Cedeca completa 30 anos atuando com famílias vulneráveis no CE: ‘defender quando o Estado é violador

Acesso à educação e a iniciativas de saúde mental são nortes para os próximos anos da organização social

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com
Mara Carneiro, coordenadora no Cedeca Ceará, concedendo entrevista
Legenda: Mara Carneiro, coordenadora no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca Ceará)
Foto: Fabiane de Paula

Num momento, a assistente social Mara Carneiro estava dentro de um ônibus com mais de 40 adolescentes vítimas de violência. Em outro, atendia casos de bebês já marcados pela crueldade presente na própria casa. As situações são parte do cotidiano de trabalho da coordenadora no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca Ceará), que completa 30 anos de atuação em 2024.

Nesta semana, a iniciativa recebeu homenagem da Assembleia Legislativa (Alece) e lançou a nova identidade visual, abrangendo as diversas identidades de crianças e de adolescentes. As transformações são constantes na organização da sociedade civil voltada para a garantia dos direitos humanos. Mas algo não muda.

“Nós trabalhamos com o entendimento de que a missão do Cedeca é defender os direitos quando o Estado é o violador”, resume Mara em entrevista ao Diário do Nordeste, sobre o acompanhamento de vítimas e famílias em situação de vulnerabilidade no Ceará.

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Criado três anos depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, o Cedeca esteve presente em casos históricos de violência, começando pela chacina do Pantanal, em novembro de 1993, e na luta judicial por vagas de creches em Fortaleza, em 2019.

chacina do Curió, em novembro de 2015, quando pelo menos cinco adolescentes estavam entre os mortos, e o caso nomeado de #ExposedFortal, em meados de 2020, que revelou crimes sexuais contra jovens, também são exemplos dos casos acompanhados pelo Cedeca.

Para isso, uma equipe formada por pouco mais de 30 pessoas oferece assessoria jurídica e psicossocial para cerca de 500 pessoas por ano. Em Fortaleza, são feitas atividades presenciais no Jangurussu, Bom Jardim, Pirambu e, há dois meses, no Vicente Pinzon.

O Cedeca funciona a partir de investimentos de organizações internacionais e editais para atuação social. A instituição tem apoio de grupos como Save The Children, ONU, Ford Foundation, Misereor, KNH e Open Society.

Confira os principais pontos da entrevista com a coordenadora do Cedeca, Mara Carneiro, ao Diário do Nordeste.

De modo geral, como funciona o Cedeca?

Geralmente, nós somos procurados pelas famílias em situação de violência, quando elas não conseguem acessar os desdobramentos daquela questão. A gente acompanha diversos casos, e o nosso monitoramento, sobretudo em casos de assassinato, é mais secundário – até porque nós fazemos parte de um conselho do Comitê Estadual de Prevenção à Violência, vinculado à Assembleia Legislativa.

Esse comitê tem produzido diversas estatísticas e números sobre crianças e adolescentes. O nosso acompanhamento também se dá através dos dados oficiais da Segurança Pública e nós temos pinçado e dado ênfase na sociedade para dizer: ‘olha, isso não é normal. Não é natural que crianças e adolescentes tenham um índice de homicídios tão alto.

Nós temos trabalhado dessa forma e monitorado, sobretudo, o que é capaz de enfrentar essa violência. O próprio Comitê de Prevenção fez uma pesquisa, em 2015, listando 12 evidências do que deixa uma criança vulnerável à violência letal.

Entre as evidências, nós vamos ter: mais da metade das crianças e adolescentes assassinados estavam fora da escola há pelo menos seis meses; mais da metade desse público nasceu quando as mães eram adolescentes e não tinham uma rede de apoio e mais da metade não frequentou creche na primeira infância.

Essas evidências dizem do abandono do Estado, que não tem realizado as políticas públicas necessárias para criar uma ambiência, desconstruir a violência que tem nas comunidades e, dessa forma, prevenir a violência letal.

Nós temos uma inversão: como o Estado aparece nas comunidades? É pelo braço armado, seja na Segurança Pública, inclusive com a violência policial. Temos um grande número de tortura, de homicídios provocados pela polícia contra crianças e adolescentes, e também pelo próprio encarceramento.

Ao invés de promover os direitos, de promover a vida, nós temos um Estado que se retira dos direitos. Todas as violências variadas possíveis surgem e vem a força repressora ou encarceradora. Nós queremos o contrário e todo o nosso trabalho, seja na comunidade formando os adolescentes para que eles lutem pelos seus direitos ou atendendo as vítimas, fazendo pesquisas, dialogando com o Estado, com o Judiciário e com o Parlamento, vem para inverter essa ordem.

Mara Carneiro, coordenadora no Cedeca Ceará, concedendo entrevista
Legenda: "A missão do Cedeca é defender os direitos quando o Estado é o violador", diz a Mara Carneiro
Foto: Fabiane de Paula

Qual o perfil das vítimas, os casos mais recorrentes e o acompanhamento feito pelo Cedeca?

As vítimas de violência letal, infelizmente, não têm uma diferença grande em todo o Brasil. Temos um perfilamento racial absurdo, o racismo estrutura a sociedade brasileira, inclusive as violências. No Ceará, mais de 80% das vítimas são pessoas negras e, no caso dos adolescentes, são meninos. A ampla maioria é de moradores de áreas vulneráveis e periféricas. São pessoas desassistidas das mais variadas políticas públicas.

O nosso atendimento depende da demanda que vem da família, mas temos um atendimento com serviço social, psicológico e jurídico.

Temos os chamados ‘casos emblemáticos coletivos’, como o exemplo do Curió. Nós atendemos aquelas famílias, fizemos um atendimento psicossocial e jurídico – fazendo uma intermediação com o Ministério Público e com a Defensoria Pública. Nós também fizemos um trabalho de quase 10 anos de reunir o grupo para contribuir com uma assessoria para que elas mesmas (mães das vítimas) tivessem a capacidade de lutar pelo direito dos seus filhos.

Eram mães que estavam em luto e fragilizadas, por isso a grande frase delas é: transformamos o luto em luta. Isso tem a ver com a nossa assessoria, não é só fazer o trabalho, mas dar autonomia para os sujeitos.

Esse foi o diferencial do caso Curió, dentre vários casos parecidos que o Cedeca acompanha: o fato das mães terem se organizado. Esse trabalho envolveu assessoria do grupo, assessoria de comunicação, formação: ‘olha a lei diz isso, o que aconteceu foi isso, o processo dizia isso…’. Um trabalho de formar para que elas entendam o que aconteceu, quais direitos foram violados, quais direitos que elas têm a partir disso.

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Além das mortes, quais são as outras formas de violência que chegam até ao Cedeca?

Isso é bem importante, porque nós trabalhamos com o entendimento de que a missão do Cedeca é defender os direitos quando o Estado é o violador. Essa violação não é só a violência direta, quando o policial comete um homicídio, entendemos como violência o não fazer a obrigação. É uma omissão.

Por isso, o Cedeca trabalha tanto com direito à Educação, direito socioassistencial, direito à Saúde. No Ceará, nós temos 373 mil crianças e adolescentes em idade escolar fora da escola. Por mais que o Estado seja falado, nacional e internacionalmente, como uma educação exemplar, nós temos algumas discordâncias em alguns níveis, inclusive no acesso. Nós ainda não completamos a universalidade do direito à Educação.

Chegam muitas denúncias de pessoas que não conseguiram matricular os filhos e, geralmente, esse filho é de alguma comunidade e a escola não tem transporte escolar, ou é uma criança com deficiência e, ilegalmente, algumas escolas querem negar a matrícula.

Equipe do Cedeca posa na entrada do Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota
Legenda: Visita de equipe do Cedeca ao Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota
Foto: Arquivo/Cedeca

Então, o Cedeca age para garantir aquela matrícula de forma individual. No entanto, há situações em que os casos são coletivos, como o estudo que fizemos da situação de creches em Fortaleza. Naquele momento, havia 10 mil crianças sem creches e fizemos uma articulação com o Ministério Público, entramos com uma Ação Civil Pública, ganhamos em duas instâncias e a Prefeitura é obrigada a cumprir isso.

Começaram a ser construídas creches e veio a música ‘foi a prefs que fez, foi a prefs que fez’ (um jingle da atual gestão municipal), mas foi a gente e o Ministério Público que ‘mandou’, porque a obrigação de fazer já estava lá e não estava sendo feita. A partir da Ação Civil Pública começa a se implementar várias creches municipais.

Nós transformamos uma impressão ao ver diversas demandas de creche em casos individuais, e vimos que o problema não era negar a matrícula, era porque não tinha vaga. Fomos investigar a população, os orçamentos públicos e entramos com a ação.

Esse é o tipo de trabalho que o Cedeca faz, que muitas vezes começa com um caso individual e avaliamos que é de uma população sem acesso. Tem-se ampliado o número, mas ainda não chegou a cumprir a demanda de 10 mil vagas, por isso a gente continua monitorando o cumprimento dessa ação.

A saúde mental entrou nas atividades do Cedeca há dois anos. Quais são as demandas e as ações nesse período?

Os casos que nos chegavam, inclusive de vítimas de violência sexual, nós fazíamos todos os procedimentos, mas pensávamos: onde ela vai ser atendida? Uma mãe que perdeu o filho assassinado, chegava para o atendimento e não tínhamos para onde encaminhá-la…

O Cedeca não pretende substituir política pública, nós temos psicologia no nosso serviço, mas no entendimento que é um acolhimento, uma terapia focal breve enquanto a pessoa consegue o atendimento na rede pública. Nós não queremos substituir o Estado, pelo contrário, brigamos para que ele faça (políticas públicas).

Nós acompanhamos mais de 100 adolescentes em quatro bairros de Fortaleza, e alguns estavam em situação de sofrimento, início de depressão ou de ansiedade, situações de automutilação e que também não conseguiam atendimento.

Outra situação são os adolescentes do sistema socioeducativo, monitoramos a políticas dos adolescentes privados de liberdade com tentativa de suicídio e automutilação. Começamos a fazer o monitoramento do orçamento público de Fortaleza para a política de saúde mental e todas as portarias do Ministério de Saúde sobre o que deveria ser a Rede Caps (Centro de Atenção Psicossocial).

Vimos que há uma defasagem, nós temos uma pesquisa sobre isso, porque só tinham dois Caps Infantis e agora são três, mas deveriam ter 16. Então, só em Fortaleza, temos uma defasagem de 13 Caps Infantis e, por isso, a demanda chega por todos os lados, porque falta. Com a pandemia, isso (problemas de saúde mental) estourou para todo mundo e veio à tona como o grande tema atual e que falta política pública.

Temos feito articulações com alguns parceiros, participado de audiências, conversando e tentando criar um campo. Estamos estudando uma possibilidade, a exemplo do que aconteceu com as creches, de fazer um ajuizamento da ação.

É importante dizer que a gente não ajuíza qualquer coisa, temos um princípio de uma litigância estratégica, um processo judicial demora muitos anos. Temos ações judiciais de 2009, muito antigas, que até hoje estão em julgamento. É importante no sentido da preocupação política, mas há uma morosidade do judiciário. Na medida do possível, a gente consegue avançar.

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Quantas pessoas são atendidas e como vocês conseguem manter o Cedeca de pé, no sentido de custos logísticos e de financiamento?

Em 2023, somando os adolescentes atendidos cotidianamente – algo que perpassa anos – são em torno de 500 pessoas por ano, de quem temos uma interlocução mais direta, mas temos os casos indiretos. Quando a gente ganha uma ação civil que vai beneficiar 10 mil pessoas, o caso é exemplar e a gente não consegue calcular o nosso impacto.

Nós fazemos avaliações externas e as consultorias feitas ao longo dos anos mostram que o trabalho do Cedeca é de grande impacto. E, sim, é muito difícil manter o Cedeca, porque diferente de outras organizações que as pessoas acham o trabalho interessante e doam porque olham diretamente, o nosso trabalho é muitas vezes difícil de traduzir.

No entanto, temos um impacto estruturante porque ele muda a política, muda a visão das pessoas e de uma forma mais massiva.

A gente sobrevive hoje de projetos que a gente submete e de ONGs internacionais que têm aportado, historicamente, no trabalho do Cedeca. Não é fácil, porque ao mesmo tempo que temos de fazer a luta diretamente para crianças e adolescentes, tem um outro lado do Cedeca que ninguém vê da gente buscando apoio para conseguir financiar nossas ações.

Profissionais do Cedeca posam ao lado do ministro Silvio Almeida
Legenda: Visita do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, à sede do Cedeca
Foto: Arquivo/Cedeca

Nesse momento de balanço dos 30 anos de atuação, o que o Cedeca enxerga como os objetivos para os próximos anos?

O Cedeca trabalha com planos estratégicos, temos uma política de Planejamento, Monitoramento e Avaliação muito séria. Avaliamos isso a partir da teoria da mudança, tentando ver sobretudo quais são os impactos e os efeitos. ‘Isso mudou a vida das crianças ou não mudou?’.

O nosso olhar é muito direcionado para a mudança real, para o efeito e impacto na vida das crianças e comunidades com políticas públicas. Nosso planejamento atual vai até 2026 e, obviamente, fazemos a prospecção de outros anos.

O desafio da violência é um tema chave porque, eventualmente, nós não vamos conseguir resolver. O tema da violência institucional – violência policial, tortura… – vai ficar. Nós temos um sonho que ainda não conseguimos apoio de trabalhar mais com os princípios do Protocolo de Istambul para a questão da tortura.

O tema da saúde mental com certeza vai estar para os próximos anos, o tema da educação e do socioeducativo vão continuar. Uma mudança, talvez, seja a parte da escala (de atuação). Nós começamos um trabalho de articulação, muito na base e nas comunidades, com o tempo fomos conseguindo impactar a política pública e hoje o Cedeca tem estado no cenário nacional e internacional.

O que a gente busca não é sair do território, porque é lá que estão as nossas crianças e adolescentes, nada para eles sem eles. Então, a participação é importante, mas queremos escalar a presença no cenário nacional e internacional, entendendo que o Cedeca tem uma expertise que é importante para outras organizações da infância e que muitos dos nossos casos não conseguem ser resolvidos em nível estadual e precisamos de outras formas de articulação.

Mara Carneiro, coordenadora no Cedeca Ceará, concedendo entrevista
Legenda: O Cedeca Ceará oferece atendimento com serviço social, psicológico e jurídico
Foto: Fabiane de Paula

Qual um exemplo dessa articulação internacional?

Nós temos um caso em medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da grande crise do Sistema Socioeducativo, entre 2013 e 2015, que está sob monitoramento. Estamos indo em setembro para Genebra (na Suíça) participar da audiência com a Organização das Nações Unidas para avaliação do cumprimento da convenção internacional dos direitos das crianças e o Cedeca faz parte da delegação brasileira. Nós acreditamos que essa experiência pode qualificar e aumentar nossa presença nesses espaços que são importantes para a garantia de direitos.

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