No rastro das mortes durante a pandemia, livros abordam o luto sob diferentes perspectivas

Recém-lançadas, obras aprofundam histórias de pessoas que partiram deixando acentuadas lembranças e reflexões em quem ficou

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Legenda: A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie ao lado do pai, falecido no ano passado: a dor da perda transformada em literatura
Foto: Divulgação

No Brasil, são 558 mil. Ao redor do globo, 4,5 milhões. E talvez, infelizmente, quando você ler estas linhas, as estatísticas estejam ainda piores. A pandemia de Covid-19 atualiza de forma horrenda a sentença escrita pelo romancista Victor Heringer (1988-2018): “As pessoas desaparecem fácil”. São mães, pais, tios, avós, amigos. São vizinhos, conhecidos, companheiros. São vidas que partiram deixando no abandono outras vidas. Tantas ausências.

No rastro dessa travessia em que a dor faz morada permanente – embora também aprofunde reflexões capazes de valorizar ainda mais a existência – o mercado editorial coloca à disposição vários livros contemplando o luto. Feito toda experiência sobre algo profundo, as obras conseguem ir além da temática central. Trata-se de relatos tão belos quanto cortantes acerca da condição do estar-se vivo, mesmo quando a própria vida diz “não”.

Legenda: Noemi Jaffe é autora de "Lili - Novela de um luto", sobre o falecimento da mãe
Foto: Divulgação

Em “Lili - Novela de um luto”, por exemplo, publicada pela Companhia das Letras, Noemi Jaffe escreve a respeito de si e da mãe – falecida em fevereiro do ano passado, aos 93 anos. Vítima de complicações devido a uma infecção nos pés, Lili foi sobrevivente do holocausto, mãe de três filhas e viúva. Ainda que “mestra do esquecimento”, foi também quem ensinou Noemi que o tempo é uma coisa trágica: ele acontece.

É assim, passeando entre as reminiscências da genitora – um costume ou outro dela, as roupas que gostava de usar, as frases que não deixava de dizer – que a escritora, professora e crítica literária paulistana traça uma radiografia não apenas da mãe, como também acerca do próprio eu ao lidar com a falta de alguém tão querido e superlativo. 

Nessa amarga dança de sentimentos, entra em jogo fragmentos de memória, o desafio de encarar o que já foi e lidar com o que agora é. “Uma pessoa pode ser só o calor da mão. Isso basta para que uma mãe seja mãe e para que eu seja filha”, Jaffe considera em determinado momento. Em outro, tão visceral quanto, confessa: “Se quando ela estava quase morta eu esperava que ela morresse, agora é como se eu a quisesse morta para sempre”.

Uma obra tão breve quanto complexa, sobretudo no trato memorialístico e pessoal, uma vez que expõe as fraturas pelas quais são submetidos nossos processos mais internos quando diante da despedida definitiva. Para Noemi, tudo culmina em uma questão: para onde ir agora sem a pessoa que é parte de você e, você, parte dela?

Mapeamento íntimo

É também sobre a partida de quem gera a vida o relato de “Mãe”, do escritor e jornalista português Hugo Gonçalves – outro recente título da Companhia das Letras a respeito do luto. Descrito pelo romancista João Tordo como “uma fábula acerca do sentido do amor e da perda”, o livro parte de uma premissa que remete às mais inventivas ficções: às vésperas de completar 40 anos, o autor recebeu o testamento do avô materno em um saco plástico.

Nele, além do que se espera encontrar em um testamento, havia uma verdadeira odisseia de emoções, galgada por Gonçalves tão logo se viu imerso em cada detalhe do que ocupava as mãos. O destino final: sua própria mãe, Rosa Maria, falecida aos 32 anos num hospital londrino em 13 de março de 1985, a dois mil quilômetros dos filhos. Sua mãe que é buscada em um intenso mapeamento íntimo por entre geografias do mundo e da mente.

Legenda: O escritor português Hugo Gonçalves narra em "Mãe" uma investigação íntima e brutalmente honesta acerca de quem o gerou
Foto: Rui Cartaxo Rodrigues/ Divulgação

É atordoante, por exemplo, constatar a dificuldade do ainda menino Hugo em entender o que afligia Rosa Maria. “Com oito anos, eu não compreendia o que estava a acontecer, mas escutava palavras como ‘útero’, ‘tumor’, ‘hemorragia’, ‘raspagem’, ‘maligno’ e suspeitava de como tudo ia terminar”, descreve nas primeiras páginas do romance.

Paralelo a essa angústia do não-saber, lidamos com a viagem empreendida durante um ano pelo escritor, a fim de unir os cacos da memória, materializando a presença de quem já não está, mas tão fortemente continua. Desta feita, ele nos conta desde as férias da infância da mãe até os desnorteados anos vividos por ela em Nova York, e como tudo isso se refletiu na construção de sua identidade e personalidade, no seu modo de perceber o mundo e, mais ainda, experienciá-lo.

“Se o silêncio é a língua materna do trauma, o escape é o primeiro comboio a sair da estação”. A percepção grita por entre as 182 páginas do exemplar, sedimentando que somos aquilo que recordamos. Somos memória e coisa humana na constante peleja de lidar com o amor que a morte tocou.

Processos erosivos

Um dos nomes mais celebrados da literatura estrangeira contemporânea, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, por sua vez, é autora de “Notas sobre o luto”, igualmente publicado pela Companhia das Letras. Em prosa comovente e alicerçada em várias camadas, ela reconstrói a existência do pai no exato momento em que milhões de pessoas também perdem os seus.

“Estou escrevendo sobre meu pai no passado, e não consigo acreditar que estou escrevendo sobre o meu pai no passado”, narra a escritora a respeito do falecimento do professor universitário de estatística James Nwoye Adichie, morto em 10 de junho de 2020, vítima de uma infecção causadora de falência renal. Tempos depois, pelo mistério insondável do planeta, Adichie poderia aplicar a mesma sentença para a mãe, uma vez que ela partiu em 1º de março deste ano, quando “Notas sobre o luto” já estava em circulação.

Legenda: "Por que sinto tanta dor e tanto desconforto nas laterais do corpo? É de tanto chorar, dizem. Não sabia que a gente chorava com os músculos”, escreve Ngozi Adichie sobre morte do pai
Foto: Divulgação

A tortuosa estrada que atravessamos apenas ao saber dessa informação é a mesma que trilhamos no livro. Chimamanda sublinha como “insuportável” a falta do pai, o que a faz se sentir “fina como um papel”. Presa nesse fio de navalha indigesto e cruel, ela a todo momento tenta lidar com o fato de ter visto uma de suas pessoas primordiais deitada imóvel numa cama hospitalar. Para de lá sair apenas para o endereço definitivo. Para de lá, porém, nunca cair no esquecimento.

Sim, porque o que Ngozi Adichie tece nas páginas da obra são os complexos tentáculos da dor do luto. E, quando o assim o faz, qualifica as emoções de modo a potencializá-las para o engrandecimento total de um outro jamais ligeireza e pó. Sempre presença. 

“O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras. Por que sinto tanta dor e tanto desconforto nas laterais do corpo? É de tanto chorar, dizem. Não sabia que a gente chorava com os músculos”.
Chimamanda Ngozi Adichie
Escritora

E de quantas mais constatações Chimamanda vai se construindo daqui para frente? Possivelmente quantas mais forem necessárias para responder à questão: “Será que o amor traz, nem que seja de forma inconsciente, a arrogância ilusória de achar que nunca vamos ser tocados pela dor?”.

Financiamento coletivo

Esta lista de livros sobre o luto finaliza com o trabalho de uma escritora cearense. Maria Celça Ferreira dos Santos empreende neste momento uma campanha de financiamento coletivo para a publicação de “Ciclos”, obra na qual ela narra a própria experiência diante da morte daquele que foi e seria seu grande amor.

Maria Celça e Régi viveram um romance na adolescência e, 14 anos depois, experimentaram uma nova história, desta vez interrompida pelo comportamento dos envolvidos – sobretudo o da autora, conforme conta. Na sequência, Régi morreu vítima de um acidente de moto, em 2017, e é a partir desse doloroso acontecimento que nasceu o livro.

Legenda: A cearense Maria Celça Ferreira dos Santos escreve em "Ciclos" a própria experiência diante da morte daquele que foi e seria seu grande amor
Foto: Arquivo pessoal

O acidente, a notícia, os rituais fúnebres, a dor, a volta à realidade a partir da ausência do amado, a culpa, o remorso, o arrependimento tardio, o perdão e o reconhecimento da fragilidade velada da autora são temas que permeiam a narrativa. Em meio a esse turbilhão emocional, Maria Celça também discute o ciclo “vida e morte”, na perspectiva de que é preciso falar da morte para valorizar a vida, reflexão-chave do trabalho.

Os temas são atravessados por questões psicológicas, num contexto em que o sentir é mais importante do que o entender, perfazendo, assim, uma narrativa da qual são partes constituintes registros que auxiliaram em um profundo mergulho. Integram esse panorama e-mails, postagens nas redes sociais, fotografias e mensagens, ativando as memórias do que a escritora viveu com Régi, na tentativa de acomodar dentro de si o que estava sentindo.

A campanha de financiamento coletivo para a publicação do livro está sendo realizada pelo Catarse, com prazo até o próximo 6 de setembro. A meta é arrecadar R$10 mil, o que otimizará uma tiragem de mil exemplares e o custeio de outras despesas, conforme orçamento disposto na plataforma. A partir de R$30, é possível adquirir um exemplar.

 

Lili - Novela de um luto
Noemi Jaffe

Companhia das Letras
2021, 112 páginas
R$ 39,90

Mãe
Hugo Gonçalves

Companhia das Letras
2021, 184 páginas
R$ 59,90

Notas sobre o luto
Chimamanda Ngozi Adichie
Tradução de Fernanda Abreu

Companhia das Letras
2021, 144 páginas
R$ 29,90

Ciclos
Maria Celça Ferreira dos Santos

Independente
Livro em financiamento coletivo por meio deste link

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