Bancas de revista seguem como espaço de encontro e cultura em Fortaleza

"Tem figurinhas?". Ouvimos as histórias de três comerciantes de Fortaleza que desafiam a lógica do digital e ofertam serviços à população

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Bancas de revista em Fortaleza contam com mais de 40 anos de atendimento ao público
Legenda: Bancas de revista em Fortaleza contam com mais de 40 anos de atendimento aos clientes
Foto: Kid Junior

As bancas de jornal estão em praças e calçadas de Fortaleza. São jornaleiros e jornaleiras, cujo a rotina de trabalho diário ultrapassa alguns pares de década. Na geografia entre o Centro e Aldeota estes quiosques urbanos entregam diferentes serviços à população. 

Revistas. Caça-palavras. Cigarro na unidade. Jogo do dia. Garrafa de Mel. Água de Coco. Apostilas. Brinquedos. Jornais. Informação das rotas dos ônibus. Acessórios para smartphones. Basta um olhar mais atento à rua para descobrir o quanto estes espaços seguem ativos. 

Não é segredo algum a difícil realidade na qual o ramo disputa com o universo digital. Conversar com estes comerciantes é acessar um pedaço da história e também reflexão do presente. Visitamos três lugares atuantes. Banca O Sobral (com 43 anos de labuta), Banca Líder (42 anos) e a Fort Banca (30 anos). 

Algumas coincidências cercam os entrevistados. Nenhum deles nasceu na capital cearense. No território das similaridades, cada um acredita que as bancas são um espaço vital da cidade e termômetro da real situação dos logradouros públicos, seja na região central ou dita nobre. A expressão “Já, nas bancas!” ganhou outros significados no correr dos tempos.  

Gilberto Barros (51) deixou Beberibe em 1990. Fincou lugar no ponto de vendas que continua até hoje por intermédio do irmão, Edi. A banca pertencia a um primo que chegou a ter cinco unidades espalhadas na cidade.  

Tirava folga dos funcionários. Após 15 anos de serviços ali, ficou com a Fort Banca como forma de pagamento das contas trabalhistas. “Pretendo ficar mais uns 20 anos ainda, até me aposentar”, revela o comerciante que começou a trabalhar aos 10, apanhando castanhas na terra natal. 

De Beberibe para o ramo de jornais e revistas
Legenda: Da origem em Beberibe para o ramo de jornais e revistas
Foto: Kid Junior

O lugar é ventilado. Esquina da rua Francisco Gonçalves com Avenida Virgílio Távora e duas árvores abraçam o território. É final de tarde de uma sexta-feira, o céu ainda tinindo de azul. “O ramo é bom, mas a venda, 'acabou-se'. Digo bom, pois é uma mercadoria que tem preço, clientela não abusa, olha. É uma cultura. Infelizmente o sistema comeu”. Quando recebemos a banca em 2005, a venda já estava lá em baixo. Me controlei. Nada de adquirir outra. A ideia foi manter uma apenas”, descreve. 

Diariamente, detalha, clientes assíduos ainda buscam as tradicionais palavras cruzadas. A cartela segue com refrigerante, picolé, água, bombom. Recarga de celular e vale transporte não compensa, afirma. Já o cigarro tem que ter, roda bem. Gilberto revela que já chegou  a se preocupar com a saúde dos compradores. "Fazer o que se vivemos num mundo capitalista”.  

Ano de Copa 

Boa parte destes clientes advém da vizinhança, de um colégio próximo ou do ponto de ônibus colado à parte lateral da banca. Adicione nese conjunto os motoristas que desafiam o movimento da pista para realizar um pedido. “Tem figurinhas da Champions?”, grita um condutor. 

Os álbuns de figurinhas são um atrativo considerável no negócio. Gilberto aguarda atenciosamente a Copa do Mundo Qatar 2022. No entanto, o interesse passa longe do aspecto esportivo. A bola vai rolar apenas em dezembro, mas o álbum sai por volta de seis meses antes. Com a experiência de quem testemunhou oito competições mundiais, o comerciante crava:

Se tivéssemos uma seleção brasileira boa para competir e chegar às finais, seria bom para as vendas. Se o Brasil vai bem, vende mesmo depois da Copa. No dia do jogo em que perde. Somem”.
Gilberto Barros
  

O cearense alerta que é preciso ter união entre os profissionais que atuam neste segmento. “Tem dono de banca que abre os pacotes para vender unidade”, critica. A prática não compensa e influencia negativamente até na diversão dos colecionadores. 

Gilberto relembra que o comércio vendia cerca de 50 edições da Playboy durante o mês.
Legenda: Gilberto relembra que o comércio vendia cerca de 50 edições da Playboy durante o mês. "Sheila Mello, Scheila Carvalho, Tiazinha, aquela do Airton Senna (Adriane Galisteu)... Não tinha era revista para vender"
Foto: Kid Junior

“Vivemos disso. Queira ou não queira, a figurinha é uma cultura. É uma história. Quem deve trocar as figurinhas é o colecionador. Vender de unidade ou trocar não existe. Não sei como será a situação depois da Copa”, assume. 

Resistente como aço 

Cercado de sonhos, um jovem sobralense veio estudar na Fortaleza dos anos 1970. José Aldemir Ponte (60) revela uma história de carinho pela cidade e tino para fazer negócios. Mas, essa jornada prolífica no território das bancas atende pelo nome de origem. Pode chamá-lo de Sobral. “Estou aqui a sua disposição”, diz orgulhoso. 

A Banca O Sobral se confunde com a vida da Praça do Carmo. Banca modelo, única no Nordeste de aço inoxidável, garante o proprietário, a casa é ponto de referência para estudantes e intelectuais de diferentes gerações. Devoto da santa que identifica o lugar, o jornaleiro puxa dois pequenos bancos para generosa entrevista. Enquanto conversa, uma missa é realizada naquela tarde. Milagres existem. 

Nem tinha atingido a maioridade e já tinha investido no comércio. Sobral abriu um bar na Avenida Bezerra de Menezes (“Bar o Ventilado”, recorda) e chegou a arrendar táxi. Nos primeiros anos na cidade morava na casa de um tio. Trabalhou três meses em uma banca do familiar. Daí veio a iniciativa de montar um negócio semelhante.  

Um fato de sua biografia segue vivo na memória e explica muito de sua atuação. Segundo ele, remete à época em que estudava num colégio localizado na esquina da Avenida Duque de Caxias com a Rua Floriano Peixoto. Justamente em frente à banca que acabara de abrir.  

Legenda: "Eu tenho um carisma muito grande por essa cidade, por essa Praça. Fico todo arrepiado. Estou aqui e vou continuar até meu último dia como jornaleiro", compartilha Sobral
Foto: Kid Junior

No horário do intervalo, conta, pulava a janela da escola para ajudar nas vendas. A estratégia acabou por chegar nos ouvidos da diretora. Questionado pela razão, explicou que precisava cuidar do negócio. Ela chamou o porteiro, Seu Carlos, e determinou expressamente que, a partir daquele dia, eu estava autorizado a sair pelo portão da frente no recreio”.  

24 de junho de 1978 é a data que inicia essa estrada.“Abrimos de 1 de janeiro a 31 de dezembro. Não fechamos em nenhum dia do ano. É direto. É uma prestação de serviço à sociedade, para população. Eles acreditam que a banca do Sobral está aberta e que encontrarão o produto”, descreve.  

Sobral aponta que a internet mudou a história do Brasil e do mundo. Alterou profundamente a circulação dos impressos. A preocupação é consigo e os colegas de atividade. “Nós jornaleiros passamos pela fase mais difícil da nossa história. E olha que já atravessei várias crises. Veio a covid-19. Não fechamos nesses dois anos, pois tínhamos reservas. Seguramos o primeiro ano. Veio a segunda e zeramos. Hoje, pagamos só as contas e com atraso”, lamenta. 

Amigo da rua 

Sobre a importância da banca ao longo das décadas, Sobral avalia que o legado do negócio atravessa a vida de inúmeros estudantes de vestibular e concursos públicos. Foi pioneiro ao trazer apostilas de São Paulo e ajudou muita gente a conquistar um cargo tão almejado. 

Nomes que hoje são juízes, antes paravam na banca pra folhear e buscar informações sobre concursos. Muitos não tinham condições de comprar os materiais. Diversificar é o segredo para sobreviver.  

O telefone tocou umas três vezes durante a conversa e ele continuou atento à entrevista. Só parava de conversar quando era cumprimentado por quem passava perto da banca. E foram várias situações assim durante o papo. "Ô, Sobral!”. “Opa!”, respondia prontamente. 

Banca O Sobral diversificou o mercado ao atender as demandas dos estudantes do Ceará
Legenda: Banca O Sobral diversificou o mercado ao atender as demandas dos estudantes do Ceará
Foto: Kid Junior

Boa parte das pessoas que acenavam para Sobral enquanto ele falava eram pessoas em situação de rua. "Tenho uma relação muito boa com eles. Se o governo precisar de mim, numa questão de divulgar, panfletar e dar o apoio ao lado da minha banca estou à disposição. Pode ser no âmbito esportivo, cultural, da pessoa de rua. Todo mundo que passa fala comigo. Esse pessoal eu tenho carinho, defende. 

Reluzente, a banca segue testemunha do cotidiano do Centro. Além de autoridades políticas e do judiciário, passaram por ali craques da bola como Romário, Sócrates e Roberto Dinamite, relembra. Observando o passado, o comerciante faz questão de lembrar figuras históricas do ramo de bancas. “Seu Paulino foi um pai, no sentido de aprendizado como jornaleiro. O Bodinho, o seu Almeida. Fizeram parte da história da Praça do Ferreira e aprendi muito com eles”, compartilha. 

O potiguar entre nós 

José Raul (69) faz uma longa pausa antes de responder como chegou ao destino de ser jornaleiro. “É impressionante. Saí de dentro das matas e nem sabia o que era uma banca. Vim de um lugar chamado Lajes Pintadas, do Rio Grande do Norte, conhece? Dificilmente alguém ouviu falar”, desafia. 

Naquele 1970, aponta, a escassez de chuva foi uma barra. Um irmão já estava pelo Ceará e trabalhava com um primo. Foi dele a coragem de trazer a família composta pelos pais e outros 12 filhos. Raul parou inicialmente em uma fazenda localizada em Guaiúba. Plantava tomate. Um caminhão carregado com o fruto abastecia o Mercado São Sebastião naquele período, resgata.  

O jornaleiro observa o desejo dos pais em levar leitura aos filhos que não seja no celular
Legenda: O jornaleiro observa o desejo dos pais em levar leitura aos filhos que não seja no celular
Foto: Kid Junior

Deixou a lida no campo após uma forte dengue, estipula. Atuou ainda em duas empresas e surgiu a oportunidade do ponto onde hoje funciona a Banca Líder. Com as contas do último emprego no bolso uniu forças com um dos irmãos e ambos deram uma entrada.  

O desafio a partir dali era quitar o restante da dívida (das duplicatas, como prefere chamar Raul). “Nunca tinha entrado numa banca. Entrei no escuro total”.  Um familiar chegou a advertir quanto ao risco daquele investimento.  Você tá assinando sua prisão”, ouviu.

"Eu não conheço uma banca. Se o dono está dizendo que se eu trabalhar, dá. Por falta de trabalho não deixarei de honrar com ele”, foi esse o argumento do futuro comerciante.  

Cuidado ao cliente 

O espaço era menor do que o atual. Começou apenas com um saco de bombons. Desconhecia o mercado, o modelo de funcionamento das distribuidoras. Os irmãos seguiram. Raul honrou o compromisso e a jornada ainda segue de pé.  

Adquiriram outras unidades. Continuou, casou em seguida e foi com essa banca que criou a família. “Não é fácil. É um ramo em que você conta as bancas que estao de pé em Fortaleza. Maioria está se acabando mesmo.  

Perguntando pela relevância da banca para os habitantes de Fortaleza, o lajes-pintadense revela ouvir mensagens de apoio. “Raul eu quero que você continue nessa luta...”. Ele interrompe o assunto para atender um pai que chega com o filho nos braços. 

A criança é só entusiasmo. Queria o troco em moedas para encher os três cofres de brinquedo. "Um deles é do Hulk", fala o menino agradecido para Raul. O movimento na loja prossegue naquela tarde. Uma menina leva brinquedo. Tem quem passe pra comprar uma máscara contra covid-19. Outro comprador defende o comércio de rua e faz questão de levar a revista "A Saga do Superman Vol.11". 

“Nunca tinha entrado numa banca. Entrei no escuro total”, relembra José Raul
Legenda: “Nunca tinha entrado numa banca. Entrei no escuro total”, relembra José Raul
Foto: Kid Júnior

Raul aplaude a iniciativa das escolas de incluir revistas no material escolar das crianças. Importante demais o incentivo, argumenta. “Olha, (aponta para o celular que grava a entrevista) alguns pais estão entendo que isso isso aí não seria o ideal para uma criança”, descreve. 

Mesmo sem o volume de vendas de outrora, o comerciante argumenta que muitos pais levam os filhos para iniciar a leitura com os gibis infantis. “Vejo a briga deles (os pais) Isso aí, até os adultos perdem o controle. A cabeça explode. A maioria não aguenta tudo. É muita informação e tem hora que você se perde”, observa quanto aos possíveis malefícios dos smartphones.  

José Raul lamenta a insegurança e o esvaziamento das pessoas nas ruas. Desde que comprou a banca, só fechou um único dia do ano que é a Sexta Feira da Paixão. Uma senhora chega no balcão e pede para trocar uma nota de R$ 20. O objetivo é facilitar o pagamento da passagem do ônibus. “Deus pague o Senhor”, fala para o veterano jornaleiro.