Calango do CE de mais de 100 milhões de anos entra em acervo do Museu Nacional no RJ

Fóssil de lagarto é semelhante a espécime destruído em incêndio no equipamento, em 2018

Escrito por
Nícolas Paulino nicolas.paulino@svm.com.br
Ilustração paleoambiental mostrando o lagarto fóssil Calanguban alamoi em um ecossistema do período Cretáceo, cercado por vegetação primitiva e insetos.
Legenda: Reconstrução imagética de como seria o calango em ambiente natural do período Cretáceo Inferior
Foto: João Eudes

O Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), um dos mais antigos da América Latina, reabrirá as portas em breve após um incêndio que devastou o antigo acervo, em setembro de 2018. Com a recuperação, também se renovaram as peças, muitas delas oriundas de doações. Uma delas é o fóssil de um calango cearense que viveu há mais de 100 milhões de anos: o Calanguban alamoi.

O exemplar pertencia ao suíço-alemão Burkhard Pohl, fundador do Interprospekt Group e um dos principais colecionadores de minerais e gemas da Europa. Ao todo, o Museu recebeu mais de 1.100 peças originárias da Bacia do Araripe, localizada entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, onde estão as formações Crato e Romualdo.

Como o MN possui parceria com a Universidade Regional do Cariri (Urca), da rede estadual do Ceará, desde os anos 1990, uma pesquisadora foi enviada para estudar a peça e catalogá-la para compor o acervo em reconstrução.

Na Urca, o Laboratório de Paleontologia é coordenado pelo professor Álamo Feitosa Saraiva, que em 2024 foi agraciado com o prêmio Morris F. Skinner, considerado o “Oscar” da área. Ele também contribuiu para a redescoberta do Calanguban, com apoio da então mestranda Ednalva da Silva Santos.

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À época, eles pensavam que o calango guardado no Museu - transformado em cal após a carbonização - era o único exemplar existente no mundo, por isso a grande surpresa de encontrarem outro espécime preservado na rocha.

Segundo Álamo, em entrevista ao Diário do Nordeste, tudo foi uma série de acasos. Ednalva estava com o projeto de mestrado atrasado porque o material que analisaria, uma coleção de anuros (sapos e pererecas), não chegava da França. Com o prazo correndo, a orientanda precisaria mudar o objeto de pesquisa.

Foi justamente no período em que a doação de Pohl chegou para o Museu. Assim que bateu o olho, Ednalva se espantou: seria, de fato, outro Calanguban. A partir dali, começava um intenso processo de pesquisa do material original para cruzar as informações e registrar a descoberta.

Durante o processo, Álamo foi aos Estados Unidos e reencontrou o brasileiro Tiago Simões, pesquisador da área de Paleozoologia na Universidade de Princeton, com foco em squamatas (animais da ordem de serpentes e lagartos).

“Falei para ele: ‘você tem que me ajudar porque você é especialista em calango, e minha aluna precisa de ajuda pra salvar o mestrado dela’. Sentei uma manhã com ele, e ele confirmou que era o Calanguban”, conta o professor.

Simões entrou no trabalho como coautor porque fez a filogenia do espécime, ou seja, o estudo da história evolutiva entre grupos de organismos. Álamo ficou como supervisor. E, finalmente, Ednalva tornou-se mestra, inclusive recebendo um prêmio por melhor apresentação de trabalho de pós-graduação na Paleo Nordeste 2024, em Natal (RN).

A imagem mostra dois fósseis bem preservados de lagartos lado a lado em uma rocha clara, com detalhes visíveis dos ossos e membros. Eles pertencem à espécie extinta Calanguban alamoi, encontrada em formação rochosa do Ceará.
Legenda: Imagens ampliadas do fóssil do Calanguban alamoi feitas em laboratório para estudo técnico
Foto: Reprodução/Acervo da pesquisa

Nome é homenagem a professor

O curioso é que o nome científico do calango cearense é uma homenagem ao próprio Álamo, que também foi surpreendido com o batismo.

Tudo começou em 2013, quando uma equipe do Museu Nacional e estudantes da Columbia University estiveram no Cariri para um trabalho de campo. Como era mês de outubro, um dos meses mais quentes no Ceará, muitos estrangeiros acostumados ao clima mais frio sentiram desconforto térmico.

“Bebam água, tenham cuidado, procurem sombra”, insistia Álamo com os alunos. Bastaram essas recomendações para ele receber um título: “o senhor parece um pai para a gente, cuidando dos filhos mais jovens”, disseram.

Uma menina reparou: “mas o senhor não bebe água”. Já acostumado ao calor, o professor brincou: “eu sou um calango da caatinga”. 

Foto do professor Álamo Saraiva sorridente, usando um chapéu, sentado ao volante de uma caminhonete Hilux do Governo do Estado do Ceará, usada em atividades da Secretaria da Ciência, Tecnologia e Educação Superior. Ao fundo, vê-se uma paisagem rural com vegetação seca.
Legenda: Natural do Crato, Álamo Saraiva foi pioneiro em escavações paleontológicas na Bacia do Araripe e hoje coordena o Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri
Foto: Arquivo pessoal

Pouco depois, um dos pesquisadores brasileiros, Alexander Kellner - hoje diretor do MN -, que estava no grupo, procurou Álamo para mencionar um material do Cariri guardado no Museu que ninguém sabia dizer o que era. Um lagarto “muito apagado”, mantido na instituição desde os anos 1960.

“O Tiago [Simões] disse que era espécie nova, que legal! Pra minha surpresa, saiu o artigo publicado falando do novo calango do Araripe. Quando olhei, tinha meu nome. Virei calango!”, relembra, rindo.

O nome científico, oficializado em 2014, era formado pela junção de “calango” com “ubã”, que significa “pai” em tupi-guarani.

A alegria, porém, durou pouco. Em 2018, o Museu Nacional era consumido por um incêndio grandioso que destruiu cerca de 90% do acervo. No meio de tudo, o Calanguban alamoi se desfez em pó branco de cal. “Minha espécie tinha se perdido”, lamenta o professor.

Peça será nova referência da espécie

Era o fim do holótipo, termo da biologia que descreve um espécime único escolhido como a representação oficial e padrão de uma espécie. Ele funciona como uma referência para a descrição e nomeação da espécie, servindo como base comparativa.

Contudo, a equipe envolvida na análise da peça que veio da Alemanha criou um neótipo - um substituto de base para a descrição da espécie. 

De certa forma, os trabalhos se complementaram. O calango estudado em 2023 possuía uma melhor preservação dos ossos cranianos e de outras estruturas não preservadas no holótipo, como a cintura pélvica.

Foto mostra a pesquisadora Ednalva Santos em laboratório utilizando um microscópio e um notebook para analisar material fóssil. Ela veste jaleco branco e trabalha concentrada em um ambiente científico equipado. Ednalva é uma mulher negra e magra, e tem cabelos curtos com mechas verdes.
Legenda: Ednalva durante a pesquisa em laboratório para descrever o neótipo do Calanguban alamoi
Foto: Arquivo pessoal

“Quando a gente trabalha com Paleontologia, sempre é muito complicado. Às vezes, os materiais são muito fragmentados. Acho que a gente teve muita sorte com essa doação porque o material é muito bom mesmo, bem completinho. Faltam poucos ossos, mas dos que faltam, a gente já tinha informações do anterior”, explica Ednalva.

Álamo reforça: Paleontologia é trabalhosa e leva tempo, não adianta só observar. Como os fósseis da Formação Crato estão comprimidos na rocha, são quase uma impressão em baixo relevo. É preciso fazer esforços de filogenia e tentar tridimensional os espécimes. 

Calango escalador de árvores

Segundo os estudos, os escamatas apareceram pela primeira vez na América do Sul durante o Cretáceo Inferior - período que sucedeu o Jurássico, conhecido pelos grandes répteis, incluindo os dinossauros. O registro mais antigo confirmado é da Formação Crato, no Nordeste do Brasil.

Ednalva explica que, nessa linhagem evolutiva, o Calanguban alamoi viveu entre 110 e 115 milhões de anos atrás. O exemplar media apenas 7 centímetros e indica que tinha hábitos escansoriais, ou seja, costumava escalar árvores.

“No Araripe, a maior parte dos bichos, tirando os pterossauros que eram maiores, eram bem menores, porque o ambiente era muito árido, muito difícil”, detalha a mestra em Diversidade Biológica e Recursos Naturais.

Possivelmente, ele se alimentava de pequenos insetos e tinha hábitos de ficar escondido em árvores, também pequenas à época.

Pela análise filogenética, os pesquisadores ainda descobriram que ele é um primo extinto dos teiús, ou tejus, lagartos sul-americanos que atualmente podem medir até 2 metros de comprimento devido à longa cauda.

“A gente sabe que a espécie já existiu porque tem material que comprova a existência dela. Então, esse é um documento científico extremamente importante”, orgulha-se Ednalva.

Reabertura do Museu Nacional

Neste mês, o Museu reabriu temporariamente para a exposição "Entre Gigantes: Uma Experiência no Museu Nacional", com três ambientes. Os mais de 12 mil ingressos já foram esgotados.

Os visitantes poderão ver ações de restauro, o esqueleto de um cachalote de 15,7 metros e o meteorito de Bendegó, que, com mais de cinco toneladas, é o maior já encontrado no Brasil.

Em setembro, o Museu fechará novamente para a conclusão do restauro dos ambientes. A reconstrução conta com R$ 100 milhões em apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e já captou mais de R$ 347 milhões no total.

A expectativa do Governo Federal é atrair mais parceiros estatais e privados para garantir os recursos no menor prazo possível, permitindo finalizar as obras para visitação pública até 2026. 

Segundo o professor Álamo Saraiva, a Urca tem contribuído tanto com os estudos das peças quanto com a doação de fósseis da bacia do Araripe. “A gente tem que zelar e refazer o seu acervo. Nesse ano, já doamos cerca de 30% dos peixes e camarões que temos. Estamos só esperando que tenha uma oportunidade de transporte”, afirma.

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