Cena gótica de Fortaleza se torna destaque nacional, com novos eventos e adesão da geração Z

Além de artistas consagrados, movimento abre espaço para novos nomes

Escrito por
Ana Beatriz Caldas beatriz.caldas@svm.com.br
(Atualizado às 14:15)
Público na 6ª edição do Festival Gotham, realizada em novembro do ano passado
Legenda: Público na 6ª edição do Festival Gotham, realizada em novembro do ano passado
Foto: Divulgação/@stickfigure.art

Depois de muitos anos restrita a um pequeno público de fãs veteranos, a subcultura gótica tem ganhado novos adeptos no Brasil e no mundo. Como de costume, o aumento no interesse é multifatorial: vai de elementos da cultura pop – como novos artistas e obras culturais, como as novas versões de Nosferatu e O Corvo – e tendências de moda a, como quase tudo atualmente, novos "porta-vozes" nas redes sociais.

O movimento, que vem acontecendo especialmente no pós-pandemia, apesar de impressionar, não é inédito, segundo Henrique Kipper, escritor e autor do site Gothic Station, que está no ar desde 2008 e funciona como uma espécie de enciclopédia da cena gótica brasileira. "Periodicamente acontece algum revival no mainstream e isso cria um aumento do interesse. Isso é positivo, pois a longo prazo uma parte dessas pessoas descobre que realmente se identifica com a subcultura gótica como algo que é uma visão de mundo para a vida toda", pontua.

Mas, se a nível mundial não há novidade, Fortaleza tem experimentado um movimento nunca antes visto localmente, e vem se tornando um dos novos "centros góticos" do País. Por aqui, além de artistas consagrados e do público fiel, que segue na cena desde os anos 2000, novos nomes e eventos têm despontado, criando interesse no público mais jovem e trazendo frescor a temas e sonoridades que pareciam esquecidas.

Na capital cearense, muitas das novidades nesse sentido surgiram a partir da movimentação da Underdark Produções. A empresa, criada em 2018, é liderada atualmente pela produtora cultural Juliana Weyne, conhecida na cena como Juju Weyne, que também atua como cantora da banda de rock gótico Maldigo.

Projeto Maldigo. é formado por Erik Castro e Juju Weyne
Legenda: Projeto Maldigo. é formado por Erik Castro e Juju Weyne
Foto: Divulgação/@stickfigure.art

Inicialmente criada em 2017 por um trio de amigos que queria fazer eventos de rock na capital cearense, a Underdark Produções voltou-se totalmente para a subcultura gótica em 2018, com a criação do Festival Gotham, evento anual que contempla diversas linguagens artísticas e chegou à sexta edição em novembro do ano passado.

Segundo Juju, a produtora e o festival nasceram “pela carência e pelo saudosismo dos eventos góticos” na Cidade, mas demarcam uma nova fase para o público entusiasta. Isso porque, mesmo nos anos 2000, quando o rock estava em alta de maneira geral, Fortaleza não tinha eventos específicos para esse público, já que ainda eram poucos os artistas góticos na Capital.

Público no Festival Gotham 2024, no Casarão Benfica
Legenda: Público no Festival Gotham 2024, no Casarão Benfica
Foto: Divulgação/@stickfigure.art

“Tudo estava engatinhando, era muito misturado”, conta. Segundo Juju, o único evento que contemplava a cena era a Dança das Sombras, festa famosa que, apesar de focar na subcultura, incluía também outras vertentes nos line-ups.

Atualmente, não só o número de artistas e eventos aumentou, mas o público tem se renovado. “No Gotham do ano passado, a maior parte do público era um público novo – tanto de idade como também novos rostos no evento. Quem é produtor está sempre em contato com o público, então a gente vai decorando aqueles rostos, a gente sabe quem vai”, explica. “O que sinto hoje da cena gótica de Fortaleza é que ela está com força total recebendo esse público jovem nessa nova geração”, completa.

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Parte dessa renovação vem pelo motivo óbvio: o que é diferente sempre atrai adolescentes e jovens adultos, pontua a produtora. Outra parte, porém, vem também pela forma como a comunidade vem se organizando e divulgando conhecimento sobre o assunto: nas redes sociais, especialmente no TikTok, onde milhares de influenciadores divulgam conteúdos sobre maquiagem e vestuário gótico, além de dicas de bandas e livros para conhecer e se aprofundar.

“Como o público do TikTok é um público muito jovem, acredito que esteja tendo uma repercussão grande e seja um meio de divulgação grande para a subcultura. E eu acho isso muito bom”, celebra a produtora. “É tudo que eu queria, como muitos da minha época: encontrar um espaço, um lugar onde eu me sentisse bem sendo eu mesma, onde eu poderia me expressar”, conclui.

Apesar da melancolia tipicamente associada ao estilo de vida gótico, o momento é de otimismo, segundo Juju. Enquanto segue organizando eventos menores, voltados para o cinema e a literatura gótica, e inicia as gravações das músicas que irão compor o próximo disco da Maldigo, que deve ser lançado até 2026, ela já planeja os próximos passos do Festival Gotham, que considera um dos principais estímulos para público e artistas interessados no gênero na Capital.

Apresentação de dança no Festival Gotham 2024
Legenda: Apresentação de dança no Festival Gotham 2024
Foto: Divulgação/@stickfigure.art

“O Gotham é um evento grande, não é somente um festival de bandas. Ele também apresenta dança, teatro, exposição de arte, audiovisual, poesia. Tudo que a gente vai fazendo de curadoria a gente tenta colocar numa programação temática, já que cada edição tem um tema”, explica.

No ano passado, o evento reuniu seis atrações musicais, feira criativa, apresentação de dança e artes visuais, e recebeu cerca de 300 pessoas no Casarão Benfica. Pela primeira vez, ele aconteceu nos moldes de mini turnê: além de Fortaleza, foi realizado também em Natal (RN) e Recife (PE), formato que deve se repetir no fim de novembro deste ano.

Juju Weyne, cantora, produtora cultural e entusiasta da subcultura
Legenda: Juju Weyne, cantora, produtora cultural e entusiasta da subcultura
Foto: Davi Rocha

“Tivemos uma resposta muito boa de outras cidades, tanto de público quanto de artistas que querem se apresentar no evento. Por isso, no início deste ano, abrimos uma chamada de artistas para a curadoria, e já começamos a trabalhar nisso”, conta Juliana, que atualmente conta com o apoio de outros três membros – Bianca Gadelha, Bruno Abreu e Elias Aquino – nos projetos da produtora.    

Neste ano, a ideia é ampliar o potencial do Gotham, tanto financeiramente quanto geograficamente. A ideia é inscrever o festival em editais pela primeira vez – até então, ele é realizado de forma 100% independente – e acrescentar João Pessoa (PB) na rota da mini turnê.

Plastique Noir: 20 anos de rock gótico cearense

Banda segue como destaque na cena gótica nacional e internacional
Legenda: Banda segue como destaque na cena gótica nacional e internacional
Foto: Gil Sousa/Divulgação

Se há um nome que tem ajudado a projetar a cena de Fortaleza para todo o País, esse nome é Plastique Noir. Formado na capital em cearense em 2005 e em atividade ininterrupta desde então, o grupo formado por Airton S. (vocais e eletrônicos), Danyel Fernandes (guitarras e synths) e Deivyson Teixeira (baixo) é considerado o maior nome do rock gótico brasileiro contemporâneo e aponta a renovação do público como principal motivo da longevidade.

Assim como muitas bandas dos anos 2000, a Plastique Noir nasceu e cresceu com o apoio de comunidades de fãs online, publicando seus primeiros trabalhos em sites como o Tramavirtual e o MySpace, o que rendeu ao trio uma legião de fãs fora da web. “Acho que a gente teve sorte de encontrar um contexto que favorece a exposição da banda e fazer com que as pessoas, aqui no Brasil ou fora, pudessem conhecer [o som] imediatamente”, lembra o vocalista Airton S.

Em junho deste ano, a banda fará sua primeira turnê pela Europa, a terceira internacional do trio. Por enquanto, estão confirmados shows no festival gótico Wave Gotik Treffen, em Leipzig, na Alemanha; na Espanha e em Portugal, em cidades e datas a confirmar. Até lá, a banda segue se apresentando em Fortaleza, Brasília e outras cidades brasileiras, além de se dedicar à gravação do novo álbum, a ser lançado ainda este ano.

Desde então, muita coisa mudou, mas a internet segue como aliada para que o trio siga cativando fãs em todo o País e fora dele – inclusive o público muito jovem, formado por pessoas que ensaiavam seus primeiros passos ao mesmo tempo em que a banda também iniciava sua trajetória. “Às vezes eu fico até surpreso com o quão jovens os fãs recém-chegados são. A gente se sente um pouco ‘velhinho’”, ri. 

Airton, Deivyson e Danyel formam o Plastique Noir
Legenda: Airton, Deivyson e Danyel formam o Plastique Noir
Foto: Gil Sousa/Divulgação

Para o artista, esse movimento ocorre como parte de uma nova onda de interesse na subcultura gótica. “O público interessado em formas menos óbvias, menos palatáveis de expressão artística sempre surge a cada época, a cada geração”, destaca.

Com orgulho, o vocalista da Plastique Noir afirma que o momento da capital cearense, no entanto, era inesperado quando tudo começou para a banda, em um show em plena sexta-feira 13, no palco do Noise3d Club, em 2005.

“Fortaleza entrou no radar. Não apenas porque é uma meca para bandas que têm conseguido notoriedade e feito um barulho na cena internacional, mas porque o público daqui é numeroso”, celebra. “Às vezes, tem eventos góticos simultâneos na Cidade. Eu vivi pra ver isso, nunca imaginei que isso pudesse acontecer um dia. Hoje, as bandas de outros lugares têm buscado vir pra Fortaleza, pela exposição. Ou seja, o processo se inverteu”, completa.

Bares da Capital abraçam eventos góticos e ajudam a ampliar a cena

Além da realização do Gotham e de outros eventos voltados para a subcultura gótica, outro fator positivo para o fortalecimento da cena é o aumento de lugares que planejam e recebem eventos para o público gótico hoje, consideravelmente maior do que antigamente.

Proprietários do Covil Rock’n Bar, localizado no Bairro de Fátima, os sócios Marcelo Victor e Daniel Biffão são dois dos pioneiros da nova fase da subcultura na Capital. O espaço realiza eventos para públicos de diferentes vertentes do rock desde a inauguração, no fim de 2017, e começou a contemplar artistas e DJs góticos na programação um ano depois, com o surgimento do projeto BatCovil.

Organizado pela Underdark Produções, o evento começou com frequência mensal, com objetivo de formar plateia para bandas de rock gótico. Atualmente, os shows acontecem em datas mais espaçadas, mas a iniciativa segue como ponte importante entre novas bandas e os fãs cearenses. 

“É um dos nossos principais eventos, esperado ansiosamente por todo o nosso público. Foi um divisor de águas para a divulgação e fomentação da subcultura gótica em nossa cidade”, afirmam Marcelo e Daniel, que destacam que, além da Underdark, o Covil também realiza eventos em parceria com os coletivos O Que Fazemos Nas Sombras e Festa Erratika, também voltados para a subcultura.

Além do espaço, outros nomes da Cidade recebem eventos góticos – especialmente musicais, mas não só. “Vemos cada vez mais eventos voltados à cena. As casas de shows e bares que antes não cediam espaço hoje em dia estão abrindo suas portas”, destacam os sócios.

Atualmente, além do Covil, se destacam casas como o Casarão Benfica – que sediou a última edição do Festival Gotham, em novembro do ano passado – e o Snake Bar, ambos no Benfica; o Esconderijo Rock Pub, no bairro Damas; e o Ophera Music Bar, na Parangaba, que recentemente realizou seu primeiro evento para o público gótico.

Dos veteranos aos recém-chegados da Geração Z, público cearense se fortalece

Bruno é entusiasta da subcultura gótica há quase 20 anos
Legenda: Bruno é entusiasta da subcultura gótica há quase 20 anos
Foto: Davi Rocha

Atendente durante o dia, frequentador, produtor e DJ da cena gótica à noite, o cearense Bruno Abreu, 37 – também conhecido pelo nome artístico DJ Enceladus –, faz parte do pequeno grupo que mantém a subcultura gótica viva em Fortaleza muito antes das redes sociais existirem. 

Ainda adolescente, ele começou a conhecer algumas das bandas mais conhecidas da cena gótica mundial, como Sisters of Mercy, The Cure, Lacrimosa, Bauhaus e Siouxsie and the Banshees, além, claro, da cearense Plastique Noir

Em 2007, “entrou” de vez na subcultura, agregando elementos estéticos ao visual – na época visto como “andrógino” – e filosóficos ao estilo de vida. Começou a frequentar eventos góticos e se reunir com amigos que têm os mesmos interesses em espaços públicos para troca de experiências e referências artísticas – de praças e parques, como o do Cocó, ao “clássico” ambiente relacionado aos góticos: o cemitério. 

Bruno Abreu, o DJ Enceladus, em apresentação no Festival Gotham 2024
Legenda: Bruno Abreu, o DJ Enceladus, em apresentação no Festival Gotham 2024
Foto: Divulgação/@stickfigure.art

Atualmente, ele trabalha como hostess, produtor e DJ em eventos góticos da Cidade e não “se monta” apenas em ocasiões especiais, mas também no cotidiano. "Eu vivencio a cena todo dia. Não existe um ‘hoje eu não vou ser gótico’; gótico é uma construção, você se constrói", comenta. O intuito é chocar, mas também abrir espaço para conversas. 

“Quando eu tô de ‘visual gótico’, muitas pessoas me param na rua e perguntam o que eu sou, como é o meu estilo, do que eu gosto. E é prazeroso parar, conversar e explicar”, conta. “Alguns sentem medo, que é normal, outros sentem curiosidade, o que é normal, eu gosto bastante dessa interação”, completa. 

Bruno Abreu, produtor e DJ cearense
Legenda: Bruno Abreu, produtor e DJ cearense
Foto: Davi Rocha

A abertura para o diálogo vem, também, com auxílio da internet, que tem ajudado a “quebrar visões endurecidas” sobre os góticos, segundo Bruno. “Ajuda a quebrar estigmas que a sociedade tinha sobre o que era ser gótico – aquela coisa mais macabra, aquela pessoa satanista, uma pessoa ruim. E não é nada disso: quando a pessoa para pra conversar com a gente, vê que a gente é diferente daquilo que elas pensam”, conclui. 

Para Bruno, as redes sociais foram a principal ponte para o momento de fortalecimento da cena gótica – não só em Fortaleza, mas de maneira geral. Além dos influenciadores da cena que promovem a estética e as artes góticas, outros conteúdos, como desafios de maquiagem, têm ajudado a subcultura a chegar a um público mais amplo.

A estudante Juliana Silva dos Santos, 17, faz parte da nova leva de adeptos da subcultura gótica em Fortaleza. Aluna do curso técnico em produção de áudio e vídeo, ela divide o tempo entre os estudos e a criação de conteúdo sobre o mundo gótico no TikTok, especialmente com vídeos em que compartilha aspectos do seu dia a dia, como maquiagens e vestuário que gosta de usar.

Juliana, 17, descobriu e se encantou pela subcultura há pouco mais de dois anos
Legenda: Juliana, 17, descobriu e se encantou pela subcultura há pouco mais de dois anos
Foto: Arquivo pessoal

Além do cinema e de bandas góticas brasileiras, como Plastique Noir e Arte no Escuro, foi a plataforma que a ajudou a se aprofundar na cena, há cerca de dois anos. "De certa forma, me aproximei mais do visual gótico e da forma de expressão através das maquiagens pelo TikTok, por meio de  vídeos sobre esse tipo de conteúdo", conta.

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Livros e filmes também estão entre suas atividades preferidas. "Adoro o romantismo sombrio na literatura. O sobrenatural é o que me prende bastante na literatura gótica", comenta. Por ser muito jovem, Juliana conta que ainda não conhece outros adeptos da subcultura pessoalmente – parte de sua vivência ainda é restrita à internet e aos shows de bandas góticas, que busca frequentar sempre que possível.

"Vou em shows da cena local, que são importantes pra fortalecer mais a cena", destaca. "Acho que a cena tem tido um crescimento muito grande aqui em Fortaleza e fico feliz com isso. São muitas pessoas se descobrindo e entrando nesse universo que eu gosto tanto", conclui.

Para ouvir: rock gótico cearense

Além da Plastique Noir e do projeto Maldigo, que devem lançar novos trabalhos ainda este ano, outros projetos ancorados na subcultura gótica têm surgido na Capital. Entre eles estão a Dark Hertz Transmission, única banda de synth-pop da Cidade; a Isis in Crisis, projeto paralelo de Airton S. e Márcio B., que deve lançar novidades em breve; a "one-man-band" Gothiel; e a banda de darkwave RATPAJAMA, liderada por Kyro Coma.

Para ouvir e acompanhar a agenda das bandas, siga os perfis nas redes sociais: @plastiquenoir / @maldigoprojeto / @darkhertztransmission / @isisincrisisband@gothiel_ / @ratpajama

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