Por que o cristianismo está cada vez mais pop, de produtos culturais a influenciadores
'Café com Deus Pai', Rosalía e um surf generoso em estética e preceitos da fé atraem multidões.
Rosalía não está de hábito à toa na capa do novo álbum, “Lux”. Nem “Conclave” foi além da bolha Oscar por qualquer motivo. “Café com Deus Pai” também não se tornou fenômeno editorial da noite para o dia. Há algo em comum entre esses e outras toneladas de produtos culturais contemporâneos: bebem do sagrado para atrair cada vez mais público.
E conseguem. Livros, séries, músicas, filmes e costumes devocionais são hit em diferentes estratos sociais – notadamente, vale ressaltar, entre jovens. O papa não é o único pop sob as cortinas da abadia. O cristianismo, na inteireza dele, parece que também.
“A religião tem se mostrado, sim, um meio cada vez mais presente na sociedade, mesmo em um contexto que se define como mais racional e secular”, analisa a professora e pesquisadora Gerlaine Franco, doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Para ela, a fé continua um pilar profundo da identidade cultural, com significados múltiplos. Além disso, por oferecer ampla gama de expressões e símbolos – fruto da diversidade religiosa – tornou-se comum que artistas de diferentes áreas façam referências ao sagrado em produções. Isso não apenas desperta identificação espiritual-emocional, mas também se transforma em elemento de consumo, capaz de criar conexões afetivas com as pessoas.
“No Brasil, país majoritariamente cristão, essa penetração ocorre de forma ainda mais intensa: artistas conseguem mobilizar tanto católicos quanto evangélicos, por exemplo, ampliando o alcance das próprias obras e reforçando como a religiosidade permanece um recurso poderoso para engajamento, reconhecimento e circulação cultural”.
O que explica essa tendência ao sagrado
Diversos estudos apontam relação evidente entre a crescente busca pela dimensão espiritual e as mazelas do mundo contemporâneo. Para se ter ideia, última edição da pesquisa Hábitos Culturais, realizada pelo Observatório Fundação Itaú com apoio técnico do Datafolha, aponta consonâncias específicas entre cultura e religião.
Sessenta por cento dos entrevistados respondeu, por exemplo, que realiza atividades artísticas e/ou culturais em igrejas ou espaços religiosos. Os ambientes também são os mais citados por pessoas entre 25 a 34 anos no que diz respeito ao lugar de aprendizagem da arte.
Diante de crises políticas, inseguranças econômicas e de um senso coletivo de instabilidade, muitas pessoas – inclusive aquelas sem vínculo direto com credo específico – encontram na religiosidade um espaço de acolhimento simbólico.
Esses espaços, situa Gerlaine, funcionam como rede de solidariedade, de sentido e de elaboração das dores sociais. Assim, a espécie de “retorno” ao sagrado pode ser compreendida como uma resposta social àquilo que não tem sido suprido pelas instituições políticas e pelos modelos tradicionais de organização da vida.
“Observa-se também uma perspectiva de crescimento das religiões, sobretudo das vertentes protestantes, nas áreas urbanas brasileiras. No caso da juventude, esse movimento se intensifica por meio da ascensão de influenciadores religiosos nas redes sociais”.
Nomes como Frei Gilson, Deive Leonardo, padre Patrick Fernandes, e até casais como Viih Tube e Eliézer – convertidos à religião evangélica neste ano – são exemplos.
Tais agentes digitais não apenas reintroduzem elementos da fé em linguagem acessível e emocionalmente atrativa, como também deslocam a vivência religiosa para além dos limites físicos da igreja ou do templo.
Resultado: jovens passam a exercer a própria religiosidade de maneira mais pública, política, cotidiana e performativa, reforçando uma tendência contemporânea de espiritualidade fluida, personalizada e profundamente integrada ao consumo midiático.
O humano e o divino
Fato é que, desde que mundo é mundo, existe intrínseca relação entre o ser humano e o componente espiritual. Isso significa que a dimensão religiosa está enraizada na própria construção simbólica das pessoas, funcionando como fonte de explicações, emoções, pertencimento e sentido.
“Quando essa dimensão é incorporada à produção artística, ela ressoa de maneira profunda porque toca elementos universais da experiência humana – dor, esperança, transcendência, mistério, salvação”, explica Gerlaine. “A popularização dessas referências no campo da indústria cultural intensifica esse processo”.
A estética da fé – símbolos, narrativas e valores – carrega um potencial expressivo, capaz de ultrapassar os limites do credo, e alcança até mesmo quem não segue determinada religião. Isso ocorre porque tais elementos acionam afetos compartilhados, despertam curiosidade e operam como signos de forte impacto visual e emocional.
Além disso, o universo religioso se torna repertório fértil para artistas e profissionais por oferecer dramatização e mitologia, imagens poderosas e carregadas de significado, discursos morais e existenciais e arquétipos facilmente reconhecidos pelo público.
No contexto da indústria cultural, esse potencial simbólico se converte também em estratégia de mercado. Fiéis, simpatizantes e até curiosos passam a ser vistos como públicos consumidores, o que transforma a estética religiosa em recurso estético e comercial ao mesmo tempo.
“Assim, a arte que mobiliza elementos da fé consegue convocar diferentes pessoas porque se ancora em afetos coletivos e em uma linguagem sensível, capaz de atravessar fronteiras religiosas e culturais”, reforça Gerlaine Franco.
Números comprovam alcance
Estatísticas confirmam esses pontos. Na área da literatura, por exemplo, a última edição da pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, realizada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) em 2024, aponta que Obras Gerais e Religiosos apresentaram desempenho nominal positivo nas vendas, com crescimento de 9,2% e 8,7%, respectivamente.
Além disso, em número de exemplares vendidos, obras com temáticas ligadas à fé foram as que obtiveram maior porcentagem, com 29,5%, seguida de Não-Ficção Adulto (22,6%), Ficção Adulto (18,7%) e Infantil e Juvenil (18,4%). No aporte financeiro total, os dados impressionam: R$ 688 milhões de arrecadação apenas no ano passado.
Presidente da CBL, Sevani Matos diz que os dados "demonstram a força de um público amplo e engajado em todas as regiões do país". "Embora a série histórica aponte retração real em todo o setor editorial, incluindo o segmento religioso, esse subsetor tem mostrado maior resiliência ao longo dos anos, com quedas menores e participação consistente nas vendas", calcula.
Trata-se, assim, de um caso expressivo de sucesso, mesmo diante das intempéries que o setor editorial passa no Brasil. "É um segmento que revela capacidade de recuperação e permanece relevante para o dinamismo do mercado editorial brasileiro".
Por sua vez, o já citado “Lux”, de Rosalía, mencionado no início desta reportagem, alcançou sucesso global no streaming, com mais de 42 milhões de streams no Spotify apenas no primeiro dia de audição. É a maior estreia da carreira da artista.
O álbum dominou as paradas espanholas, com todas as faixas do disco no Top 50. A faixa “La Perla” estreou em quinto lugar no mundo inteiro, e todo o disco obteve forte recepção, com todas as canções no Top 100 global do Spotify. Um colosso.
Historicamente falando, o diálogo entre cristianismo e cultura pop se torna mais incisivo no século XX, especialmente devido ao fortalecimento dos mecanismos de alcance da indústria cultural – responsável por ampliar a circulação de símbolos, narrativas e estéticas do sagrado.
Nesse contexto, artistas passam a mobilizar referências espirituais de forma mais explícita, seja como recurso expressivo, seja como elemento de identificação e consumo cultural. “No Brasil, essa relação se manifesta de maneira intensa, no qual chamo a atenção para o campo da música”, destaca Gerlaine.
“A partir dos anos 2000, o crescimento da indústria fonográfica gospel impulsiona essa conexão, trazendo para o mainstream nomes como Diante do Trono, Fernanda Brum e Aline Barros, que se tornam marcos ao integrar elementos religiosos a estratégias típicas da cultura pop como grandes produções, linguagem midiática e circulação massiva”.
Cristianismo pop e avanço do conservadorismo
Questionada se a correspondência entre o crescimento de produção e consumo ligados à religião e o avanço de governos e líderes conservadores por todo o mundo faz sentido, Gerlaine analisa que sim. Isso porque muitos elementos da identidade religiosa têm sido incorporados ao discurso político, reforçando valores morais específicos e construindo um perfil identitário mais marcado, mobilizador e orientado para pautas sociais conservadoras.
“Na prática, isso dialoga diretamente com a ascensão e a ocupação dos espaços institucionais por representantes que se apresentam como guardiões desses valores. Esses líderes fortalecem um ciclo no qual a religião alimenta a política, e a política retroalimenta o mercado religioso e seu consumo simbólico”.
Desta feita, a expansão de produtos culturais religiosos e o crescimento de lideranças conservadoras não ocorrem de modo isolado, mas como fenômenos que se influenciam mutuamente dentro de um mesmo contexto sociocultural.
Soma-se a isso o fato de a popularização da moral e da fé cristã nas redes sociais favorecer o surgimento de diversos “especialistas” e influenciadores, e temos uma nova configuração de termos: fiéis – e até mesmo simpatizantes – passam a ser disputados não apenas no campo institucional das igrejas, mas também na internet, onde a religiosidade se apresenta de maneira performática e altamente consumível.
“Muitas vertentes do segmento evangélico, por exemplo, desenvolvem racionalidade orientada à ocupação de espaços para além dos limites físicos do templo, entendendo o mundo digital como extensão do campo missionário”.
Trata-se da ideia de “trazer o céu para a terra” enquanto se vive “de passagem” – o que, na lógica contemporânea, implica estar presente em todas as plataformas possíveis. Essa realidade acaba influenciando inclusive aqueles que não nasceram dentro da tradição religiosa, a exemplo de Virgínia e Viih Tube.
Na outra ponta, por parte de fiéis e simpatizantes, a busca por consumir conteúdos de cunho religioso é vista como modo de fortalecimento da fé, atestando a faceta complexa do tema e das repercussões dele.
Memes “santos” e o futuro da sociedade
Por fim, embora não menos importante, há que se considerar que, para além do caráter mais sério da religião, há a força dela em inspirar inclusive memes – outro trunfo diante no contexto da cultura pop. Quem não lembra dos inúmeros gerados na época de exibição de “Conclave”, sobretudo no que diz respeito à estética peculiar dos trajes e aos ritos da Igreja Católica?
Ou daqueles relacionados ao "padre gato de Fleabag”, a filmes de terror, como “A Freira”? É que, se a religião se tornou pop, ela inevitavelmente passa a embarcar no que está “em alta”.
A criação de memes – inclusive por páginas religiosas ou perfis que apenas se inspiram na estética da fé – funciona como estratégia de entretenimento e circulação simbólica. Esses conteúdos atendem ao que o público contemporâneo busca consumir: humor, identificação rápida, ironia e pertencimento comunitário.
“A memeficação ligada às religiões, portanto, é ponto relevante para compreender o alcance delas nas mais diversas camadas sociais. Ao transformar símbolos religiosos em elementos da cultura digital, os memes a tornam mais acessível, leve e compartilhável, aproximando crenças e estéticas religiosas inclusive de pessoas que não seguem aquele credo. Não se trata apenas de propagar uma fé específica, mas de gerar consumo, engajamento e visibilidade”.
Gerlaine também confere um ultimato sobre o que o futuro reserva ao comportamento social no que tange à religião – haja vista, por exemplo, a proporção de evangélicos crescendo no Brasil, além da consolidação da bancada da Bíblia no Congresso brasileiro e do próprio consumo cultural ligado à religião.
“Acredito que a religiosidade e os elementos da fé tenderão a ocupar cada vez mais espaços na sociedade contemporânea, fortalecendo o mercado – especialmente aquele que se autodenomina de cunho religioso. Esse movimento amplia a circulação de produtos, discursos e práticas religiosas, ao mesmo tempo em que consolida a fé como um recurso identitário e político, cada vez mais presente nas dinâmicas sociais”.