73% dos brasileiros não saem de casa sem o celular: o que essa realidade diz sobre nós?

Segundo neurocientista, precisamos criar rotinas em que os dispositivos móveis não estejam incluídos, abrindo margem, por exemplo, para o ócio

Qual foi a última vez que você saiu e deixou o celular em casa de propósito? Pergunta improvável essa, mas que aponta caminhos possíveis para entendermos nosso comportamento perante a tecnologia. Conforme levantamento realizado pelo Google, 73% dos brasileiros não saem de casa sem os dispositivos móveis. Um dado capaz de convocar outra questão: o que essa realidade diz sobre nós?

Especialista em Neuropsicologia, Doutor em Psicologia e professor na Universidade Federal do Ceará – campus Sobral, Rodrigo Maia avalia que a estatística é bastante interessante, pois demonstra aquilo que comprovamos no cotidiano: o celular passou a ser item imprescindível em nossas vidas, tal qual os adereços utilizados quando saímos (roupas, carteira e relógio).

“73% é um número substancial, o que sugere que nós, enquanto sociedade, precisamos do celular para viver/existir, para lidar com as demandas e situações do dia-a-dia. Quantos de nós usamos esse aparelho para nos deslocarmos, para adquirir produtos e presentes ou, até mesmo, para comprovar a vacinação?”, reflete.

Segundo ele, o dado também aponta para uma segunda pergunta: o quanto estamos dependentes do celular? É algo que deve servir de alerta, uma vez que a dependência digital pode implicar frontalmente em nosso organismo e na dinâmica inter-relacional, “roubando” a atenção do mundo real e depositando-a no universo virtual.

Entre outros prejuízos, o uso desenfreado das tecnologias móveis pode impactar no funcionamento da memória, na capacidade intelectual, na qualidade do sono e até mesmo no desenvolvimento de habilidades motoras e visuoespaciais. 

“Quando a dependência tecnológica é grande, temos dificuldade em controlar o uso dos aparelhos, tal qual se experimenta na adicção por substâncias tóxicas”, ilustra o estudioso. “Nesse sentido, é importante que saibamos o limite do consumo dos celulares e aprendamos a utilizá-los a nosso favor, como um parceiro, um auxiliar na rotina”.
Rodrigo Maia
Especialista em Neuropsicologia, Doutor em Psicologia e professor da Universidade Federal do Ceará

Relação saudável ou abusiva?

Engana-se quem pensa que essas reflexões alcançam somente os adultos. Cada vez mais cedo, crianças também estão sendo expostas a inúmeras telas – algumas, inclusive, possuem até perfis próprios nas redes sociais – motivo pelo qual estão colhendo igualmente cedo os frutos dessa má relação com o componente digital.

Outro recente estudo desenvolvido no Brasil verificou que crianças enquadradas nessa realidade podem apresentar dificuldades em habilidades motoras, diminuição das horas de sono e aumento da inatividade física, gerando outros desdobramentos à saúde do infante.

“Na obra ‘A Fábrica de Cretinos Digitais’, o neurocientista francês Michel Desmurget também deflagra um dado preocupante: o uso de tecnologias está afetando negativamente o desenvolvimento cognitivo de crianças e jovens. A informação deve servir para que seja revisitado o modo como estamos nos relacionando com os dispositivos digitais. Será essa uma relação saudável ou tóxica, abusiva? A pergunta deve ser feita diariamente quando diante do consumo tecnológico”, sugere Rodrigo Maia.

Uma prática, de fato, cada vez mais necessária para que se evite a ocorrência da nomofobia. Termo relativamente recente – surgido como uma abreviação da frase em inglês, “No Mobile Phone Phobia” – consiste em uma preocupação excessiva ou angústia em ficar sem o telefone celular ou por estar incapaz de usá-lo devido a algum motivo. 

Esse sentimento pode vir acompanhado de queixas somáticas, a exemplo de ansiedade, agitação, inquietação, taquicardia, entre outras. “É um termo que veio para ficar, pois tem sido comum o relato de pessoas sobre a insegurança, mal-estar ou desconforto por estar sem o celular ou com o aparelho descarregado, o que aponta para uma possível dependência do smartphone”, observa Rodrigo.

“As consequências são as mesmas: vários desdobramentos negativos na realização de atividades cotidianas, impactando na rotina escolar, nas atividades laborais e ocupacionais, nos relacionamentos interpessoais e na saúde e qualidade de vida das pessoas”.
Rodrigo Maia
Especialista em Neuropsicologia, Doutor em Psicologia e professor da Universidade Federal do Ceará

Pessoas, processos e aparelhos

Longe de uma abordagem científica, mas valendo-se das premissas estudadas pela ciência e pelo próprio modo como estamos conduzindo nossas jornadas dentro do recorte virtual, o livro “Fatal Error” reúne contos nos quais entra em cena a relação entre pessoas e tecnologias. Com humor incisivo e ponderações não menos importantes, o autor, Michel de Oliveira, descortina situações que, de aparentemente tão absurdas, estão totalmente sintonizadas com a realidade.

“Eu queria me divertir escrevendo, pois meus livros anteriores têm uma carga mais pesada. Então veio a ideia de trabalhar com algo próximo da ficção científica e da distopia, que são gêneros que não fazem parte do meu repertório pessoal. Queria experimentar, logo os contos foram surgindo a partir de temas que eu queria escrever, e acabei dando corpo à obra”, explica, referenciando o mais novo título, publicado pela editora Moinhos.

Todas as histórias partem do mesmo ponto de vista, um posicionamento pessoal que rejeita o humano como refém ou vítima da tecnologia. Para Michel, ela é um reflexo do que somos, enquanto indivíduos e sociedade. Assim, os erros e os acertos nesse campo serão sempre humanos. “Discutir tecnologia é discutir nossa condição humana, por isso é um tema tão literário”, resume.

Entre as temáticas abordadas nas narrativas do livro – curiosamente desenvolvido de forma analógica, em uma máquina de datilografia – estão dilemas enfrentados por homens e mulheres nos aplicativos de relacionamento; a quase total incapacidade de fazermos qualquer coisa hoje sem consultarmos o Google; e várias experiências envolvendo os mistérios da morte, da identidade e sobre como lidamos com nós mesmos e com o outro levando em consideração as conexões virtuais.

Questionado se o fato de observarmos um panorama tão difícil com bom humor pode ser uma possibilidade de tentarmos otimizar nosso comportamento diante das incoerências que já vivemos, Michel é bastante claro: em face do absurdo que é existir humano, rir de desespero é a única saída para não sucumbir à tragédia.   

“Faço uma paráfrase de Ferreira Gullar: a arte existe porque a vida é besta. O humano quer se levar a sério demais, como se fosse uma coisa muito importante, mas nossa existência é precária e pequena. Então minha obra, ao observar o humano, tem sempre um tom de deboche, um riso no canto da boca ou por vezes escrachado diante desse personagem tragicômico”, dimensiona.

É possível superar o vício?

Sob outra perspectiva, há o caso da estudante e criadora de conteúdo, Amanda Prata, 21. Há dois meses ela está tentando se desligar mais do celular e das redes sociais. Agora, antes de dormir, coloca o aparelho para carregar longe – antes, ficava usando até sentir sono e tinha mania de dormir com ele embaixo do travesseiro. Além disso, quando precisa se concentrar em tarefas importantes, também o mantém distante para não cair na tentação e acabar procrastinando.

“Acho que isso me ajuda muito a focar no que tem que ser feito. Às vezes, durante o fim de semana, também tento passar um dia off e sem postar, pra não me preocupar com as notificações”, diz. As práticas começaram a ser desenvolvidas depois que a cearense passou por algumas experiências bastante complicadas devido ao uso excessivo do smartphone.

No que diz respeito à mente, por exemplo, ela já desenvolveu Síndrome de FoMo (sigla de “Fear of Missing Out” ou “medo de ficar de fora”, caracterizada pela necessidade constante de saber o que outras pessoas estão fazendo, associado a sentimentos de ansiedade). A reação surgiu em momentos nos quais Amanda não podia ficar conectada e sentia que estava perdendo coisas importantes. 

Por sua vez, considerando as reações no corpo, além de dor de cabeça pelo tempo de tela, a estudante teve tendinite pela forma como segura o celular. “Eu sinto que sou dependente, mas já fui muito mais, sabe? Passava o dia inteiro alternando entre o Instagram e o Twitter. Ficava atualizando a timeline e, quando já não tinha mais novidades, começava a stalkear a galera (mesmo gente desconhecida). Nos últimos meses, tenho tentado diminuir esse uso e já cheguei até a desinstalar os aplicativos quando sinto que estão me atrapalhando e me fazendo procrastinar tarefas importantes”, situa.

Ainda assim, lidar com os conflitos internos no que diz respeito a essa questão faz com que Amanda constantemente reavalie o próprio comportamento. Ela situa que o que mais dificulta nesse processo é a questão das redes sociais – tanto a pressão de se fazer presente e estar sempre postando e fazendo conexões, quanto a vontade de estar bem informada, dada a velocidade do meio digital.

“A tecnologia veio pra facilitar a nossa vida e é super possível se utilizar dela de forma saudável e produtiva. Nós só precisamos ter consciência de nossos limites e entender como ela nos afeta pra usá-la da melhor maneira possível”.
Amanda Prata
Estudante e criadora de conteúdo digital

Passos e metas

O neuropsicólogo Rodrigo Maia reitera essa questão, embora acredite que não há receita para fazer um “detox” digital. De acordo com ele, podemos aprender com uma história recente, a partir do tempo em que não tínhamos à nossa disposição essas tecnologias. “Quando não dispúnhamos desses dispositivos tecnológicos, celulares e smartphones, como nós vivíamos e usufruíamos do nosso tempo?”, indaga.

“Em síntese, nós podemos criar rotinas em que o celular não esteja incluso. Por exemplo, nos momentos de ócio, em que a vontade é acessar o aparelho e conferir as redes sociais, podemos optar por outro comportamento, como fazer um alongamento ou um exercício respiratório”, exemplifica.

Outros bons exemplos de ações para driblar o uso excessivo da tecnologia são: estabelecer horários fixos para o uso do aparelho e fixar limites de tempo para acesso aos aplicativos, especialmente as redes sociais; desligar ou usar o modo avião nos dispositivos digitais quando se aproxima da hora de dormir; optar pela realização de atividades ao ar livre diariamente e sem utilizar o celular, entre outras. “Essas ações simples podem trazer benefícios para a vida das pessoas”, resume o estudioso.

Ao que o escritor Michel de Oliveira complementa: “A tecnologia digital é restrita aos sentidos de distância: audição e visão. Uma possibilidade factível para encontrar outros caminhos é explorar os sentidos de proximidade – tato, olfato e paladar – usando o corpo para tocar, cheirar e degustar, não reduzindo a experiência ao audiovisual”.

E arremata: “Talvez seja possível encontrar um modo saudável de usar as redes sociais e as tecnologias digitais, mas para isso é necessário que o humano atrás da tela esteja saudável. Como vivemos em uma sociedade que preza pela doença como forma de nos tornar alvos fáceis, o uso saudável acaba sendo uma utopia”.