42 anos após 1º caso de aids no CE, uso de camisinha e educação sexual ainda desafiam prevenção
Estado notifica casos da doença há mais de 40 anos, mas transmissão se mantém estável.
O primeiro caso confirmado de aids no Ceará ocorreu em 1983, segundo a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa). Mais de 40 anos depois, o Estado precisa lidar com o desafio de cerca de 30 mil pessoas vivendo com HIV e aids, um alto índice de diagnósticos tardios e falta de adesão entre os jovens de medidas de prevenção sexual.
Vando Oliveira, coordenador da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/aids no Ceará (RNP+CE), observa que o grupo de apoio tem recebido encaminhamentos de um público variado, mas crescente entre mulheres e jovens na faixa etária de 15 a 29 anos.
A falta de prevenção eficaz leva a um dado alarmante: 31% dos casos diagnosticados no Ceará este ano são de pessoas já com aids, diagnosticadas com CD4 (células de proteção) abaixo de 200 - ou seja, com imunidade muito baixa e alto risco de infecções oportunistas graves. O dado é do mais recente boletim epidemiológico da Sesa, publicado em 1º de dezembro.
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Para Vando, o grande desafio hoje reside na incapacidade de se abordar educação sexual e prevenção dentro das escolas, já que o sexo ainda é encarado como tabu. Ele lamenta que, apesar do grande avanço no tratamento da doença, a nova geração não conhece a realidade que se viveu nas décadas de 1980 e 1990, quando a aids era altamente letal.
“Se tivesse todo um acompanhamento, uma campanha de informação, de prevenção de verdade, como deveria acontecer, certamente a nossa demanda era menor e os números também”, afirma Vando.
As observações dele são confirmadas por Antonio Silva Lima Neto, o Tanta, secretário executivo de Vigilância em Saúde da Sesa. Para o epidemiologista, o debate sobre a prevenção precisa ser “refundado” para lembrar à população sobre os riscos da infecção.
Tanta sabe do que fala: ele conta que, em 1992, foi interno do Hospital São José (HSJ), referência estadual no tratamento de doenças infecciosas. Era o auge da aids numa época de “altíssima letalidade”.
Ele lamenta que, hoje, "ninguém lembra mais de camisinha", já as pessoas podem achar que estão seguras e esquecem da prevenção em situações de maior exposição.
A negligência com o preservativo, lembra o secretário, tem reflexos em outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), como a sífilis, que se tornou uma “epidemia silenciosa” no Brasil. Essa doença, por exemplo, não tem vacina. Em mulheres grávidas, pode levar à sífilis congênita, com repercussões no desenvolvimento do bebê, ou mesmo ao óbito fetal.
Historicamente, HIV e aids foram atreladas ao público de homens que fazem sexo com homens (HSH). Mas o secretário alerta: “entre os pacientes heterossexuais também está aumentando, já está com mais de 30%. Então, acho que são temas que a gente precisa recuperar”.
Assim como Tanta, o médico infectologista Alex Freitas suspeita que o fato de a doença estar "bem controlada" encoraja as pessoas a não se protegerem, pensando que podem “resolver o problema depois”. O risco dessa atitude, reforça, é a exposição a outras ISTs.
Freitas argumenta que a negligência quanto ao uso da camisinha não pode ser atribuída à falta de conhecimento ou de dinheiro, uma vez que as camisinhas são amplamente divulgadas e ficam disponíveis gratuitamente nos postos de saúde.
Estigma social permanece
Apesar do baque de um diagnóstico positivo, o HIV deixou de ser uma sentença de morte. O infectologista destaca o enorme avanço clínico na área comparando o cenário atual com as décadas anteriores.
Antes se usava o famoso coquetel, que resolvia pouca coisa e causava muitos efeitos colaterais. Hoje, você usa os remédios mais modernos e a perspectiva de vida da pessoa é outra, é muito melhor.
O especialista acrescenta que, atualmente, “só morre de HIV quem não sabe que tem a doença ou que não quer fazer nenhum tipo de tratamento”. No entanto, o estigma e o preconceito persistem, sendo comum pacientes relatando não conseguir emprego após revelarem o diagnóstico.
Ganho na qualidade de vida
A perspectiva de qualidade de vida para quem adere ao tratamento é altíssima. Alex Freitas esclarece que, desde que a pessoa esteja com a carga viral indetectável e bem controlada clínica e laboratorialmente, ela pode ter relações sexuais sem preservativo sem transmitir a doença.
Isso, inclusive, permite a formação de famílias onde apenas um parceiro vive com HIV. Além da vida sexual normal, o tratamento bem-sucedido com acompanhamento médico permite que mulheres com HIV engravidem.
Atualmente, essas mães não podem amamentar e recebem fórmula especial fornecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas há pesquisas em andamento que sinalizam uma futura liberação da amamentação.
Outro avanço, aponta o médico, foi a chegada da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e da Profilaxia Pós-Exposição (PEP) também ao SUS. Entenda a diferença:
- PrEP: medicação que deve ser tomada antes da relação sexual para prevenir a infecção e é indicada para pessoas em risco aumentado para a infecção, como homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, profissionais do sexo e casais sorodivergentes;
- PEP: recomendada após a situação de risco para a infecção para impedir que o HIV se estabeleça, como relação sexual desprotegida, violência sexual ou acidente com materiais perfurocortantes, devendo ser administrada em até 72 horas após a exposição.
Vando Oliveira, da RNP+CE, defende que o ideal é disponibilizar a PrEP e a PEP em todas as unidades básicas de saúde e ampliar a testagem, pois quanto mais se testa, mais se diagnostica e mais cedo se inicia o tratamento.
Ampliação da rede de saúde
Para enfrentar a dificuldade de acesso e os altos números de diagnósticos tardios, o coordenador também sugere a ampliação e a descentralização da rede de saúde. Segundo ele, o Hospital São José está “superlotado”, por isso é necessário abrir mais serviços para evitar que as pessoas viajem longas distâncias.
Para facilitar o atendimento dessa população, a Sesa instalou um novo Serviço de Atendimento Especializado (SAE) na Policlínica de Caucaia, para atender até 80 pacientes por mês, encaminhados pelas redes municipais de 10 cidades da área.
Vando contabiliza que esse é o 33º serviço de atenção criado no Estado. O número ainda fica distante do total de 184 municípios cearenses.
Também membro do Conselho Estadual de Saúde (Cesau), ele defende a replicação desse modelo de policlínicas de referência - pelo menos um em cada uma das cinco regiões de saúde - para que mais pacientes tenham acesso ao tratamento.