Mochileira cearense de 64 anos inspira peça que aborda maternidade e etarismo

Espetáculo “Egoísta” faz curta temporada neste fim de semana em Fortaleza e já tem datas confirmadas para o Rio de Janeiro

Escrito por João Gabriel Tréz , joao.gabriel@svm.com.br
Ana Marlene interpreta monólogo inspirado na vida da mochileira cearense Josefa Feitosa
Legenda: Ana Marlene interpreta monólogo inspirado na vida da mochileira cearense Josefa Feitosa
Foto: Karla Brights / Divulgação

Nascida em Juazeiro do Norte, a assistente social Josefa Feitosa, depois dos 50 anos e da aposentadoria, decidiu colocar uma mochila nas costas e desbravar o mundo. Hoje, aos 64 anos, já visitou mais de 50 países. Já Ana Marlene, atriz também cearense, se lança no risco ao, com 45 anos de trajetória artística, encarar o primeiro monólogo da carreira.

O solo “Egoísta”, com direção de Juracy de Oliveira e texto de Sara Síntique, parte da história de Jô, interpretada no palco por Ana, para abordar temas como maternidade, etarismo, papeis sociais e identidade. O espetáculo faz curta temporada no Teatro Dragão do Mar neste sábado (15) e domingo (16), sempre às 20 horas, e já tem previsão de circulação no Rio de Janeiro a partir de julho.

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“Minha vida não dá nem comercial de rádio, imagina peça!”

A ideia de realizar um espetáculo inspirado na trajetória de Jô surgiu quando o diretor descobriu a história dela a partir de um podcast. Ao ouvi-la, logo pensou em um formato teatral baseado na contação de histórias, o que estruturou a obra como um solo.

“Desde o começo eu já falava nisso: uma mulher com uma mochila nas costas contando uma história”, descreve Juracy. Iniciou-se a busca, então, por uma atriz negra, cearense e com mais de 55 anos. Por sugestão da produtora Renata Monte, se chegou ao nome de Ana Marlene.

A mochileira Jô Feitosa e a atriz Ana Marlene, que se viram pela primeira vez na sede do Diário do Nordeste
Legenda: A mochileira Jô Feitosa e a atriz Ana Marlene, que se viram pela primeira vez na sede do Diário do Nordeste
Foto: Ismael Soares

Completando 45 anos de carreira em 2024 e fundadora da Trupe Caba de Chegar, a artista “habita o imaginário do teatro e do cinema cearense, é um rosto, uma voz e uma prosódia que fazem parte do nosso imaginário”, descreve Juracy. 

“Fiquei muito feliz com o convite. E assustada. É o primeiro monólogo, a primeira vez que vou entrar em cena sozinha. Foi muito desafiador, está sendo. Sempre tenho entrado em cena com atores, um grupo imenso”, reconhece Ana.

“Sinto, claro, medo de estar entrando num espaço completamente novo para mim, mas é desafiador e interessante porque estou contando uma boa história. A história da Jô foi o que me motivou a dizer sim — porque no início eu queria dizer não, ainda disse (risos). ‘Não sei se eu estou preparada para isso’”, segue a atriz.

Já para a assistente social aposentada, a proposta de ter a própria história contada em uma peça foi recebida com surpresa. “Achei que fosse até brincadeira. ‘Como assim? Minha vida não é nem essas coisas todas, dá nem comercial de rádio, imagina peça!’”, diverte-se a homenageada.

“A gente vê as pessoas falarem de outras quando morrem, quando fazem grandes feitos. Pra mim, não era um grande feito o que eu estava fazendo, nunca pensei que meus atos fossem atingir outras pessoas”, reflete Jô.

Mais “biográfico” do que “biografia”

Conversas entre ela e a equipe, quase sempre realizadas virtualmente, foram dando o tom do desenvolvimento do texto, assinado por Sara Síntique. “Sentia aquela coisa humana, querer bem, muito respeito. Mesmo pela tela fria, tinha calor humano. A gente ria junto, chorava junto”, lembra Jô.

Para a mochileira, o processo chegou a ser “terapêutico”. “Quando a gente viaja, tem certo momento que fica meio pra baixo e eu estava assim, aí os meninos começaram a conversar comigo e me deram muita abertura pra falar coisas de toda uma vida”, ressalta.

Conforme Juracy, o espetáculo é mais “biográfico” do que uma “biografia”. “A gente parte tudo das histórias e da voz da Jô. Além de tudo o que ela falou publicamente, a gente fez muitos encontros com ela e, depois de tanta pesquisa e conversa, conseguiu expandir, criar”, explica.

No processo de construção dramatúrgica, Ana Marlene não chegou a conhecer Jô, tendo o texto como norte. “Foi interessante a gente ter conversado que não era para imitar. Uso algumas características físicas dela para dar mais veracidade, mas é a atriz Ana Marlene contando a história da Josefa Feitosa”, define.

“Mas você não é egoísta!”

O título da obra evocar um adjetivo geralmente utilizado de maneira negativa foi uma escolha consciente, explica o diretor. “Ele causa uma coisa que a Jô causa. Muitas pessoas olham para ela, até jovens, e ficam surpresas com o julgamento prévio que fazem”, aponta Juracy.

Com a divulgação inicial do espetáculo, Jô se diverte ao partilhar reações de conhecidos e amigos ao nome da obra. “Muitas pessoas chegaram ‘mas você não é egoísta!’ (risos). Quando eu explico, mesmo assim, elas: ‘Mas você não é!’, e eu: ‘Tudo bem, se você está dizendo!’ (risos)”, brinca.

“É muito difícil quebrar a cultura patriarcal que sempre espera que a mulher seja dócil, obediente, que sempre embota os sentimentos e as vontades. Não quis mais isso e fui perdendo o medo para poder viver para mim, porque até então eu tinha vivido sempre para as pessoas”, compartilha ela.

"Quem cuida da gente? Eu já tinha sido muito tempo altruísta. Qual era o problema de ser egoísta? No bom sentido do autocuidado, do pensar em mim. Não vejo tanto peso. É se voltar um pouco pra você. Você é obrigada a vida toda a só olhar para os outros? Qual o problema de abrir um parêntese na sua vida pra se dedicar para você e por você?”
Jô Feitosa
mochileira

“A história da Jô é exatamente essa: uma mulher negra que vem de um interior e resolve, como ela mesma diz, abrir mão da ‘vidinha’ que todo mundo espera de uma mulher de 50, 60 anos, e desbravar o mundo”, resume Ana Marlene.

“Ainda não tenho essa coragem que a Jô teve de sair ganhando o mundo nesse sentido físico da palavra, mas teatralmente estou buscando isso. O fato de eu estar entrando em cena sozinha é, para mim, esse caminho. É o começo do desbravar”, relaciona a atriz.

Circulação no Rio de Janeiro

"Quero que essa peça se torne igual a Jô, caia na estrada", torce Juracy. A temporada de estreia do espetáculo ocorre neste fim de semana de forma limitada. Serão, inicialmente, duas sessões no Teatro do Dragão do Mar. Em seguida, "Egoísta" já tem garantida uma temporada maior no Rio de Janeiro, a partir de seleção em um edital do Sesc RJ.

Serão 16 apresentações entre julho e agosto na unidade do Sesc Tijuca. "É uma coisa que não existe em Fortaleza por diversos aspectos, principalmente porque a gente não teria público. É uma oportunidade do espetáculo subir em um foguete", ressalta o diretor.

"Teatro é uma coisa que se faz mesmo na construção", segue. "Essa é uma questão para grupos e peças de Fortaleza, porque você passa longos períodos sem fazer. O que mais comemoro é, além de aumentar a rede do espetáculo, que a gente vá explorando e sentindo ele com a plateia", avança.

Após a circulação inicial, não há ainda previsões fechadas de novas temporadas. No entanto, Juracy adianta o desejo de "colocar a mochila nas costas" e não só voltar para Fortaleza, mas também circular pelo Ceará. "Esse é um espetáculo fácil de viajar não só por ser um solo, mas por tudo que a gente construiu", explica.

Egoísta

  • Quando: sábado (15) e domingo (16), às 20 horas
  • Onde: Teatro Dragão do Mar (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)
  • Quanto: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia), com ingressos à venda no Sympla e na bilheteria
  • Mais informações: @espetaculoegoista@peixe.mulher
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