Campos de concentração no Ceará: entre o esquecer e o lembrar está a emergência do agora
Nas garrafas de Água no Patu, os caminhantes levam refrigério a quem tem sede, mesmo que simbolicamente, pois deixaremos novamente a fervura climática devorar os mais frágeis?
12 de Novembro de 2023 – Senador Pompeu, Sertão Central cearense. Milhares de romeiros participam da 41ª Caminhada da Seca em memória aos mortos no Campo de Concentração do Açude Patu durante a seca de 1932.
13/14 de Novembro de 2023 – Rio de Janeiro. A cidade registrou pela manhã sensação térmica de 52,7° C. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu alerta de grande perigo para 13 estados devido à forte onda de calor. Temperaturas devem atingir entre 40 e 45°C em diversas regiões. O alerta do Inmet vai até de quarta-feira, 15 de Novembro, feriado da república.
15 de Novembro de 2023 – Brasil. Feriado Nacional em comemoração à Proclamação da República Brasileira, golpe político-militar que em 15 de novembro de 1889 instaurou uma república presidencialista de governo no Brasil.
“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.”
Na manhã de domingo, dezenas de garrafas de água e pães foram depositados no cemitério da barragem, lugar simbólico onde o povo acredita estarem os corpos das vítimas do “campo de concentração” do Açude do Patu, em Senador Pompeu, no Ceará. Água e pães para os que morreram de sede, de fome, subnutridos e encurralados pelo Estado.
As vítimas do pecado/crime da pobreza foram lembradas na romaria organizada desde 1982 pelo padre italiano Albino Donatti e pela coordenadora do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro (CDDH-AC) Marta Sousa a partir da prática tradicional dos fiéis de encomendar missas pelas almas da seca de 1932. A “Caminhada pela Almas” ou “Caminhada da Seca” ocorre sempre no segundo domingo de novembro e atrai cada vez mais fiéis e estudiosos.
Veja também
Milhares saíram da Paróquia Nossa Senhora das Dores clamando em sua fé pelos alvos da violência sistêmica do Estado brasileiro. Retirantes, peregrinos, flagelados, refugiados climáticos, os cidadãos mais necessitados do país que no lugar de acolhimento receberam do governo apenas isolamento, morte e esquecimento. O número de vítimas da seca e do poder público são incertos, mas, de qualquer modo, escandalosos, indo de pouco mais de mil a cerca de 10 mil óbitos. Os católicos da região referem-se a esses mortos como santos. Mártires, canonizados pelo sofrimento e pela injustiça dos poderes terrenos.
Os campos começaram em 1915, e 1932 foram sete. Chamados à época de currais, estes terríveis espaços estavam destinados ao esquecimento se não fosse a resistência popular a inquietar autoridades e intelectuais. A romaria manteve viva a memória dos campos mesmo quando historiadores e governos a negligenciavam. Hoje podemos redescobrir essa dolorosa história. Em 2021 uma lei estadual colocou a Caminhada da Seca oficialmente no roteiro turístico do Ceará. O Sítio Histórico do campo de concentração da Barragem do Patu teve seu tombamento estadual aprovado em 2022.
O tombado municipal virou estadual e agora lutamos pelo reconhecimento federal. Já escrevi aqui e acredito que ainda escreverei muito sobre os Campos de Concentração cearenses de 1915 e 1932, pois essa história não deve e não pode ser apagada.
“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.”
Na mesma semana de luta pela memória dos mártires do Patu temos uma data enaltecida pelo poder público, feriado nacional, um marco cívico que demanda grande e antigo esforço para se tornar uma data popular, mas, é difícil popularizar um evento que desde sua origem nada teve de povo.
Criticar a falta de apego do povo ao 15 de novembro acusando-o de alienação ou falta de patriotismo é uma miopia histórica acerca da formação das tradições. Os 41 anos da romaria tendem a virar tradição, os 133 anos de proclamação tende a virar calendário. A diferença? Sua origem e sua essência.
Ao examinarmos mais de perto os acontecimentos que se desenrolaram durante a transição para a república vemos as contradições e sombras que lançam dúvidas sobre a natureza verdadeiramente democrática desse momento histórico. O ideário republicano – propagado pelos líderes militares e civis que encabeçaram o movimento golpista – enaltecia a “Ordem e Progresso”, mas, esqueceram de listar a justiça social e a inclusão no banquete da festa republicana.
Os Currais da seca, os massacres de movimentos populares como Canudos, Contestado, o Caldeirão de Santa Cruz entre muitos e muitos outros evidenciam uma república pouco pública e muito oligárquica, onde os que ousavam desafiar a opressão e injustiça tinham que ser eliminados, isolados e apagados em nome da forma, da ordem, do aformoseamento das elites.
No feriado da Proclamação da República veremos muitas narrativas pasteurizadas, que romantizarão pessoas e episódios históricos, mas, será preciso lembrar dos esqueletos insepultos da república e suas covas rasas, dos mendicantes à beira do caminho da “civilidade republicana”. Celebrar a transição para a república não pode significar ignorar as contradições e injustiças que a acompanharam ao longo do tempo e perduram até a atualidade.
“Bem-aventurados os que promovem a paz. porque serão chamados filhos de Deus.”
E qual a relação da questão climática com esses dois eventos? Uma questão fundamental, o efeito da história e seus marcos é provocar reflexões sobre nossas escolhas e nossos caminhos. A Res publica - expressão latina para "coisa do povo" ou "coisa pública" – nos provoca, o que é mais público que nossa casa comum, nosso meio ambiente, nossa existência coletiva no planeta.
Nas garrafas de Água no Patu, os caminhantes levam refrigério a quem tem sede, mesmo que simbolicamente, pois deixaremos novamente a fervura climática devorar os mais frágeis? Assistiremos de piscinas e ares condicionados a terra castigar os que não podem curtir o feriado na praia e ainda culpamos o meio ambiente?
Na luta entre o lembrado e o esquecido ainda temos o crucial: o vivido. Entre a romaria e o feriado vivemos a fervura global, uma seca globalizada criada por nós mesmo e que campo de concentração nenhum será capaz de amenizar. Mas até quando fingiremos não ver ou sentir?
Se vamos parar o comércio, as escolas e empresas do Brasil inteiro nesta quarta feira podemos refletir sobre as lições das secas do Ceará, considerar as contradições que moldam nossa história e daí, assimilando nossas dores e forças, buscar outros caminhos, com proteção aos direitos fundamentais, respeito à todas as diversidades e a promoção de uma sociedade justa e igualitária com água a quem tem sede, comida a quem tem fome e ondas cada vez menores de calor e de indiferença.
"Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor”.