Vagão de trem queimado no Otávio Bonfim era último símbolo de estação construída há mais de 100 anos

Cargas e passageiros passaram pelo local durante quase nove décadas

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Equipamento fazia parte da antiga linha Sul da ferrovia cearense
Foto: Arquivo Nirez

Fortaleza sofreu, neste mês, mais um golpe na preservação de um patrimônio histórico: na madrugada do dia 15 de setembro, o último vagão da antiga Estação Otávio Bonfim, no bairro Farias Brito, foi destruído por um incêndio. Era o último remanescente de uma longa história de viagens do interior do Ceará à capital, que se iniciou há mais de 100 anos.

Em nota, a Secretaria Executiva Regional 3 informa que registrou um Boletim de Ocorrência e aguarda os resultados das investigações conduzidas pela Polícia Civil do Estado do Ceará. 

“A definição dos próximos passos para o local será baseada nas conclusões das investigações”, declarou a Pasta, justificando que “não existiu nenhum projeto de tombamento para o vagão e que a estrutura citada foi cedida pela Transnordestina à Secretaria da Cultura de Fortaleza em 2018”.

Legenda: Estrutura em madeira foi totalmente consumida pelo fogo; causas do incêndio serão apuradas
Foto: Davi Rocha

A Estação Otávio Bonfim, desativada totalmente em 2009, pertencia à Linha Sul da ferrovia cearense. Esta foi um desdobramento da linha da Estrada de Ferro de Baturité, aberta em 1872 a partir de Fortaleza. O itinerário chegou ao seu ponto máximo em 1926, quando alcançou a cidade do Crato, no Cariri.

Legenda: Estação Otávio Bonfim na década de 1970
Foto: Livro "As Estradas de Ferro do Ceará"

Para entender o contexto de criação da linha e a importância dela para o período, o Diário do Nordeste consultou Cristina Holanda, historiadora e diretora do Museu Ferroviário do Ceará, e Alysson Maciel, também historiador e educador museal do equipamento.

Eles se basearam em dados de pesquisas realizadas para a composição da exposição de longa duração do Museu, que contou com a colaboração de pesquisadores acadêmicos e ferroviários. 

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A criação da linha Sul

Originalmente, a linha Sul estava prevista para sair de Fortaleza e seu destino final seria a cidade de Baturité - o nome da primeira empresa de transportes ferroviários no Ceará, inclusive, foi Companhia Cearense da Via Férrea de Baturité SA. Porém, os caminhos foram sendo feitos em partes:

  • 1873 - o primeiro trecho inaugurado ia do Centro (Estação Central) até o Arronches (atual Parangaba)
  • 1876 - os trilhos estenderam-se até Pacatuba
  • 1877-1878 - período de paralisação
  • 1882 - alcançou Baturité
  • 1926 - atingiu o destino final: o Crato

Em paralelo, a chamada linha Norte começou a ser construída em 1878, saindo de Camocim, passando por cidades como Sobral e se encerrando em Crateús, no Sertão, também no ano de 1926. 

Legenda: Ideia de moradores do entorno era viabilizar um museu em memória dos flagelados pela seca
Foto: Natinho Rodrigues

“A ferrovia no Ceará se insere no contexto de ampliação mundial do capitalismo, impulsionado pela Revolução Industrial inglesa, integrando de forma mais rápida o interior cearense com a capital e o exterior, possibilitando um crescente fluxo de mercadorias e pessoas”, explicam os historiadores.

Desde o seu início, lembram eles, a ferrovia no Ceará transportou passageiros e mercadorias, embora a prioridade tenha sido o transporte de cargas para agroexportação, como o café (em fins do século XIX e primeiras décadas do XX) e o algodão (a partir dos anos 1900).

Batismos da estação

A estrutura no atual bairro Farias Brito foi inaugurada em 31 de dezembro de 1922, inicialmente com o nome de “Quilômetro 3” - referência à sua localização no percurso. 

Depois, também ficou conhecida como “Matadouro”, pela proximidade com um abatedouro de gado. À época, a região também funcionava como entrada do campo de concentração do Alagadiço, que recebeu muitos flagelados da seca que assolava municípios dos sertões.

Para não saírem do local e perturbarem a “ordem pública”, os retirantes eram vigiados por soldados. O governo oferecia alimentação e água, mas soluções permanentes nunca saíram do papel. Em condições precárias, foram os flagelados que ajudaram a formar bairros como Alagadiço, Moura Brasil e Pirambu. 

Algum tempo depois, a estação receberia o nome de Otávio Bonfim (1884-1925), em homenagem a um dos engenheiros e chefe de tráfego da da Rede Viação Cearense (RVC). Ele faleceu vítima de infecção, com apenas 41 anos.

Legenda: Funcionamento da estação no ano de 2001
Foto: Stenio Saraiva/Arquivo DN

Encerramento das atividades

O prédio original da estação foi demolido pela Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) em 1979, para a construção de uma estrutura mais moderna para atender à então Coordenadoria de Transporte Metropolitano (CTM).

Como apontam Cristina Holanda e Alysson Maciel, o serviço de longa distância para passageiros foi encerrado em 1988. Contudo, o transporte de cargas continuou mesmo com a extinção da RFFSA, a partir da concessão para empresas particulares como a FTL - Transnordestina, usando o antigo ramal de Itapipoca, passando por Sobral e passando pelo Piauí.

“Diante das mudanças econômicas no Brasil a partir da década de 1960, os investimentos públicos nas ferrovias diminuíram, pois segundo o discurso oficial, eram muito onerosos e sem rentabilidade, preferindo-se investir nas rodovias”, situam os historiadores.

Em maio de 2009, o trem passou a rodar apenas da estação de Parangaba para a estação Vila das Flores (hoje Carlito Benevides, em Maracanaú). Assim, o trecho entre a Parangaba e o Otávio Bonfim foi desativado. O trecho João Felipe-Otávio Bonfim foi mantido por mais uma semana, mas também foi suspenso pela baixa demanda.

Com a implantação da Companhia Cearense de Transportes Metropolitanos (Metrofor), as antigas estações ferroviárias foram aos poucos sendo demolidas. A do Otávio Bonfim foi removida parcialmente, restando as colunas de sustentação e as fundações. 

Legenda: Ruínas da estação em 2015, após ser desativada e demolida
Foto: Natinho Rodrigues

Um grupo de ativistas moradores das imediações até defendeu a recuperação da Estação do Otávio Bonfim, com a ideia de o prédio abrigar um memorial para lembrar vítimas das secas. No entanto, o projeto também não foi colocado em prática.

O último vagão permaneceu com os trilhos e foi recolocado por lá após obras de requalificação da Avenida José Jatahy, que “substituiu” o itinerário da linha, em dezembro de 2018. Sem uso específico nos anos seguintes, o equipamento foi pichado, deteriorado e, no domingo, tomado pelo fogo.

Legenda: Vagão no fim de 2018, após a abertura da nova Avenida José Jatahy
Foto: Natinho Rodrigues

Exposição permanente

O Museu Ferroviário Estação João Felipe recebe a exposição de longa duração intitulada “Nos trilhos do tempo: Histórias da ferrovia do Ceará”. A mostra apresenta um panorama da trajetória da ferrovia cearense e fica na antiga Estação Ferroviária Prof. João Felipe, que hoje abriga o Complexo Cultural Estação das Artes.

Foi de lá, também conhecida como Estação Central, que saiu o primeiro trem do Ceará, no dia 30 de novembro de 1873. Às 17h, o maquinista José da Rocha e Silva deu partida na locomotiva rumo à Parangaba e entrou para a história cearense.

O funcionamento do espaço é de quarta a sábado, das 12h às 20h; e domingo, das 9h às 17h, com visitação gratuita e aberta ao público. A entrada ocorre até 30 minutos antes do encerramento.

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