Empreendedora negra da Barra do Ceará cria grife de moda afro: 'Nossa forma de protagonizar' na economia
A Barra do Ceará, um dos bairros mais solares de Fortaleza, foi o berço e escola da cearense Nenzinha Ferreira, de 44 anos. Quando menina, a paisagem do bairro onde cresceu era tomada por fábricas do primeiro polo industrial do Estado, hoje extinto. Quase todos seus amigos de infância sonhavam em trabalhar na indústria de beneficiamento de castanha da região por ser uma via de acesso à renda para a população negra e menos escolarizada.
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Mas ela não. “Minhã mãe dizia que eu iria para a faculdade”, lembra. Na década de 1990, aquelas fábricas começaram a se mudar para o Conjunto Industrial de Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza, alterando novamente a dinâmica e a economia da comunidade.
Muitos se viram obrigados a buscar novas formas de sustento, como a Dona Maria Isabel Ferreira, mãe de Nenzinha, que começou a produzir e vender salgados na calçada de casa para criar, sozinha, suas duas filhas.
Anos mais tarde, Nenzinha, já formada em Pedagogia, enfrentou situação semelhante e utilizou essa vivência. Desempregada desde que se tornou mãe, ela, em parceria com uma amiga, decidiu empreender e criou uma grife de moda afro Timbauba.
“Estava preocupada em deixar meu filho, de 4 anos, em casa, mas precisava de algo para ganhar o dinheiro e complementar a renda do meu marido. Como também sempre gostei de moda e arte, já tinha trabalhado com produção cultural, decidi fundar a marca e conciliar com a maternidade", conta como surgiu o negócio, há 10 anos.
Sua trajetória exemplifica como o empreendedorismo se tornou um caminho para a inserção da população negra em um mercado de trabalho historicamente excludente. Dados do Sebrae, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do IBGE, revelam que 72,2% dos empreendedores cearenses se autodeclaram negros.
Em números absolutos, dos 1.128.000 (um milhão, cento e vinte e oito mil) negócios iniciados no Ceará, 815.100 (oitocentos e quinze mil e cem) foram abertos por pessoas não brancas, no primeiro trimestre de 2023.
"A maioria das pessoas no afroempreendedorismo é mulher. Foi uma questão de sobrevivência para as mães negras, como a minha, que vendia pastel na frente de casa. Hoje, tem esse nome bonito, mas é uma herança de um aprendizado pela necessidade", observa.
Em 2019, Nenzinha e dois amigos também desenvolveram um projeto social de afroempreendedorismo, a Feira Negra de Fortaleza, voltada para gerar renda.
Atualmente, o modelo colaborativo possui lojas fixas nos shoppings RioMar (Fortaleza e Kennedy), North Shopping e Ceart (@ceartceara), além de feiras mensais na Praça da Gentilândia, no Benfica. Os shoppings não cobram dos empreendedores pelo espaço.
"Há esse viés da sobrevivência porque a população negra precisa se virar de algum jeito, já que nem sempre tem acesso ao emprego formal. Mas, por outro lado, temos produtos de qualidade que já são feitos por nós, pessoas negras, e que são explorados pelas grandes empresas. Por isso, também é a nossa forma de protagonizar na economia", frisa.
Segundo o Grupo JCPM, dos shoppings RioMar, entre janeiro de 2023 e outubro de 2024, essas lojas geraram uma receita de aproximadamente R$ 400 mil, valor integralmente destinado aos afroempreendedores.
O afroempreendedorismo está alinhado ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 18, que busca a redução das desigualdades, incluindo as étnico-raciais.
Dificuldade de acesso ao crédito impede avanço do afroempreendedorismo
Nenzinha pondera, contudo, que um dos maiores obstáculos enfrentados pelos afroempreendedores é a dificuldade em obter crédito. Além disso, a falta de orientação sobre como utilizar esses recursos financeiros de forma eficiente e a escassez de oportunidades de capacitação agravam ainda mais essa situação.
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No último dia 15, entre as propostas do documento "Empoderamento Econômico da População Afrodescendente", lançado no G20 Social, destacam-se linhas de crédito para pequenos empreendedores periféricos e a criação de uma coalizão de bancos para promover a inclusão social e étnica.
As propostas serão apresentadas a instituições como os bancos Nacional do Desenvolvimento (BNDES) e Interamericano, além de outras instituições financeiras privadas. Na prática, propõe-se a criação de linhas de crédito subsidiadas, direcionadas a micro e pequenos empreendedores afrodescendentes em áreas periféricas, visando estimular o empreendedorismo local.
A força do afroempreendedorismo feminino
Para a doutora em Sociologia e secretária de Igualdade Racial do Ceará, Zelma Madeira, embora o empreendedorismo por necessidade seja uma realidade da população negra, também pode ser uma escolha, sobretudo para as mulheres que enfrentam além da segregação racial o sexismo.
De acordo com ela, o empreendedorismo feminino apresenta grande força, em especial quando há atuação de forma coletiva, como nas feiras negras. Essa modalidade de negócio não apenas proporciona melhores condições sociais e econômicas, mas também fomenta a participação, o associativismo e a cooperação ao nível comunitário.
"É interessante notar que esses empreendedores, embora iniciem por necessidade diante da pobreza e das vulnerabilidades sociais e econômicas, utilizam o empreendimento como um espaço para expressar seus valores”, analisa.
“Seja na gastronomia, na produção de roupas, de bijuterias, na realização de feiras ou no campo da produção cultural, esses empreendimentos veiculam muitos valores do povo negro na realidade brasileira e cearense. Essa rica produção contribui tanto para o enriquecimento econômico do Estado quanto para o fortalecimento do reconhecimento étnico”, completa.
Políticas públicas para o afroempreendedorismo no Ceará
Segundo a secretária Zelma, a pasta faz um mapeamento da população negra com interesse em empreender, por meio de um formulário, a fim de definir políticas públicas mais eficazes para esse público.
Em parceria com o Sebrae, a secretaria oferece capacitações para afroempreendedores. Além disso, está prevista para dezembro a publicação do edital 'Meu Afro Negócio', destinado a promover o empreendedorismo entre negros, quilombolas, de terreiro e ciganos do Estado. O investimento será R$ 750 mil.
Ao todo, serão beneficiados 100 empreendedores que receberão um kit de equipagem contendo: barraca de feira e kit artesanal (segmentos: artesanato, estética, cozinha, vestuário ou gastronomia ancestral/cultura alimentar), além de formações em gestão de negócios, gestão financeira, marketing, gestão de projetos e etnodesenvolvimento.
Segundo Silvio Moreira, articulador da Unidade de Competitividade do Sebrae/CE, os afroempreendedores podem buscar diretamente a entidade para solicitar capacitações e trilhas personalizadas de acordo com suas trajetórias e modelos de negócio.
Essas ações fazem parte do programa Plurais, que visa incentivar a inclusão e a diversidade no mundo dos negócios. “O nosso foco é melhorar a capacidade dos empreendedores de gestão para chegaram a um bom nível de competitividade”, explica.
Serviço
Feira Negra - Lojas nos Shoppings
- RioMar Fortaleza: Piso L2, ao lado da Decathlon
- RioMar Kennedy: Piso L1, próximo à Nagem
Funcionamento: segunda a sábado, das 10h às 22h; domingo, das 13h às 21h
- Quiosque Social IJCPM - Novembro
Local: Piso L2, próximo à loja Mundo Verde - RioMar Fortaleza
- Feira Negra de Fortaleza: @feiranegradefortaleza
Festival Feira Negra
II Festival Feira Negra Ceará- Lélia González – “Nossa História Também Conta” terá moda, criatividade, estética negra, gastronomia, Tecnologia, Literatura, Música, mesa de debates, oficinas, produtos da terra (agroecologia), artes plásticas, artesanato, desfile ancestralidade, farmácia Viva, Workshop, oficinas e debates.
O Festival vai reunir afroempreendedores do Ceará, em especial das diversas periferias da capital como Messejana, Conjunto Palmeira, Parangaba, Itaperi, Pici, José Walter, Barra do Ceará, Pirambu, Leste Oeste, Bom Jardim e região metropolitana como Caucaia, Maracanaú e Beberibe.
- Data: 30 de novembro, das 16h às 23h;
- Local: Praça da Gentilândia.