A frase que encerra “Feliz aniversário” – conto presente na coletânea “Laços de Família”, publicada em 1960 pela Editora Francisco Alves – confere um vislumbre da maneira possível de encarar a autora por trás da expressão. “A morte era o seu mistério”, escreve Clarice Lispector (1920-1977), num movimento simultâneo de definir a personagem da trama e a si.
À época do lançamento da obra, se já era possível inferir o quanto a estética clariceana mergulha com profundidade nesses lapsos de infinitude, agora, passado um século de sua vinda ao mundo, o veredito é unânime: um dos mais ricos legados de Lispector são as múltiplas travessias que ela empreende pela alma humana por meio da palavra.
Responsável pela obra da escritora na editora Rocco – casa detentora dos direitos autorais de publicação dos textos de Clarice no Brasil – Pedro Karp Vasquez iniciou a jornada rumo aos enigmas da literata exatamente com “Laços de Família”, ainda na escola secundária.
“Só que na época, obedecendo talvez aos imperativos da testosterona em meu corpo adolescente, estava mais ligado na literatura de Hemingway, Scott Fitzgerald e Jack Kerouac, retornando aos livros de Clarice um pouco mais tarde”, confessa.
“Ela observava a vida e o mundo com um olhar tríplice, que combinava uma desconfiança crítica praticamente atávica com um temperamento reflexivo e filosófico que, por vezes, resvalava para os mistérios metafísicos e os arroubos espirituais desvinculados de qualquer conotação religiosa”.
Nesta quinta-feira (10), em que se celebra o centenário de nascimento de Clarice, o editor afirma que são poucos os escritores brasileiros que continuam a despertar interesse 100 anos depois de nascidos. No caso da homenageada, isso se deve sobretudo ao caráter atemporal e universal de sua tessitura narrativa, espelhando verdades e questionamentos sempre pertinentes, uma vez que dizem respeito à própria condição humana e ao sentido da vida no planeta.
Compreensão
Ao considerar o intrincado contexto de crise sanitária pelo qual passamos, Pedro Vasquez acredita que a pandemia de Covid-19, a partir do confinamento compulsório, certamente ajuda o público leitor a compreender aspectos da obra de Clarice que lidam com a questão de uma claustrofobia – ora concreta, como em “A cidade sitiada”, ora subjetiva, encontrada em “O lustre”.
“Diversas das personagens femininas de Clarice lutavam para escapar do confinamento imposto pelos papéis sociais reservados às mulheres, na tentativa de se libertarem das amarras morais e das posições de submissão. Ou seja: a literatura de Lispector continua cada vez mais atual e parece até que se renovou de forma misteriosa no Novo Milênio”, situa o editor.
Não deixa de ser o reflexo de uma aguerrida postura pessoal frente aos desafios do mundo. Apesar de nascida em Chechelnyk, Ucrânia, com o nome de Chaya Pinkhasovna Lispector, Clarice – brasileira de alma e com a nação inscrita na nova face nominal – chegou muito cedo em solo tupiniquim, numa época de grande conservadorismo, em que ainda inexistia o voto feminino no País. O direito foi concedido a elas apenas em 1932.
Além disso, quebrou ditames ao ingressar na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, atual Federal do Rio de Janeiro, quando existiam apenas três mulheres em toda a instituição. Antes mesmo de se formar, começou a atuar como jornalista, função que era considerada pouco indicada para mulheres.
E, quando publicou o primeiro livro, “Perto do coração selvagem”, no caminho para completar 23 anos de idade, o ambiente literário brasileiro era tão machista que um crítico querendo posar de bem-informado denunciou: Clarice Lispector é um pseudônimo atrás do qual se esconde um homem.
De acordo com Pedro, todos esses preconceitos foram enfrentados pela autora com coragem e determinação e, naturalmente, transpostos para suas obras, razão pela qual ela é tão apreciada por feministas e demais precursoras das lutas das mulheres. “A protagonista do conto ‘A fuga’ certamente faz eco à própria Clarice quando explica porque decidiu pedir a separação: ‘Eu era uma mulher casada. Agora sou uma mulher’. Precisa dizer mais?”, resume.
Caminhos
Lispector viveu uma intensa experiência no Nordeste do País ao desembarcar ainda muito pequena com a família em Maceió (AL) e Recife (PER) – esta cidade, inclusive, é considerada por ela como o seu lugar de origem. Vasquez diz que essa vivência em solo nordestino iluminou diversos contos e o romance mais conhecido de autoria dela, “A hora da estrela”.
“A inspiração para a criação da desventurada Macabéa, que deixa sua Alagoas natal para tentar a sorte no Rio de Janeiro, nasceu inclusive no Recife, por ocasião da viagem organizada pelo professor Augusto Ferraz, em 1975, para a realização de uma palestra sobre literatura de vanguarda”, detalha.
Clarice ficou hospedada no Hotel São Domingos, a partir do qual ela podia ver o sobrado no qual cresceu, na praça Maciel Pinheiro. Também visitou parentes que não via há décadas, assim como os locais marcantes da infância. Foi essa imersão recifense, com ares de verdadeira viagem ao passado, a desencadeadora da fagulha criativa para a redação do já mencionado e prestigiado livro.
“Longe de oferecer fórmulas de felicidade e sucesso como alguns dos textos apócrifos atribuídos a ela na internet, a literatura de Clarice Lispector é um convite à reflexão. Sua obra, assim como a dos grandes filósofos, apresenta mais perguntas do que respostas”, considera Pedro, que já supervisionou a publicação de 28 livros da autora e comemora o fato de ter estabelecido, por meio de seu trabalho na Rocco, uma espécie de conexão mental para além do tempo e do espaço com a transmissão de pensamento que ela desejava estabelecer com os leitores.
Comemoração
Vasquez festejará o centenário de Clarice trabalhando. Tem duas lives agendadas para hoje, nas quais atravessará os meandros da escrita clariceana. Ele também sublinha que diversos eventos têm ocorrido por iniciativa de instituições públicas e de grupos independentes de admiradores para celebrar a data.
A Editora Rocco marca a efeméride reeditando toda a obra de Lispector, com um novo projeto gráfico, de capa e de miolo, assinado pelo premiado designer Victor Burton. As capas, vale citar, reproduzem pinturas de autoria da própria Clarice.
Por sua vez, em cada obra há posfácios inéditos, especialmente encomendados para a ocasião, junto a grandes autores – a exemplo de Benjamin Moser, Nádia Battella Gotlib, Nélida Piñon, Marina Colasanti e Rosiska Darcy de Oliveira.
“Paralelamente, sua correspondência foi reunida em ‘Todas as cartas’, obra de quase mil páginas que apresenta facetas desconhecidas de Clarice, tanto como escritora quanto como pessoa. E, ano que vem, a Rocco dará prosseguimento à coleção Manuscritos, com uma nova versão estabelecida e comentada pelo professor lusitano Carlos Mendes de Sousa do livro ‘Um sopro de vida’”, adianta.
“Clarice Lispector é amplamente admirada e devidamente celebrada. A única coisa que lamento é que ela, que enfrentou tantas dificuldades em vida, não esteja mais aqui para se beneficiar de todo esse merecido reconhecimento”, considera. Na certa, espia de algum lugar, pondo sua nova roupa de viver.