"Estamos vivendo uma tempestade perfeita", aponta a economista Tânia Bacelar; confira a entrevista
Diálogo Econômico: em meio a um cenário pior que o previsto, a recuperação do mercado de trabalho será mais desafiadora que do nível da atividade econômica, prevê economista
Uma combinação rara de circunstâncias que culminam em um cenário com efeito devastador - a tempestade perfeita - é o paralelo desenhado pela economista e socióloga pernambucana Tânia Bacelar para representar a situação sem precedentes que o Brasil vive hoje. Com o sistema de saúde e a atividade econômica à beira do colapso, o País ainda enfrenta grandes obstáculos - entre eles a própria administração federal - para alcançar a única saída para a crise: a vacinação em massa.
Em entrevista exclusiva ao Diálogo Econômico desta semana, a economista aponta que a realidade foi pior que os cenários mais pessimistas previam e defende a ampla busca por vacinas, pelo poder público e pela iniciativa privada, para que o País possa alcançar a imunidade de rebanho e deixar o pior da crise para trás. Mas os nefastos impactos da pandemia do coronavírus sobre a atividade econômica serão mais longos - sobretudo para o mercado de trabalho no Nordeste.
Embora admita que a última década foi perdida em termos de crescimento econômico do País, Tânia é enfática ao dizer que tudo não está perdido - e que o Nordeste, que embarca unido em um planejamento voltado ao século 21, pode fazer uma virada. Tal qual Ariano Suassuna, se vê como uma realista esperançosa e decreta: é preciso primeiro escapar de 2021 para poder deslanchar em um futuro próximo.
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Qual era a situação do cenário econômico regional e nacional até a chegada da pandemia?
O Brasil já não vinha bem. A pandemia nos surpreende depois de anos de grandes dificuldades. Em 2015, 2016, a gente teve queda expressiva da atividade econômica, e 2017 a 2019, a economia brasileira crescia a 1%. A renda média per capita estava diminuindo.
O Nordeste vinha melhor do que o Brasil. Teve um aumento que favoreceu muito a região, que foram os anos iniciais do século XXI. A gente se saiu bem quando o Brasil teve uma janela de oportunidade na época. O mercado de commodities lá fora bombou, isso criou um espaço favorável para o Brasil e coincidiu com a primeira e a segunda administração do PT, sob o comando de Lula. Ele fez uma opção de estimular o consumo e, dentro do consumo, incluir a classe C.
Quando isso transbordou para as regiões, o Nordeste foi bastante favorecido, porque a gente tem 27% da população e só tem 15% do PIB. A gente tem uma herança estrutural muito pesada.
A opção foi de melhorar a renda dos menos favorecidos com programas sociais de peso, uma melhora do salário mínimo - que todos os estudos mostram que foi até mais importante do que os programas sociais. O Brasil teve uma fase de crescimento pelo consumo que ele tentou depois combinar o investimento, e o Nordeste teve uma fase muito positiva.
O investimento em educação superior, sobretudo, a interiorização das universidades, as públicas federais, mas também as estaduais e as privadas que acompanharam, foi muito positivo para o Nordeste e, para mim, o exemplo mais gritante está no Ceará. É ali aquele complexo no Crato e Juazeiro. Quem conheceu, como eu conheci aquelas duas, três cidades na cidade há quinze anos, e chegou lá depois deste período, saltava os olhos a diferença. E a gente aprendeu ali que investimento em educação se transforma em crescimento econômico.
Na fase mais recente, o Brasil não ia bem, mas o Nordeste vinha daquela fase - vou citar Pernambuco também. Pernambuco, naquele momento, recebeu muitos investimentos em indústria. Aqui a gente recebeu o bloco de investimento industrial e contrapôs a uma tendência anterior, que era muito difícil.
O estado vinha perdendo densidade industrial, na década de 90, com muita evidência. E aquele momento inicial ali, de coincidência, o governo Eduardo (Campos) aqui, com o governo Lula no Governo Federal, Pernambuco era um canteiro de obras. (O Porto de) Suape bombou. Tudo deixou ativos importantes e, portanto, capacidade de resistência.
Eu diria que a pandemia surpreende o Brasil num momento difícil, mas surpreende o Nordeste vindo também num momento difícil, porque a gente tendeu a acompanhar as dificuldades brasileiras, mas com um ativo importante que tinha sido aquele período anterior..
E qual foi o saldo deixado pela pandemia um ano depois?
A pandemia quando chega, a gente fez projeções muito pessimistas, porque a gente estava olhando para esse retrovisor de mais curto prazo. Então, não só nós, brasileiros, mas também os organismos internacionais, fizeram previsões muito pessimistas de quedas enormes da produção.
Os primeiros meses foram muito difíceis, as quedas realmente foram enormes, março, abril, maio. Mas aí, quando entra aquele pacote de atuação do Governo Federal, as coisas melhoraram muito. Foi um pacote significativo, o auxílio emergencial no Nordeste teve um impacto bem diferenciado, tem vários estudos mostrando isso. O percentual do total da renda nordestina, sobretudo nos pequenos municípios, permitiu a gente passar aquele momento, um segundo momento da pandemia, de uma maneira razoável.
O auxílio às empresas também foi difícil no começo, o crédito não chegava, mas terminou o Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) se firmando e muitas empresas escaparam com aquela dupla ajuda, do crédito e da MP que organizou o emprego. Foram duas ações de apoio a esse tecido econômico nosso que não é lá de grandes corporações. Eu acho que aí as empresas também conseguiram respirar razoavelmente. E os estados e municípios também, que receberam um aporte federal importante.
Acho importante reconhecer que o início do debate, que era “não podemos fazer muita coisa”, foi superado no Congresso. O Congresso teve um protagonismo importante, mas o próprio (ministro da Economia, Paulo) Guedes, que no começo era muito resistente, reconheceu que era preciso ter aquele protagonismo e implementou um pacote que eu considero bastante razoável.
Tanto que o saldo final ali por dezembro era bastante razoável. Uma queda de quase 5% do PIB, não era isso que a gente esperava em maio ou junho, né? Portanto, mostrou a capacidade de atuação do Governo e mostrou a capacidade de resistência da nossa sociedade, da economia brasileira e regional.
Claro que isso tem diferenciações importantes. O Nordeste teve esse lado positivo do auxílio emergencial que ajudou muito o varejo. Mas, mesmo assim, o Brasil teve uma queda de 1,5% do varejo ampliado. O Ceará teve uma queda de 5%, a Bahia de 8%. Pernambuco teve uma queda de 0,4%.
Então, Pernambuco foi bem melhor na fita do que a Bahia e o Ceará, tá certo? São impactos diferentes, determinados segmentos tiveram perdas muito maiores. Como no turismo, que foi um dos segmentos que tiveram mais perdas, o Brasil teve uma queda enorme de 36,77%, mas o Ceará teve uma queda de 41%, bastante superior à média nacional. Pernambuco teve (queda de) 39% e a Bahia, 37%. Tem diferenças dos principais estados que abrigam as maiores economias da região.
Dos serviços também, que foi até mais afetado do que o comércio. Porque o comércio consegue, bem ou mal, chegar no fim do ano quase no positivo e os serviços. Os serviços viram 2021 no negativo no País inteiro - terminaram o ano com queda de quase 8%, a Bahia, de quase 15%, o Ceará, quase 14% e Pernambuco, 12,5%.
São quedas muito significativas que também têm diferenciais intra atividade terciária porque, por exemplo, nos serviços prestados à família, a queda é muito maior. E aí o impacto sobre as mulheres tem o peso maior, porque parte desses serviços é de cabeleireiro, serviços domésticos, que são segmentos mais afetados pela crise porque exigem a presença física entre o comprador e o ofertante.
A gente termina tendo um saldo, assim, razoavelmente suportável para o Brasil, com diferenças regionais e setoriais. O Nordeste paga o preço mais elevado do que a média nacional. Os dados do Banco Central e do PIB, que a gente ainda não tem o dado regional, mas as estimativas que a gente tem mostram que o Nordeste tem uma perda maior. Mas de todo jeito a gente, pela dinâmica dos últimos meses de 2020, pela dinâmica da própria pandemia, ali por outubro, novembro, há um sopro de esperança para 2021. A gente achava que íamos entrar em 2021 respirando, né? Não foi o que aconteceu, aí eu acho que a trajetória da pandemia explica a economia.
A gente teve eleição municipal e aí muita aglomeração, isso em novembro. Dezembro teve as festas de fim de ano e a tradição de aglomeração, e a gente foi liberando eventos. Então aquele clima de ‘parece que escapamos’ prevaleceu. E aí, nós começamos a pagar essa fatura em janeiro. Alguns alertas foram dados, inclusive pelo comitê científico do Consórcio Nordeste, que começou a emitir notas preocupantes.
Como o Brasil enfrentou a pandemia explica a dificuldade que a gente está tendo de 2021. Eu acho que o Nordeste tem um diferencial. E eu acho que o Brasil tem um problema - e está muito evidente qual é esta semana. Nós não tivemos coordenação estratégica nacional. Os países que se saíram melhor, foram países que tiveram isso. E o país como o Brasil, que é um país grande, muito diferenciado, entregar a coordenação às esferas subnacionais não foi uma boa escolha.
E qual será o impacto de um novo lockdown nessas circunstâncias?
A gente está numa situação pior que a que estávamos em 2020. Três meses sem auxílio emergencial, com a economia patinando. E agora agravando o quadro econômico. As empresas sem mais nenhuma atividade de proteção: o Pronampe foi interrompido, também aquele pacote da MP dos contratos de trabalho.
Aquela impressão de que as coisas estavam sob controle foi completamente equivocada, que levou a uma parada da atuação do setor público, continuando sem coordenação estratégica e agora com as pessoas e as empresas mais fragilizadas. Tudo isso tá vindo junto agora em março. Agora, a gente está vendo um quadro que, aí sim, é muito preocupante e muito preocupante para o Nordeste.
Embora veja, essa diferença da coordenação estratégica, eu diria que o Nordeste se saiu razoavelmente bem. Enquanto o Brasil não teve em momento nenhum uma coordenação estratégica nacional, aqui a gente teve coordenação estratégica regional. O Consórcio Nordeste continuou muito ativo, criou aquele comitê científico, que mobilizou a Academia pra fazer o diálogo científico com o debate mundial sobre que vírus é esse e como é que a gente enfrenta.
Acho que os governadores cumpriram um papel muito interessante, se distinguindo e depois se articularam nacionalmente. A falta da coordenação estratégica nacional foi dando espaço para o protagonismo dos governadores. E aí o Fórum Nacional (de Governadores) é que começa a funcionar, a gente vê mais sinergia tanto na leitura da realidade como nas iniciativas de combate à pandemia.
E a gente não teve a preocupação com a (criação da) vacina, porque a vacina foi uma vitória. O mundo se juntou e conseguiu gerar uma vacina num prazo muito curto. Isso está salvando muitas economias e o Brasil de novo entrou defasado. Não percebeu que que aquilo era pra valer, ao contrário, tem resistências do Governo Federal, do próprio presidente, do ministro da Saúde que não teve a ousadia que seria necessária.
É uma tempestade perfeita que a gente está vivendo hoje para enfrentar. Eu já dizia isso no começo do ano, nas análises que a Ceplan (empresa de consultoria econômica e planejamento) fez sobre o que esperar para o futuro, a gente achava que pelo menos o primeiro semestre ia ser muito difícil. Mas eu confesso a vocês que a gente esperava até menos do que está sendo. Acho que está sendo muito mais difícil, e o Nordeste também está pagando uma conta muito pesada.
E o que vamos ver a partir de agora? Um salto elevado do desemprego, empresas à falência?
Aí você tocou num ponto que é um diferencial negativo do Nordeste. Se do lado do PIB a gente conseguiu segurar a dinâmica econômica, do lado do mercado de trabalho, esse é o nosso problema. Como eu já disse, a gente tem 27% da população e 15% do PIB. A gente tem uma certa superoferta de trabalho que é estrutural e é histórica. O mercado de trabalho do Nordeste é um problema mesmo em tempos de bonança. Nossos indicadores na área do emprego são preocupantes.
O Brasil viveu um ano de experiência muito interessante em 2020, que o desemprego até que não explodiu como a gente pensava no começo, mas as pessoas deixaram de procurar emprego. Então, 25% da força de trabalho está fora do mercado de trabalho, ou por estar desempregada ou por estar desalentada. É um quarto, gente, é um em cada quatro brasileiros fora da força de trabalho. Isso no Nordeste toma proporções muito fortes.
Se tem um desafio no Nordeste é o mercado de trabalho, até mais do que a recuperação da dinâmica econômica, porque, bem ou mal, no tecido econômico daqui já tem empresas de grande porte que têm capacidade de resistência e o nosso mercado de trabalho é mais complicado. A informalidade do mercado do Nordeste é muito elevada. Então, a gente tem desafio enorme no mercado de trabalho.
Como se não bastasse, a pandemia acelerou o avanço da era digital. Para enfrentar a dificuldade da convivência pessoalmente, a gente partiu pra esse instrumento que nós estamo fazendo aqui agora, né? (A entrevista foi feita por videoconferência). Trabalhar à distância, a gente viu que isso era possível, que era mais barato, que não precisava vocês me levarem à Fortaleza para fazer uma entrevista. Isso veio com muita força, a necessidade de sobrevivência falou alto e a gente embarcou nessa com muita rapidez.
Então o mercado de trabalho brasileiro está sob três pressões: a da pandemia, a do avanço da era digital, que cria outro tipo de emprego, que muda o jeito de trabalhar, o perfil e a quantidade de trabalhadores para a atividade econômica, e que trouxe também a coincidência do nosso caso com a maior informalização, a maior flexibilidade, que é uma das consequências da reforma trabalhista que a gente tinha feito lá em 2016. São três fenômenos convergindo no mercado de trabalho.
Recuperar o mercado de trabalho certamente é uma tarefa muito mais desafiadora do que recuperar o nível da atividade econômica e as empresas. Aí é onde vai estar o nosso desafio e aí o Nordeste tem desvantagens relativas.
Nesse contexto, qual será o impacto da nova rodada do auxílio emergencial para a economia em comparação ao do ano passado?
Vai ser, evidentemente, muito menor. É uma situação mais grave, as famílias estão há três meses desprotegidas. Tem muita gente passando fome. É impressionante a gente assistir matérias aqui das nossas cidades. A sociedade civil se mobilizando de novo para, no vácuo do governo, atuar com campanha "Tem gente com fome". É verdade. A situação social está muito grave.
Um auxílio desse tamanho, de R$ 44 bilhões, comparado com quase R$ 300 bilhões em 2020 para quase 70 bilhões de brasileiros. É um pacote bem atrasado, com um valor bem menor para menos gente e durante três meses. Eu acho que provavelmente a gente vai estar discutindo continuidade do auxílio emergencial daqui a pouco. Porque o quadro não vai retomar no curto prazo.
Eu acho que os cenários para 2021 é de grande dificuldade para o Brasil. Infelizmente, a gente já começa a cobrar o apoio às empresas, porque as empresas também respiraram, mas estão mais fragilizadas. Já estão endividadas, então o mínimo que se deve fazer é prorrogar aquele pagamento do crédito retirado dos bancos (Pronampe). Um novo pacote, uma nova MP para discutir emprego, os empresários já estão com essa agenda.
Esse auxílio emergencial que foi aprovado nem vai ser suficiente, nem vai poder ficar só no auxílio. Quando eu olho para a realidade brasileira, eu me convenço que vai haver um clamor novamente com uma grande dificuldade que o custo do pacote anterior foi elevado, a relação dívida/PIB já está bem mais elevada, o custo da dívida de curto prazo já está mais complicado, a Selic aumentou 0,75 ponto, que aumenta o custo da despesa financeira com a dívida, então o quadro fiscal é mais complicado do que estávamos em 2020. Não vai ser um período fácil esse que nós vamos viver nos próximos meses.
Como a senhora avalia esta e as demais políticas públicas que têm sido apresentadas para reduzir os impactos dos fechamentos de negócios?
Eu acho que no mínimo vai ser isso (uma repetição das medidas do ano passado). O pacote de 2020 foi bem formulado. Ele já olhou pra todos, para as famílias mais frágeis, para as empresas, principalmente as que precisavam mais, embora as grandes também se beneficiaram muito - do crédito, por exemplo, e da negociação do emprego formal. Mas as médias e pequenas também conseguiram respirar. Os estados e municípios no final tiveram um saldo razoável, porque também estão gastando muito com o combate à pandemia. Então, eu considero que no ano passado a gente teve um apoio bastante razoável.
O problema é que nesse ano está diferente, está pior, e a pandemia veio com muito mais força. Tem a sociedade meio cansada, e tem também essa fratura brasileira. O ambiente político não ajuda, não é só falta de coordenação estratégica. É um pouco a herança desse Brasil mais polarizado, de visões de mundo mais radicalizadas, de dificuldade de sentar com quem pensa diferente ou de dizer que aquela proposta faz sentido e tirar dela o que dá para gente trabalhar junto.
Esse ambiente brasileiro também complica muito. O pessoal pensando em eleição em 2022, gente, que é isso? A gente tem que escapar de 2021 primeiro. Olhar para uma eleição em 2022 nesse sufoco me surpreende. A gente não consegue entender e o resto do mundo está com dificuldade para nos entender também.
E quais são as opções do governo agora para conseguir prover as medidas de alívio à sociedade e ao setor produtivo na pandemia?
Hoje, nesse cenário que eu tracei, só tem uma iniciativa estratégica indiscutível, que é o ritmo da vacinação. Ele resolve a pandemia e resolve a economia. E nós estamos errando também no ritmo da vacinação. Já conseguimos ter vacinas no mundo inteiro. Os Estados Unidos estão mostrando isso. Eles estavam pior que o Brasil e o que é que eles acionaram? Além de um pacote enorme, mas eles têm condição de fazer isso e nós não temos. Agora, o ritmo da vacinação dá. Essa é a variável estratégica.
Aí eu acho que a Luiza Trajano tem razão - os empresários têm que ir para cima, a sociedade tem que ir para cima. Se o governo não considera essa variável tão estratégica, o resto do País tem que considerar. É o que está faltando para acelerar a (chegada ao fim da) pandemia. É a gente chegar em 2021 com a imunidade de rebanho conquistada para poder olhar para 2022.
Para mim, se temos vacina, não adianta a gente estar perdido, olhando para crise fiscal, para situação dessa empresas, nós temos que olhar pra solução. E a solução é acelerar a vacinação, ponto. Eu não vejo outro.
Agora, quem vai fazer isso? O (cientista e médico Miguel) Nicolelis está propondo um comitê nacional de crise para tomar as decisões que precisar tomar. Os governadores do Nordeste se juntaram aí para ir atrás de vacina mundo afora. É isso que tem que fazer. Aí de novo o Nordeste dando lição para o Brasil. 'Gente, não adianta ficar se lamentando, adianta atuar. E o que a gente vai fazer?' O Consórcio Nordeste fez isso, vai para o mundo para conseguir vacina e entrega lá para o controle nacional e depois redistribui para o Brasil todo. Qual é o problema? É isso que tem que ser feito.
É juntar as energias que nós temos, e nós temos, o País é capaz de vacinar em massa e não estamos usando a nossa estrutura do SUS que faz vacinação em massa. Não é possível, não é possível. O Brasil tem saída, o Brasil tem solução, dá para chegar em 2022 melhor. E para mim não é para ficar discutindo qual é a continha, quem é que paga. É vacina, vacina já. Quem puder ajudar, que ajude, quem puder trazer vacina, que traga. E vamos vacinar a população, nós somos capazes de vacinar. E estamos sendo incapazes de trazer as vacinas. Não é possível, não é possível.
A senhora avalia que a pandemia vai alargar as diferenças socioeconômicas entre Nordeste e Sul/Sudeste?
Já tem estudos sobre 2020 que mostram que as diferenças sociais históricas nossas foram elemento que pesou nos resultados da pandemia. Se você olhar número de mortes, nível de renda, condições de habitação, tem vários estudos acadêmicos que estão mostrando que sim, nós vamos sair mais desiguais da pandemia, como se não bastasse a desigualdade herdada. Regionalmente, também. Porque, para mim, a pandemia vai deixar um impacto mais grave no mercado de trabalho do que na própria atividade econômica, e o nosso mercado de trabalho é mais desafiador.
Aquelas três tendências que nós estamos vivendo, a gente viu isso na educação, por exemplo. A educação jamais vai ser como era antes. Nós vamos combinar ensino presencial com ensino à distância, mas as condições sociais para participar do ensino à distância não são as mesmas nem nas grandes cidades, nem nas cidades do interior, em zonas urbanas ou rurais. Nós vamos ter que colocar de novo desigualdade na nossa agenda para o pós-pandemia. A pandemia vai deixar saldo.
Por exemplo, para mim, com uma ação estratégica pra o futuro, os governadores do Nordeste mais uma vez deram exemplo. No Consórcio Nordeste, um dos primeiros projetos que os governadores escolheram antes da pandemia - era começo de 2020, a gente não tinha ainda a consciência da pandemia - um projeto cearense, para render as minhas homenagens ao Ceará, que é a infraestrutura de fibra ótica que forma a rede de conectividade do Ceará, o Cinturão Digital.
Os governadores perceberam a importância desse projeto e transformaram eles em um projeto regional. Eles estavam olhando para o século 21. No século 20 é quando circulava gente e mercadoria, e aí o Nordeste tem desvantagem competitiva tanto na infraestrutura portuária quanto rodoviária, embora a gente tenha melhorado muito. Mas a gente não pode acumular isso com a infraestrutura estratégica do século 21, que é quando, além de gente e mercadoria, vai circular a imagem, informação, por outra infraestrutura. É a infraestrutura de telecomunicações e eles escolheram esse projeto.
Eu acho que eles foram muito estratégicos, e copiaram o Ceará, que tinha feito a escolha correta, e hoje a gente tem um projeto estratégico que é estruturar a rede de fibra ótica competente para o conjunto da região. E eles tiveram uma preocupação que eu acho central- aí eu volto para a desigualdade. Todo projeto, tem que olhar as desigualdades. E aí não basta fazer a macro-rede de fibra óptica, é preciso fazer a última milha, é preciso levar para as favelas, para o meio rural. Se não, as crianças que moram ali não vão ter acesso a educação de qualidade.
E aí, de novo, o Ceará, para nós, é um exemplo. O Ceará tem empresas médias fazendo esse serviço, que nos encanta. Que fazem isso com uma competência enorme. E nós somos capazes de fazer isso, não precisa grande empresa. Para fazer essa última milha, a grande empresa não se interessa, é espaço para a pequena e média empresa para levar o acesso ao mundo digital para quem vai precisar dele. Porque se não, não consome saúde, porque a saúde também vai mudar - a telemedicina também veio para ficar. As consultas online vão continuar, não é só educação online. É educação e saúde, que são prioridades evidentes. Como depois da pandemia não tem prioridade para a saúde?
Eu acho que eles foram muito estratégicos, escolheram um bom projeto que dialoga perfeitamente com desafios pós-pandemia e que dialoga com o século 21, porque nós não vamos reproduzir o século 20 no século 21. Desistam! Quem pensar com a cabeça do século 20 vai estar errando. Temos que pensar no século 21, em saúde, no potencial de fitoterápicos do Nordeste, do semiárido. Tem que pensar com outra cabeça! E aí eu tenho uma dose de otimismo muito grande. Se a gente puder olhar para potenciais que a gente tem do século 21, eu acho que o Nordeste pode escolher projetos estratégicos importantes.
A retomada da visão regional, para mim, é uma herança que esses governadores vão deixar. Veja que é uma safra de governadores de partidos diferentes, que vinham de anos de guerra fiscal, que tinha fraturado o Nordeste, tinha nos colocado uns contra os outros. A briga entre Pernambuco e Ceará era de foice em noite escura, e agora a gente vive um outro ambiente. A gente vive um ambiente de fazer essa pergunta: o que nos une? Quais são os desafios comuns e quais são potenciais comuns?
Olhar pro semiárido, que é um ecossistema que une o Nordeste, é uma das justificativas para a gente ter a Bahia no Nordeste. Os baianos de vez em quando querem virar Sudeste e o semiárido não deixa (risos). Como a gente vai tratar o semiárido sem a Bahia? Olhar pro semiárido diferente, com o olhar da ciência, da bioeconomia, com essa agenda mundial que o pós-pandemia vai trazer. Vai ser um debate muito estimulante para a gente fazer depois que a gente escapar de 2021.
Então, acho que é assim: no curto prazo, é escapar de 2021, conseguir respirar em 2022 para ir plantando essas sementes de futuro. E o Nordeste tem sementes de futuro importantes. Inclusive no complexo da saúde. O complexo precisa estar na nossa agenda, não é só serviço de saúde. A pandemia vai deixar isso como elemento de reflexão também. A Fiocruz tem estudado isso com muita competência. A gente viveu na prática falta de EPI, de seringa, agora está faltando oxigênio, e a gente não pode deixar isso voltar acontecer, porque o século 21 tende a reproduzir pandemias, nós não vamos nos libertar dos vírus. Temos que repensar como a gente se organiza e tem uma agenda para o Brasil e para o Nordeste, que é o complexo industrial da saúde.
O nosso desafio é perguntar: onde estão essas sementes? Quem é que já faz? Vamos estimular. Essa é uma agenda estimulante e a presença desse tecido universitário no interior do Nordeste tem que ser utilizado. A gente tem que dar o retorno desse investimento que foi feito buscando pesquisar as perguntas certas que a gente fizer.
E o Nordeste pode fazer uma virada. Aquele Nordeste do século 20, da região que perdeu o trem da indústria antiga. Aquela indústria já era. É outro trem que está passando e é ele que a gente tem que pegar.
A gente tem que olhar para cenários prospectivos de futuro. E eu acho que os governadores vão deixar esse legado: voltamos a nos perguntar que Nordeste é esse, o que nos une, quais são os projetos estratégicos, desafios estratégicos para a região.
Eles estão montando uma plataforma de financiamento porque estão convencidos do certo - o modelo de financiamento do desenvolvimento do século 21 não é o do século 20, ponto. Não adianta lamentar o que a gente perdeu no século 20. Adianta olhar para o desafio do século 21, financiar startup não é financiar empresa tradicional. Não tem ativo.
Tem que colocar o BNB para pensar como financiar startup. Mas financiar em massa, não é financiar um pedacinho. E nós temos o BNB, que fez um programa de financiamento para a microempresa que se transformou em exemplo para o País. Quem é capaz de fazer aquilo é capaz de financiar startup. Tem que mudar a cabeça, as regras, mas nós somos capazes de fazer. E temos o fundo constitucional - não nos faltam instrumentos. Tem de onde partir.
Acho que no meio dessa angústia de 2021, a gente tem que lembrar de Ariano Suassuna. Ele conjugava o verbo esperançar. E ele dizia que ele era pessimista no curto prazo e otimista no médio prazo. Acho que lição que ele deixou, a gente tem que copiar. Tem que aprender com ele a dizer: olha, vamos esquecer nossos lamentos do século 20 e vamos olhar para os nossos potenciais do século 21.
Acho que o Ceará é um bom exemplo. Ceará tem plano estratégico, eu participei dele em uma partezinha sobre governança. Mas ali tem ideias inovadoras, como esse projeto da infraestrutura de fibra ótica. O Ceará é um estado que não está com a cabeça no século 20. Ele está no século 21.
A última década pode ser considerada perdida em relação ao desenvolvimento econômico?
É sim, mas ao mesmo tempo que eu reconheço que é uma década perdida, não temos o futuro perdido. Perdemos uma década, não adianta lamentar. Cometemos equívocos, tivemos dificuldades de engatar no século 21. E a pandemia veio para acelerar o século 21. Vamos aprender com o sofrimento da pandemia, ela vai deixar essa lição para nós.
E quando eu vejo o Brasil, o Centro Oeste está se saindo melhor porque o agronegócio não foi tão afetado pela pandemia. Os números estão mostrando que aquela base agropecuária do Centro-Oeste, que chega no Nordeste (o oeste do Nordeste também está bem melhor que o leste), pela razão de que eles não aglomeram tanto, né? Então, se saíram melhor e o mercado mundial estava favorável. O Brasil é de fato grande produtor de alimentos, não há como sair dessa potencialidade, e ao contrário, tem que investir nela.
Mas eu acho que não basta dizer que perdeu a década. Reconheço que perdeu, mas não reconheço que está tudo perdido. Não reconheço que não temos potencial para olhar diferentemente para o futuro e construir novas estratégias. Nós somos capazes de fazer isso em outros momentos. Não é a toa que o Brasil deu uma guinada no seu crescimento depois de duas guerras. Aquele ambiente pós duas guerras não é um ambiente fácil. E foi ali que o Brasil resolveu ser uma potência industrial e conseguiu.
Em 1980, nós éramos a oitava potência industrial do mundo. Depois de duas guerras. Claro que o que a pandemia vai deixar agora é muito mais difícil e os desafios das mudanças também são enormes. Pensar economia junto com meio ambiente requer uma outra cabeça, mas abre novas potenciais. É nisso que a gente tem que trabalhar. Então, quem é que tá pensando nisso? Quais são as empresas que estão pensando nisso. E tem empresas pensando nisso. Tem empresas no Nordeste usando semiárido diferente. Não é só na Academia não, tem também no meio empresarial quem esteja com a cabeça no século 21. Vamos valorizar isso.
Eu acho que o Ceará merece o nosso olhar. Quando olho o que acontece no Ceará, várias agendas que eu vejo ali são muito inovadoras. No Ceará 2050 (plataforma colaborativa de planejamento estratégico de longo prazo desenvolvida pelo Governo Estadual juntamente a instituições da sociedade civil), vocês estavam pensando em economia do mar! É isso mesmo, tem que pensar em economia do mar! O Brasil tem um litoral fantástico, porque a gente não olha para isso? O Ceará está olhando.
É o Nordeste dizendo ao Brasil: 'Gente, esqueçam. Nós não somos mais aquela sociedade de pires na mão querendo transferência de renda. Nós queremos ajudar a construir o Brasil do século 21 com outra cabeça. Na Academia, no meio empresarial, na sociedade civil, reconhecendo as dificuldades, mas não ficando amarrado nelas.