Projeto de podcasts resgata histórias e lendas dos bairros Padre Andrade e Jardim Iracema
“Teatro nos quintais - Memórias virtuais da periferia de Fortaleza” disponibilizará oito podcasts, a partir do dia 23 de janeiro, com algumas das narrativas dessas localidades documentadas
Por acaso, você já ouviu falar na Cobra Isaura que morava na Lagoa do Urubu? E no assobiador que passava sempre à meia-noite assombrando a vizinhança? Tem também um tal de um lobisomem de lata… Essas e outras histórias cotidianas são compartilhadas por alguns dos moradores mais antigos dos bairros Padre Andrade e Jardim Iracema, na periferia de Fortaleza, e ajudam a construir a memória de uma vizinhança que deve ser lembrada muito além das notícias policiais.
É nisso que aposta Ivânia Mary Maia Amarante, 54, arte-educadora, artista visual, atriz, contadora de histórias e memorialista com atuação nessa região da capital cearense há pelo menos duas décadas. Ela trabalha no Projeto Criança Feliz, Organização da Sociedade Civil (OSC) em atividade há 35 anos, e que hoje atende cerca de 1.000 famílias e 1.900 crianças, adolescentes e jovens das duas comunidades citadas.
Em 2021, Ivânia está a frente do projeto “Teatro nos quintais - Memórias virtuais da periferia de Fortaleza”, que disponibilizará oito podcasts, a partir do dia 23 de janeiro, com algumas das narrativas dessas localidades documentadas.
“Esses dois bairros são populosos e a maioria de seus moradores estão em situação de vulnerabilidade social. Durante as atividades, procuramos sempre valorizar as histórias do lugar, a memória como afirmação de uma identidade cultural. Foi por meio de um trabalho nos quintais que descobrimos essa riqueza imensa”, contextualiza Ivânia, referindo-se às lendas urbanas e outros causos que ouviu ao longo dos últimos anos.
Processo
Em 2011, com a ideia de fortalecer os laços comunitários e fomentar a cultura e a arte no Jardim Iracema e no Padre Andrade, ela e outros colegas desceram as ruas e becos das comunidades, dando início ao Projeto Histórias e Quintais, raiz para a série de podcasts em que está trabalhando agora, dez anos depois.
“Começamos a apresentar pequenas esquetes que tinham como base anedotas populares, conversas entre vizinhos, fofocas e fatos acontecidos no cotidiano dos moradores. Bebendo na fonte do Teatro Popular, percebi naquelas pequenas esquetes brincantes um enorme potencial. Foi nesse contexto que surgiu o Teatro Popular nos Quintais. Os quintais viraram palco onde as memórias dos moradores ganharam vida”, recorda.
> Ouça uma chegança composta pelo músico Gilvan da Silva especialmente para o projeto:
Mas a falta de recursos e principalmente a pandemia impossibilitou Ivânia de continuar as ações. Com a publicação dos editais da Lei Aldir Blanc, porém, veio a nova possibilidade de mapear as histórias utilizando o podcast.
“Podemos ouvi-los na hora que nos for mais conveniente e quantas vezes quisermos. Isso é muito importante na difusão desse trabalho. Um formato simples de acesso a todos”, defende a arte-educadora.
Histórias
Uma curiosidade: todas as entrevistadas nessa fase atual do projeto são mulheres, na faixa etária de 45 a 80 anos. Dona de casa, costureira, agente de saúde, bordadeira, professora e enfermeira são algumas das profissões que elas exercem. “As histórias vão desde o início do povoamento do bairro Padre Andrade até a fundação do movimento negro aqui no Ceará”, conta Ivânia.
Aldina Dantas relembra a infância no interior e a chegada em Fortaleza, num tempo em que a cidade ainda mantinha características de cidade pacata. Em suas memórias mais frequentes estão as festas juninas e as fogueiras na frente de cada casa. Já Dona Marnilza, conta da luta que travou para conseguir um pedaço de terra e nela erguer seu lar. Mas também registra a saudade de andar sem medo pelas ruas e das festas que ia à juventude, na casa dos vizinhos, onde dançavam até o candeeiro se apagar.
Lúcia e Cleide Simões falam da batalha contra o racismo e do trabalho com o Maracatu Nação Iracema. Recordam ainda das parteiras e benzedeiras, dos verdureiros e do cantador que, no dia do aniversário, ia à casa das pessoas cantar especialmente para elas. As histórias de trancoso e os contos de assombração que os mais velhos repassavam quando se reuniam nas calçadas e nos terreiros de areia branquinha também são relembrados na série.
É aí que entra o mito da Cobra Isaura e seus mais de 10 metros, compartilhado pela Dona Laura antes dela falecer, em 2018. Laura Nobre morava na Rua Carnaubal, que passa ao lado da Lagoa do Urubu, onde supostamente essa serpente vivia assustando a população.
“Foi baseado nos seus relatos que montamos a nossa primeira peça. Ainda hoje suas narrações feitas na época norteiam alguns trabalhos que faço”, ressalta Ivânia sobre a importância da antiga moradora do Padre Andrade.
Para a memorialista, essa ponte entre o passado e o presente faz com que compreendamos que a história de uma pessoa está intimamente ligada a de outras que compartilham vivências.
“Uma cidade não se faz só. É fruto das experiências construídas a partir do coletivo. A Casinha de Cultura onde fizemos a maioria das entrevistas guarda um acervo de objetos de memória da cultura nordestina. Esse trabalho também vai ficar fazendo parte desse acervo”, garante.
E a intenção daqui pra frente é continuar a mapear e registrar as memórias de moradores de outras comunidades nesse formato.
“Esse projeto não tem fronteiras. Pode ser levado para qualquer lugar e com certeza iremos descobrir pontos semelhantes entre as experiências de cada entrevistado, mas também muita diversidade, muita riqueza, muitas formas de ser, estar e viver em comunidade”, finaliza Ivânia.