Não foram duas ou três vezes que Pacarrete entrou alvoroçada no comércio ao lado de casa para dizer que a cidade de Russas saberia quem ela foi um dia. Já idosa e sem muita paciência para explicar o óbvio, Maria Araújo Lima (1912 - 2005) sentia-se injustiçada pelos conterrâneos por não ter a deferência que merecia após anos dedicados aos palcos e ao ensino do balé. Em vez de aplausos, o que recebia dos vizinhos eram olhares tortos, risadinhas abafadas e arengas dos meninos que lhe aporrinhavam o juízo.
Mas hoje é diferente. Todo morador tem um fiapo de história para contar, uma lembrança de uma tarde e um certo orgulho da professora de dança que inspirou o primeiro longa-metragem do diretor cearense Allan Deberton, lançado neste ano.
A produção venceu, no mês passado, oito prêmios no Festival de Cinema de Gramado, incluindo as categorias de "melhor filme", "melhor diretor" e "melhor atriz". A produção será exibida pela primeira vez em Fortaleza hoje, em sessões no Cinema do Dragão e no Cineteatro São Luiz dentro da programação da 29ª edição do Festival Cine Ceará.
Apesar da proximidade, pouca gente, de fato, conseguiu alcançar a mulher descrita como extravagante e excêntrica para os moldes de uma pacata cidade do interior.
Pacarrete tinha mesmo suas estranhezas. Carro ou moto não podia estacionar em frente de casa nem menino deveria atravessar a calçada depois que a professora passava a vassoura. Pela manhã cedo, religiosamente, colocava o collant e a música clássica na radiola e ensaiava os passos de balé usando as grandes da varanda de casa como barra de apoio. Se lhe engrossassem o juízo, gritava, irritava-se e não media palavras.
Amigos
"O que é isso, minha filha? Se acalme". A voz tranquila é do comerciante Hermano José Rebouças que tentava desacelerar a vizinha agitada. Talvez ele tenha sido a pessoa que mais esteve perto de Pacarrete nos últimos tempos e quem em mais a artista tinha a confiança para contar do passado e de como queria ser lembrada.
A amizade com Hermano começou pela necessidade. Pacarrete volta e meia precisava de ajuda para trocar o botijão de gás, consertar a televisão e fazer um ou outro reparo em casa. O comerciante ganhou a confiança da artista reservada e de poucos amigos.
"Ela era uma pessoa muito independente, não queria aproximação com a família, apenas com uma irmã velha que ela cuidou durante um tempo. Com essa coisa, ela aprendeu a viver só. Ela tinha o mundo dela e sempre viveu nele", diz Hermano, que ainda mantém o comércio no Centro de Russas.
Vez em quando, chegava ao pé do balcão com um jornal na mão e pedia: "Hermano, minha vista está muito ruim, vê aqui como está a cotação do dólar, do ouro e do euro". Ele lia, embora desconfiasse que a artista não tivesse lá grandes investimentos.
Se parte dos outros vizinhos via loucura em Pacarrete, Hermano enxergava a necessidade de acolhimento. A parceria entre os dois era tanta que está registrada no filme. O comerciante inspirou o personagem Miguel, interpretado pelo ator João Miguel, que é dono de uma mercearia com quem a artista reparte os sonhos e o interesse pela dança.
"Fiquei muito feliz quando soube do filme. É bonito celebrar a memória dela e não esperava que ele chegasse tão longe. Esse reconhecimento é importante não só para a Pacarrete, mas para todo mundo que luta contra o preconceito. As pessoas devem ser respeitadas sempre, na forma como esse filme retratou", ele completa, dizendo que ainda sente falta das vezes que a artista chegava atarantada ao comércio.
Na memória, Hermano guarda a imagem da amiga culta, que inseria palavras estrangeiras entre as frases do dia a dia e gostava de ser chamada pelo apelido que significava "margarida" na língua francesa.
É a mesma imagem que Fátima Silva, 66 anos, guarda. A moradora de Russas viveu por anos exatamente em uma casa ao lado da artista. Antes de ser vizinha, ela já conhecia a personalidade da cidade no auge dos tempos de balé.
Fátima a descreve como uma mulher vaidosa, que cuidava do penteado, das vestimentas, do ruge no rosto e nunca se desprendeu da arte. "Pacarrete sempre gostou de ser reconhecida. Ela dava muito valor às pessoas e por isso mesmo valorizava muito os valores dela", confirma.
Lembranças
"Ela era pouquinha, assim como eu, tinha olhos claros e era morena. Sempre vaidosa. Tanto dançava quanto atuava, fazia de tudo".
É assim que a memória de dona Leônia da Rocha, de 92 anos, guardou a imagem de Pacarrete. Na juventude, a antiga moradora de Russas, que hoje vive em Fortaleza, lembra de ter visto apresentações artísticas dirigidas pela artista pelos clubes da cidade do interior. "Ela tinha nome, viu? Nesse época, ela já era uma pessoa muito importante", recorda.
Russas guarda poucas lembranças materiais de Pacarrete. É uma dificuldade que a própria produção do filme percebeu quando buscou resgatar as memórias para a construção da personagem. As poucas fotos que a artista tinha se perderam ou são de acesso restrito.
Os familiares mais próximos dela já não estão mais vivos e quem permanece não é afeito a grandes conversas, assim como a própria. A casa onde a bailarina viveu, no Centro do Município, já não é mais a mesma, está descaracterizada, como está desativado o colégio onde os mais antigos lembram que Pacarrete deu aulas de balé no Município.
Aos poucos, os espaços vão se modificando e a bailarina ganha lugar no encantado. Com olhos de descortinar o futuro, Pacarrete profeticamente anunciou a reverência dos conterrâneos de agora ao seu nome. A "louca", afinal, é o que sempre foi: artista.
Serviço
29º Cine Ceará
Exibição de "Pacarrete" aberto ao público, às 17h30, no Cinema do Dragão (Rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema). Distribuição de ingressos 1 hora antes da sessão. Encerramento do Festival no Cineteatro São Luiz, somente para convidados.
>> Saiba Mais: Premiações de "Pacarrete" no Festival de Gramado
Melhor filme
Melhor filme do júri popular
Melhor diretor: Allan Deberton
Melhor roteiro: Allan Deberton, André Araújo, Natália Maia e Samuel Brasileiro
Melhor atriz: Marcélia Cartaxo
Melhor atriz coadjuvante: Soia Lira (empate com Carol Castro em "Veneza")
Melhor desenho de som: Rodrigo Ferrante e Cauê Custódio