do Ceará, com poucas ruas organizadas a partir de uma igreja matriz e equipado com mercearia, oficina, escola e posto de saúde. Mas Salgado dos Mendes, na zona rural de Forquilha, a 260km de Fortaleza, vai além: é a "Hollywood Cearense". Por lá, já foram filmadas mais de 30 produções que já receberam prêmios e ajudaram na formação artística da população.

O idealizador dessa história foi o agricultor, líder comunitário, produtor cultural e cineasta Josafá Ferreira Duarte, 64, há quase 20 anos. Em 2006, ele passou a incentivar a arte da dramaturgia na comunidade, mesmo sem conhecimento técnico. “É um cinema popular que é feito sem a formação acadêmica”, disse ele, em entrevista à reportagem do Diário do Nordeste, que esteve no local no fim de janeiro.

Josafá Duarte em frente à própria casa em Forquilha
Legenda: Prestes a completar 65 anos, cineasta revela desejo de continuar fazendo arte
Foto: Davi Rocha

Ainda assim, o trabalho compensa. Em 2015, a produção “Cadê meu zóculos?” venceu o Festival de Cinema de Jericoacoara. Conforme a sinopse, “em Barro Vermelho, só ganha eleição quem compra voto; aqui se troca voto por óculos, dentaduras, pagamento de água e luz atrasada, promessas de empregos…”.

Dois anos depois, após aprovação da Assembleia Legislativa, o então governador Camilo Santana sancionou a lei estadual nº 16.266/2017, reconhecendo Forquilha como “a capital cearense do cinema popular”. “Um feito inédito”, comemora Josafá. 

Já em 2019, a comunidade virou tese de doutorado na Universidade Federal de Goiás (UFG) a partir do trabalho “Josafá Duarte e o Cinecordel: O Cineasta Cabra da Peste Contra o Dragão de Roliúdi”, do pesquisador em arte e cultura visual Paulo Passos de Oliveira.

Segundo Josafá, com essa trajetória, não há mais câmera que intimide os salgadenses.

“Hoje virou já virou comum, né? Aqui a comunidade tem em torno de 500 habitantes, e acho que numa faixa de uns 400 já participaram. Todos, do pequeno ao mais velho”, conta. “Pode chegar aqui uma equipe da Globo que o pessoal não se envergonha, já estão acostumados com esse dia a dia da nossa gravação”.

Cena de filme amador feito no Ceará
Legenda: Cena do premiado 'Cadê meu zóculos?' (2015)
Foto: Reprodução/Forquilha CineCordel

Entre os filmes produzidos em Salgado dos Mendes, estão:

  • Os malas e os trouxas
  • Santeiro Luminoso contra o santo do pau oco
  • O homem que queria enganar a morte
  • A espiã que amava Forquilha
  • Forquilha sob ameaça química
  • O homem da mala preta
  • O mistério da Lagoa dos Melos

Letreiro do povoado de Salgado ao lado da igreja matriz
Legenda: Pelo destaque estadual e nacional, Salgado ganhou um letreiro especial na praça
Foto: Davi Rocha

Início da produção

Os curtas-metragens, em sua maioria, são sátiras ficcionais com o objetivo conscientizar politicamente a população sobre direitos e deveres. Por meio da comédia, Josafá explica que promove reflexões sobre a relação entre eleitores, autoridades e “o sistema”. No entanto, isso não impede o desenvolvimento de argumentos sobre o meio ambiente, como desmatamento e poluição.

Esses temas partem da própria história de Josafá. Ele se mudou com a família para Fortaleza, no fim da década de 1970, e se envolveu com o movimento de bairros e favelas. Em contato com a liderança social, passou a integrar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 

Após ser ameaçado de morte por latifundiários em uma ocupação na cidade de Pentecoste, ele decidiu retornar a Salgado dos Mendes. No pequeno povoado, se deparou com diversas irregularidades eleitorais, como compra de votos e garantia de emprego para apoiadores das gestões no poder.

Daí veio a ideia de utilizar a arte como “denúncia e instrumento de luta popular”. A base já tinha: na capital, havia participado de um grupo de teatro popular no bairro Parangaba. Aos poucos, ele foi convencendo pessoas próximas a participar das produções filmadas.

DVDs e folhetos de cordel expostos em varal
Legenda: Filmes e cordéis ficam expostos na casa de Josafá
Foto: Davi Rocha

Em paralelo, o cineasta começou a escrever um pequeno jornal chamado “Sociedade Salgadense”, definido como “uma maneira da gente começar a divulgar e reivindicar as melhorias para a comunidade”.

“Por ser um lugar muito pequeno, era muito explorado politicamente, entendeu? A turma queria mesmo só os eleitores… pegou o voto e vai embora. Como eu já tinha essa vivência nas lutas sociais, resolvi usar esse meu conhecimento para defender a comunidade”, alega.

Apoio para as gravações

No início, Josafá não tinha câmera. Precisou pedir emprestado a conhecidos de Sobral e da sede de Forquilha. Aos poucos, as produções saíram de Forquilha e ganharam até outros Estados. Elas também despertaram o interesse de Rosemberg Cariry, reconhecido cineasta cearense que procurou Josafá para conversar sobre o cinema de origem popular. 

Cariry chegou a oferecer aparelhos de sua produtora para proporcionar melhor qualidade aos filmes, mas sem se intrometer no tema ou direção. Como resultado, veio “Cadê meu zóculos?”, justamente o premiado em Jericoacoara.

Nos últimos anos, o cinecordel de Forquilha também foi beneficiado com apoio financeiro das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo. Hoje, munido apenas de uma “maquininha que não é profissional” e um computador, a perspectiva é continuar. “Vamos fazer uma fundação cultural aqui, e lá vai ter um estúdio de gravação para os filmes”, adianta Josafá.

Josafá Duarte segura dois prêmios
Legenda: Josafá mostra prêmios já conquistados, como Festival de Jericoacoara e Cine Ceará
Foto: Davi Rocha

Em 2023, por sua contribuição, o cineasta foi um dos cinco homenageados com o Troféu Eusélio Oliveira na 33ª edição do Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema. Neste mês, ele também será personagem de um episódio da websérie “Nós no Batente”, produzido pelo Hub Cultural Porto Dragão, vinculado à Secretaria da Cultura do Ceará (Secult).

“Os filmes já foram exibidos na Alemanha, em Portugal, no Uruguai… Quer dizer, pegou uma proporção bem interessante”, diz Josafá. “Acho que isso é que tem chamado atenção do Ceará e do mundo lá fora: a gente faz um cinema popular voltado para as realidades locais, para a política local”. 

Parte dos filmes pode ser vista no canal do Forquilha CineCordel no YouTube. 

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