Zé Celso e Teatro Oficina marcaram o Tropicalismo com peças que provocaram o Brasil

Trabalhos possuíam alta voltagem crítica sobre a burguesia brasileira e as relações com o capital estrangeiro

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Zé Celso poderia montar qualquer coisa, qualquer texto, que sua marca antropofágica estaria latente, aponta estudioso
Foto: Fabio Lima/ Agência Diário

Zé Celso Martinez fez do palco uma arena de ideias. Com o Teatro Oficina – criado por ele, localizado em São Paulo – o ator, diretor e dramaturgo falecido nesta quinta-feira (6) marcou movimentos como o Tropicalismo a partir de peças que questionaram, criticaram e provocaram o Brasil.

Um dos grandes marcos das Artes Cênicas brasileiras, “O Rei da Vela”, pertence a esse período e é celebrado por gerações de artistas e espectadores até hoje. A peça estreou em 1967 na capital paulista, mas foi escrita 30 anos antes por Oswald de Andrade (1890-1954), grande nome do Modernismo.

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No tablado, a ideia da antropofagia de Oswald seria completamente engolida por Zé Celso, definindo, a partir dali, a “cara” do Teatro Oficina. Quem contextualiza esse cenário é Levy Mota, artista do Teatro Máquina e coordenador do Laboratório de Teatro na Porto Iracema das Artes. Segundo ele, não há dúvida de que a grande carnavalização promovida pelo Oficina com “O Rei da Vela” influenciou os músicos tropicalistas.

“Não sou um estudioso do Tropicalismo, mas sei que os grandes álbuns e canções que marcam o movimento são de 1968, como ‘Tropicália ou Panis et Circencis’, dos Mutantes, e o primeiro disco solo do Caetano, que abre com a faixa ‘Tropicália’ e traz ‘Alegria, Alegria’”, diz. “Inclusive, a capa do álbum ‘O Estrangeiro’, do Caetano, já do final da década de 1980, é justamente um desenho original da cenografia d'O Rei da Vela”.

Legenda: Capa do disco "O Estrangeiro", de Caetano Veloso, traz desenho original da cenografia do espetáculo "O Rei da Vela"
Foto: Divulgação

O espetáculo misturava estilos, formas, cores, musicalidades, tempos e brasilidades, numa debochada denúncia à ditadura. Esse escárnio, a possibilidade do riso e do cômico, talvez seja uma das grandes revoluções instauradas pelo Oficina: mostrar que o teatro político não precisa ser tão sério. Ou que o riso tem poder de ação política no teatro, coisa que o alemão Bertolt Brecht (1898-1956) já sabia, mas que muitos dos seus seguidores esqueceram.

“Dentro desse recorte tropicalista de trabalho do Zé, eu destacaria muito mais a forma do que os temas. Zé Celso poderia montar qualquer coisa, qualquer texto, que sua marca antropofágica estaria latente”, situa Levy.

Corpos em liberdade

Nesse sentido, o artista fala, principalmente, da disponibilidade dos corpos na cena, de uma total liberdade – seja na relação dos atores e atrizes entre si, seja com o público. Sentimento traduzido na forma de olhar, no toque, no convite ao jogo, ao encontro e à troca.

Não à toa, dentre os inúmeros legados de Zé para o teatro, Levy Mota enfatiza a retomada da característica ritual do teatro, que talvez tenha passado muito tempo esquecida – ou pelo menos minimizada – por uma pretensa intelectualidade burguesa. 

Legenda: Para Zé, o Tropicalismo era interligado ao movimento da terra em transe e da terra destinada a realizar uma revolução social
Foto: Reprodução/YouTube

“Quando falo de ritual aqui não quero dizer, necessariamente, de características emprestadas ou inspiradas em rituais ou religiosidades específicas, mas de um teatro que considere o público como parte fundamental do seu acontecimento e não apenas como ‘destinatário’ da ação ou do texto”, explica Levy.

“E que opere sempre num nível radical de presença e de verdade, no sentido da experiência: um teatro que não seja falso (mesmo que seja farsesco ou debochado). Que os corpos atuantes o sejam por inteiro”.

Cultura da descolonização

Em texto escrito pelo próprio Zé Celso para o projeto Tropicália, da artista musical Ana de Oliveira, o dramaturgo aborda as próprias questões com o Tropicalismo. Começa citando as canções “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, e “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil. Foram elas as responsáveis por permitir ao diretor a “consagração da palavra”.

Na sequência, conta da experiência com a já citada “O Rei da Vela”. Segundo ele, naquele momento de apresentação da peça, eles transformaram o Oficina em um espaço de “domingo no parque”, um espaço de alegria. 

“Esse espaço hoje é o terreiro do Modernismo, do Tropicalismo. Temos aqui um teto móvel que abre para céu, é um teatro que tem seu próprio céu. O Teatro Oficina é um espaço bárbaro e tecnizado: Tropicalista”, frisou.

“Dediquei a montagem de ‘O Rei da Vela’ ao filme ‘Terra em Transe’, de Gláuber Rocha, porque o país, como a terra inteira, estava em transe, próximo de uma revolução cultural e social. E, naquele momento, o filme surgiu com uma grande revelação sismográfica desse terremoto que depois foi absolutamente contido por uma contra-revolução, por um golpe militar e depois pela implantação de um modelo neocolonial globalizador”.

Para Zé, o Tropicalismo era interligado ao movimento da terra em transe e da terra destinada a realizar uma revolução social, algo que trouxesse a igualdade e a soberania cultural. Era um movimento a ser completado.

Também representava a cultura da descolonização e da libertação das forças vitais dos países ensolarados que durante o século passado foram colonizados e que, naquele momento, estavam sendo recolonizados pela cultura hegemônica americana. 

“O fundamento no Tropicalismo é a antropofagia, e só a antropofagia nos une. Então, nesse sentido, é como o marxismo também: você só entende o marxismo se está em movimento, se está em luta. Se não está em processo de devoração cultural, de criação cultural, você não percebe o tropicalismo. Não adianta estudar ele como uma coisa morta. Há que se conseguir pensar na terra em transe, pensar plugadamente. (...) O Tropicalismo tem que ser apreciado no que ele tem exatamente de eterno, de quase universal, de mais nietzchiano, de mais vital”.

Poética própria

Também ator, diretor e dramaturgo, o cearense Ricardo Guilherme endossa o panorama ao definir Zé Celso como um teatrólogo iconoclasta desde sempre, antenado com as revoluções das vanguardas europeias.

“Ele começou a carreira rastreando as poéticas de Stanislavski, Artaud, Brecht e Grotowski, mas filtrando e reprocessando essas informações para criar uma poética dele, própria – algo que eu diria ser culturalmente antropofágico, tão ligado a Oswald de Andrade – mas teatralmente também autofágica e politicamente transgressora”.

De acordo com o artista, isso fez com que o dramaturgo não fosse digerido tanto pela direita que se instalou no Brasil em 1964 a partir do golpe militar, quanto pela esquerda pré e pós Ato Institucional 5, em 1968, cujos parâmetros foram questionados.

Legenda: Conforme Ricardo Guilherme, a carreira de Zé Celso rastreou poéticas distintas, mas conseguiu filtrá-las e reprocessá-las para criar algo próprio
Foto: Fábio Lima/ Agência DN

Esse é Zé Celso, esse excelso. O excelso do excesso que é Zé Celso. Não o excesso no sentido daquilo que não deveria estar, mas no sentido de ele trabalhar com o over, com essa voz e presença ativa e incorporativa do público que foi e ainda está contra a corrente, como dizia a música ‘Roda Viva’.
Ricardo Guilherme
Ator, diretor e dramaturgo

Inclusive, “Roda Viva”, a peça, foi montada por ele. Zé Celso influenciou e foi influenciado pela Tropicália e pelo cinema arquetípico e ao mesmo tempo contemporaneamente nordestino, sacro e profano, utópico e pragmático, da política de Glauber Rocha. 

Tal estética não foi compreendida ou foi a muito esforço – num gesto que a imprensa chamava na época de Teatro da Agressão, tendo em vista romper com a relação epistemológica do espectador frente ao espetáculo. 

“O Zé Celso tirava o espectador da plateia e o colocava em cena, mexia com ele – inclusive e principalmente de forma sensorial, não apenas no sentido da visão, mas da fisicalidade total, do cheiro, do toque. Isso se acentuou em ‘Roda Viva’ e também esteve presente em ‘O Rei da Vela’, que se contrapôs àquele refinamento colonizado do teatro brasileiro de comédia, a menina dos olhos da elite paulistana de 1940 a 1960”.

O espetáculo divergiu até mesmo de algumas táticas teatrais e ideologicamente engajadas da luta contra o golpe militar. Assim, aponta Ricardo, o Teatro Oficina rompeu com a concepção judaico-cristã da cultura brasileira; carnavalizou a razão dialética de Brecht; subverteu uma certa alienação de zona sul, da Bossa Nova; e profanou um certo escotismo dos nacionalistas, enfrentando patrulhamentos ideológicos de todos os matizes. “Ele abrasileirou, atualizou, desmistificou e reescreveu cenicamente os atores que por ele passaram”, analisa.

“Portanto o nosso Zé Celso, naquelas celebrações dionisíacas que ele fazia a cada espetáculo, se tornou essa figura operisticamente brechtiana, esse euclidiano pós tudo que se transformou nesse darcyriberiano, nesse teatro pós tudo – pós Artaud, pós Grotowski. Um teatro trans, ou seja, que atravessa a peça que monta e que se impõe ao mixar e juntar os valores da contracultura a uma militância que eu diria progressiva e progressista do mundo”.

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