Morre Zé Celso, ator, diretor e dramaturgo que revolucionou o teatro brasileiro
O corpo dele foi atingido por queimaduras devido a incêndio no próprio apartamento, em São Paulo; legado do artista perpassa gerações a partir de incontáveis trabalhos e participações
Ícone do teatro brasileiro, o ator, diretor e dramaturgo Zé Celso faleceu nesta quinta-feira (06), aos 86 anos, em São Paulo. Ele estava internado na UTI do Hospital das Clínicas após ter 53% do corpo atingido por queimaduras devido ao incêndio ocorrido no próprio apartamento, na última terça-feira (4).
Nascido em Araraquara (SP), no ano de 1937, José Celso Martinez Corrêa sempre foi devotado à arte. O primeiro destaque como encenador veio na década de 1960. Por sua vez, nos anos 1970, influenciado pelas experiências da contracultura, ganhou realce como expoente da comunidade teatral.
Veja também
Montagens de criações coletivas sempre foram o forte do artista, cuja presença e atuação contribuíram com a história do teatro nacional, influenciando gerações. Zé Celso estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e participou do Centro Acadêmico 11 de Agosto, integrando o núcleo de estudantes que fundou o Grupo de Teatro Amador Oficina.
Os primeiros textos – “Vento Forte para Papagaio Subir” (1958) e “A Incubadeira” (1959), ambos autobiográficos – foram montados pela companhia, sob direção de Amir Haddad. Em 1962, o grupo passou por um processo de profissionalização e dedicou-se a montagens realistas. Uma de enorme projeção foi “Pequenos Burgueses”, do russo Máximo Gorki.
Isso porque, nela, Zé conseguiu estabelecer um interessante paralelo entre as perplexidades da Rússia pré-revolucionária e as de um Brasil às vésperas do golpe civil-militar, levando todo o elenco a desempenhos emocionantes. Segundo alguns críticos, é a mais perfeita encenação stanislavskiana do teatro brasileiro.
Atuação pós-ditadura
Após o golpe civil-militar, em 1964, o Oficina ampliou a pesquisa cênica a partir de uma perspectiva política. A primeira resposta à nova situação é “Andorra”, do escritor suíço Max Frisch, exibida ainda em 1964. As informações estão presentes na Enciclopédia Itaú Cultural.
O texto trata de questões ligadas ao antissemitismo pós Segunda Guerra, mas serve ao Oficina como metáfora para firmar posição contra a perseguição e a violência do regime autoritário brasileiro. A encenação se mostrou crua e despojada e, paradoxalmente, entremeada de momentos líricos.
Além disso, o espetáculo marca a transição do trabalho de Zé Celso do realismo do dramaturgo russo Stanislavski (1863-1938) – presente na construção dos personagens – para o teatro épico do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), cuja referência se apresentou na postura crítica da encenação, mesmo que ainda tímida.
O diretor viajou à Europa ainda em 1964 e aprofundou estudos sobre Brecht, enquanto o Oficina excursionou pelo Uruguai. De volta ao Brasil em 1966, Zé iniciou os ensaios de “Os Inimigos”, também de Gorki. O resultado apresentou-se estimulante e polêmico. O artista não abriu mão dos temas políticos, mas propôs uma nova abordagem estética para o período.
Principais marcos
A antológica montagem de “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, foi um dos maiores trunfos de Zé Celso Martinez. O texto, escrito na década de 1930, chegou a ser considerado impossível de ser colocado em cena devido à verborragia anárquica e espírito transgressor. Por outro lado, encaixou-se perfeitamente como voz da rebeldia dos anos 1960.
O processo de montagem abarcou um profundo mergulho em textos contemporâneos da arte de vanguarda. A direção, juntamente com a equipe, elaborou uma proposta teórica de releitura da postura estética das esquerdas por meio de algo intrinsecamente brasileiro.
“O Rei da Vela”, assim, considerou uma escritura cênica paródica e violenta, grotescamente estilizada, com inspiração em diferentes estilos, concretizando um teatro antropofágico. A realização ganhou uma posição de liderança na Tropicália, e Zé Celso se estabeleceu como figura chave do movimento no Teatro.
Outros marcos do dramaturgo no palco foram: o espetáculo “Roda Viva”, de Chico Buarque, no Rio de Janeiro, primeira experiência fora do Oficina; a peça “Galileu Galilei”, de Brecht, fruto de uma pesquisa sobre novas possibilidades de relação com o público, em busca de um teatro sensório e irracional; e, mais à frente, a montagem “As Boas”, de Jean Genet.
Detido e torturado
Após se dedicar à edição do filme de “O Rei da Vela”, isolado da classe teatral e tentando novos rumos artísticos, Zé transformou o grupo na comunidade Oficina-Samba e lançou, em 1974, um documento à opinião pública, o “S.O.S”. Pouco depois, foi detido e torturado.
Solto após 20 dias, partiu para o exílio em Portugal, acompanhado de integrantes do Oficina-Samba, e apresentou espetáculos, além de dirigir o documentário “O Parto”, sobre a Revolução dos Cravos (1974). No ano seguinte, viajou para Moçambique, onde realizou o filme “25”, sobre a independência daquele país.
Em 1978, voltou para São Paulo e implementou múltiplos projetos, nos quais misturou novas linguagens na tentativa de reacender o grupo, agora Associação Teatro Uzyna Uzona. Sob a liderança de Zé Celso, o grupo seguiu suas atividades ao longo das décadas de 2000 e 2010, sobretudo a partir da releitura de textos originais, em benefício da incorporação de material autobiográfico, dos integrantes ou do próprio Oficina.
Vida pessoal
No âmbito íntimo, o artista é esposo do também diretor Marcelo Drummond. Eles se casaram em junho deste ano, no dia 06. No entanto, estão juntos há 37 anos. Os dois se conheceram em 1986, no Teatro Oficina. No mês seguinte, já estavam morando juntos.
Segundo Zé, a decisão de se casar é para que o companheiro tenha direitos legais perante a Justiça. Entre os convidados estavam Alexandre Borges, Bárbara Paz, Malu Verçosa, Leona Cavalli, Alanis Guillen, Andréia Horta, Julio Andrade, Elen Clarice, o maestro João Carlos Martins, Júlia Lemmertz, Drauzio Varella e a mulher, Regina Braga.