Pedreiro mantém intacta a tradição da queima do Judas em Fortaleza
Com 17 anos de experiência na confecção de bonecos para a Semana Santa, o “José do Judas” garante a renda familiar e preserva uma manifestação secular
São as recentes e fartas chuvas de abril no chão cearense o atual interesse de um sujeito dado ao trabalho braçal. Vandercleiton da Silva Costa, 41 anos, encara o céu nublado e reage aos primeiros pingos de chuva. Corre para proteger os bonecos de Judas expostos no cruzamento das avenidas Raul Barbosa e Murilo Borges. Na fronteira entre o Lagamar e a Aerolândia, a humilde construção serve de oficina e depósito. É a base temporária para o “José do Judas” manter uma tradição com quase três décadas de existência naquela região.
Primeiro é necessário estabelecer uma correção de dados básica. Vandercleiton herdou do antigo patrão, o “Zé do Judas” original, os macetes da construção dos bonecos. Com a desistência do antigo dono pela função, o ajudante assumiu a nomenclatura, levantou a cabeça e tocou a bola para frente. “Eu sou o José”, afirma convicto. A pequena mudança no nome também vem acompanhada de outras constatações pontuais. Era o nome do pai, resgata. “É abençoado, né. Tá na bíblia, é de Deus”, se conforta o ambulante.
O filho de José agora é quem comanda o mambembe comércio. A dedicação é acompanhada de perto por Maria Milena. Aos 28 anos, a companheira toca uma série de demandas como atender a telefonema de clientes, organizar os produtos e selecionar as roupas velhas para vestir os bonecos. “Tudo que eu sei, ela sabe fazer”, diz o artesão.
Com uma bebê de poucos meses nos braços, Milena comenta das dificuldades cotidianas. No semblante, a constatação de que a poucos dias do feriado da Semana Santa, a família precisa vender todo aquele material para garantir parte da sobrevivência no primeiro semestre. Gentil, o casal oferece água e um pano para secar o suor. A nuvem chuvosa se vai, e o céu retorna ao azul profundo. Hora de colocar os Judas novamente no mostruário à céu aberto.
A politicagem de Temer, Dilma, Bolsonaro, Lula e o menos conhecido do público, Nestor Cerveró, dominam entre os “homenageados” mais vendidos. Na linha de bonecos com feições anônimas, tem espaço para a rivalidade entre Ceará e Fortaleza. Vestidos com as camisas dos populares clubes é venda garantida. São 17 anos no ramo, defende Vandercleiton. Quando a temporada de Judas terminar, o jeito é retornar ao batente como pedreiro. “O resto do ano? Faço casa, trabalho na construção civil. Trabalhei um tempo de carteira assinada na Ecofor, mas fui demitido. O que me chamar, eu corro atrás. Tudo que minha família precisa, eu luto para dar”, assevera José do Judas.
Futuro
Os bonecos levam basicamente trapo, madeira para o esqueleto e a parte mais importante, a cabeça. As vestimentas são decisivas no valor final, que chega a R$ 300. Terno e sapato social, com direito a faixa presidencial deixam os Judas políticos mais salgados no preço. Consciente, o vendedor demonstra certo desconforto em personificar figuras da vida real.
Não faço por maldade a ninguém. Fui o que aprendi para o meu sustento. É meu trabalho”, argumenta.
Em 2018, Milena explica que cerca de 70 unidades foram vendidas. Até 15 horas de ontem, já contabilizam 65 bonecos nesta temporada. Manter a média exige esforço, enfrentar o sol forte e chamar atenção dos motoristas. Sob o viaduto, o trânsito é ensurdecedor. O melhor dia para os negócios é a quinta-feira da Semana Santa. A explicação remonta ao fato de muitos compradores gostarem de viajar para o interior do Estado com a atração garantida na bagagem. Ao visitar os familiares e as raízes, os clientes mantêm a tradição.
Vandercleiton e Maria Milena batalham pelo sustento juntos.
Costuram, montam e vendem o espectro de um personagem secular, estigmatizado pela ideia de traição. Enquanto tiverem forças, até outra melhor oportunidade romper no horizonte, os bonecos continuarão a pôr comida na mesa destes cearenses. Ter fé é algo recorrente no dia a dia do José do Judas. Não desistir é o único milagre possível para essa família.
História
ATO: Segundo as escrituras, o anúncio da traição aconteceu na última reunião realizada por Jesus com os seus apóstolos, também conhecida como a "Ceia do Senhor". Nela, Jesus indicou que seria traído por um dos discípulos. Após a ceia , Jesus teria reunido os apóstolos mais íntimos para orar num lugar chamado Getsêmani, onde seria preso posteriormente.
VALOR: Judas se juntou aos demais apóstolos e saudou Jesus, deu-lhe um beijo. Era o sinal previamente combinado para identificá-lo para os soldados. O apóstolo teria recebido "30 siclos" pelo ato. De acordo com a dissertação da pesquisadora Andreia Regina Moura Mendes, intitulada "A Malhação do Judas: Rito e Identidade", 30 siclos (moeda utilizada na Palestina) era o valor de um escravo da época.
EVANGELHO: Outro fato apresentado pela pesquisadora remonta ao ano de 1984, quando foram encontrados numa caverna no Egito manuscritos em velhos pergaminhos do século IV. O evangelho de Judas trouxe outras leituras para o personagem e segue relevante tanto para a arqueologia quanto para a antropologia da religião.
DEFINIÇÃO: Segundo o estudo de Andreia Regina Moura Mendes, a "malhação do Judas" ou "queimação do Judas" é uma prática da Semana Santa na qual grupos de crianças, jovens e adultos confeccionam um boneco e aguardam a meia-noite do Sábado de Aleluia para praticar sua destruição.
SEMANA SANTA: Após o Concílio Ecumênico de Nicéia, no ano de 325, a Igreja católica decidiu que a celebração dos eventos da Paixão de Cristo deveria acontecer no mesmo dia da semana em que os evangelistas apontam como a data da sua ressurreição. Os festejos da Páscoa cristã foram estabelecidos a partir das raízes históricas dos hebreus.
Serviço
Bonecos de Judas do "José do Judas"
Rotatória das avenidas Raul Barbosa e Murilo Borges, na Aerolândia. Contato: (85) 98783.0423