Restrição de saídas e visitas a crianças e jovens em abrigos de Fortaleza gera polêmica; entenda
Para entidades de defesa, determinação reforça situação de encarceramento dos acolhidos
Uma portaria da Coordenação das Varas da Infância e Juventude de Fortaleza, publicada em 21 de agosto, vem gerando polêmica entre instituições de defesa de crianças e adolescentes que vivem em unidades de acolhimento da Capital. O documento trata da saída dos acolhidos e da entrada de terceiros nesses locais.
Na prática, a medida estabelece que a saída de crianças e adolescentes acolhidos deve ter prévia autorização judicial e comunicação ao Ministério Público. A exceção “são atividades da vida diária”, como de educação, saúde e lazer.
Além disso, proíbe visitas de qualquer pessoa “que não esteja vinculada por parentesco ou pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento a crianças e adolescentes em situação de acolhimento”.
abrigos institucionais em Fortaleza acolhem, atualmente, cerca de 300 crianças e adolescentes.
O texto gerou reações de entidades ligadas à adoção. A ONG Acalanto Fortaleza, por exemplo, publicou nota de desagravo sustentando que a medida gera “restrição ao convívio comunitário” e favorece “condições de quase encarceramento” em que vivem os institucionalizados.
"A Portaria em debate se ancora na burocracia e tira dos coordenadores das unidades de acolhimento o dever, até então por eles exercido, de zelar pelos sujeitos pelos quais se responsabilizam", destaca a nota.
Em resposta, o Ministério Público do Ceará (MPCE) também impetrou habeas corpus coletivo contra a portaria, alegando a cassação do direito de ir e vir das crianças e adolescentes institucionalizados. A peça alega ainda que a judicialização das saídas das unidades pode atrasar a análise de outros processos da Justiça da Infância.
Controvérsias
Para esclarecer as determinações, a juíza e coordenadora das Varas, Mabel Viana Maciel, realizou na última terça-feira (5) uma reunião com gestores das unidades de acolhimento e representantes da Defensoria Pública. Segundo ela, a nova portaria, “mais flexível”, apenas atualizou um documento anterior, de 2014, que era menos detalhado.
“No artigo da outra portaria, que estava em vigor anteriormente, não tinha a ressalva, só tinha a restrição. É para haver o entendimento de que os acolhidos podem sair para o lazer, para atividades religiosas, para seus estágios e para a convivência comunitária, tudo o que faz parte da rotina”, garante.
As saídas que devem passar pelo crivo judicial são as que escapam da jurisdição da Comarca de Fortaleza.
Sobre as restrições de visitas, a magistrada explicou que aqueles que desejam exercer o serviço voluntário devem aderir ao Programa de Apadrinhamento do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), mas modalidades “financeiro, de serviço e/ou afetivo”.
Apesar das explicações, coordenadores de unidades de acolhimento têm receio sobre a aplicação prática da portaria, já que a não observância pode implicar em infração ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em medidas judiciais.
Um representante de um abrigo de Fortaleza, em conversa com o Diário do Nordeste, garante que a reunião foi “explicativa” - mas o problema é que ela não está escrita, gerando insegurança jurídica.
“Se a portaria não for publicada novamente, manterá as proibições e, consequentemente, será a lei. Por fala se diz tudo, mas na hora de um processo ou problema, vale o que está escrito. É necessária a correção em portaria para maior segurança de todos”, observa.
O MPCE expediu recomendação para que, como forma de se resguardarem, as unidades institucionais cumpram a portaria. Sobre o habeas corpus, em nota, o órgão declarou que “aguarda a decisão judicial na convicção de que os direitos das crianças e dos adolescentes serão plenamente resguardados”.
Falta de afeto
Outra crítica à portaria se refere ao artigo 2°. Ele determina que funcionários e voluntários dos abrigos se abstenham de vínculos com crianças e adolescentes acolhidos, restringindo-se “ao vínculo funcional e profissional”.
Também em entrevista, um psicoterapeuta voluntário há 12 anos no sistema de acolhimentos percebe “prejuízos imensos” com a determinação. Segundo ele, como a maioria das instituições depende dos voluntários - em sua instituição, cerca de 80% do quadro é nessa modalidade -, “ficou muito complexo de trabalhar”.
Eu trabalho com vínculo, com afeto, para diminuir os traumas que essas crianças trazem. Preciso desmistificar que ela não é um ser institucionalizado qualquer, ela precisa de amor e carinho. É esse afeto que vai fazer com que ela possa ser adotada ou voltar para a família biológica bem e mais tranquila.
Segundo o voluntário, o processo de apadrinhamento é burocrático e demora, somando-se à morosidade do julgamento de outros casos. “Elas ficam aprisionadas na instituição de acolhimento. Elas não têm poder de voz, não fazem manifestação. Alguém tem que reclamar por elas, senão vão ficar presas e excluídas da sociedade”, lamenta.
A juíza Mabel Viana explica que o artigo 2º foi motivado porque, ao longo dos anos, o Judiciário cearense acompanhou casos “em que alguns cuidadores estabeleceram um laço peculiar mais próximo, além do que devem ser os meros cuidados”. Assim, o item respalda uma postura mais profissional da atuação.
“A alegação é que, tendo afeto demais, posso pleitear a adoção dessa criança. Como, se quem é voluntário não pode estar na fila de adoção?”, rebate o voluntário. “Nós nem estamos cadastrados no Sistema Nacional de Adoção. São questões burocráticas que não priorizam a criança”.