Programa que acolhe crianças e adolescentes em casa de famílias temporárias tem baixa adesão em Fortaleza

Dos cerca de 220 meninos e meninas que estão sob tutela da Justiça em instituições de Fortaleza, 23 estão morando com “famílias acolhedoras”

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Criança de mão dada com adulto
Legenda: Famílias de Fortaleza podem acolher crianças e adolescentes de forma temporária
Foto: J. Comp / Freepik

O som da máquina de costura de Vanda Almeida, 56, disputava com as notícias do rádio quando uma se destacou, ainda em 2018: uma iniciativa municipal permitiria que ela oferecesse a própria casa como lar para uma criança ou adolescente de unidades de acolhimento de Fortaleza.

Não seria adoção, mas algo temporário. De imediato, a costureira largou as linhas e agulhas e partiu ao telefone “para saber como ajudar”. Três anos depois, ela, o esposo e o filho (à época com 18 anos) receberiam em casa duas crianças, de 7 e 9 anos de idade, pelo Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora (SFA).

Hoje, dos cerca de 220 meninos e meninas que estão sob tutela da Justiça em instituições de Fortaleza, 23 estão morando com “famílias acolhedoras”. Com o programa, é possível acolhê-los por no máximo 1 ano e meio, e garantir a eles, nesse tempo, afeto e convivência, até que a Justiça decida se vão para adoção ou retornarão às casas de origem.

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Os primeiros acolhidos de Vanda passaram 4 meses com ela, em 2021. Após a partida dos irmãos, vieram outros dois, hoje com 11 e 14 anos, que ainda moram com a costureira – e a quem ela ensina desde a cozinhar até a saber o valor de estudar e construir um futuro.

“Os dois são muito inteligentes, educados e obedientes. Eles têm muito cuidado comigo, mas são mais apegados ao meu esposo. Quando ele chega do trabalho, já correm pra abraçar e conversar”, conta, enquanto ri.

A gente brinca, joga dominó, conversa. Eles dizem que a casa deles não tinha banheiro, água, não tinha almoço nem janta. E a gente aconselha pra que eles não construam uma família desestruturada. Que estudem, se qualifiquem. Estamos preparando eles pra serem líderes.
Vanda Almeida
Costureira

O acolhimento, aliás, é um “dar e receber”. De um lado, os “filhos” temporários dizem que, após a maioridade, vão voltar para a “tia Vanda”, o esposo dela e o irmão de coração. Do outro, a costureira se emociona ao descrever que a inscrição no Família Acolhedora a ensinou sobre o próprio valor.

“A gente só se conhece de verdade quando arregaça as mangas e vai fazer algo pelo outro. A gente vê que tem valor, que tem como ajudar. E cresce. Meu filho tinha 18 anos quando eu resolvi ser ‘mãe’ de novo. Ajudando as crianças estamos ajudando o Brasil pela raiz.”

Baixa procura pelo programa

O programa Família Acolhedora é considerado “a modalidade mais benéfica a crianças e adolescentes do que as formas tradicionais”, que são as instituições de acolhimento coletivas. A análise é de Francisco Ibiapina, titular da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza (SDHDS).

“Apesar de a gente propiciar todo o acolhimento, com equipes técnicas e cuidadores, o fato de ser acolhido numa família é de extrema relevância, porque não afasta dele a experiência de conviver num núcleo familiar, com rotinas familiares”, opina o secretário.

A “gradativa transição da modalidade de acolhimento institucional para acolhimento familiar” é determinada por recomendação conjunta entre o Conselho Nacional do Ministério Público e diversos órgãos e conselhos federais, assinada em 17 de janeiro deste ano.

A meta é que até 2027 pelo menos 25% do total de crianças e adolescentes institucionalizados estejam vivendo com famílias acolhedoras, e não em “abrigos”.

Hoje, em Fortaleza, são cerca de 220 institucionalizados e apenas 23 vinculados a Famílias Acolhedoras, uma média de 12% de cobertura. “A gente precisa de uma maior adesão de famílias. Nossa dificuldade é ter esse número de cadastros”, frisa Ibiapina.

O titular da SDHDS explica que as famílias interessadas em se inscrever para acolher devem procurar a secretaria e se submeter “a um processo de seleção criterioso e rigoroso”, além de passar por “capacitação para que possam fazer esse acolhimento”.

Para Luciano Tonet, promotor de Justiça do Ministério Público do Ceará (MPCE), a dificuldade de expandir o programa em Fortaleza “é uma questão cultural”. Ele cita que na cidade de Cascavel, no Paraná, quase todas as crianças institucionalizadas estão acolhidas em famílias.

“A sensibilização das famílias é outro fator. As pessoas precisam entender como funciona, para que se interessem em ajudar. Hoje, o programa pode atender até 45 crianças, mas só tem 23”, lamenta.

Ele reforça, por outro lado, a importância da iniciativa para aqueles que realmente interessam nesse cenário: as crianças e adolescentes em vulnerabilidade.

“Quando a criança está no programa, ela tem toda uma vivência que faz toda a diferença. As pessoas que trabalham na área veem que o desenvolvimento cognitivo é notório. A criança em família tem um desenvolvimento muito mais acelerado. Existe uma parada entre as acolhidas, por isso é preciso desenvolver outros quesitos, como lazer, mas nem isso supre o que o vínculo afetivo traz”, reflete o promotor.

Como ser Família Acolhedora

Mãos de criança e adulto apoiadas uma na outra
Legenda: Convívio familiar interfere diretamente no desenvolvimento de crianças e adolescentes
Foto: Reprodução/Freepik

O Serviço de Acolhimento Familiar é uma modalidade prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com o objetivo de garantir direito à convivência familiar, comunitária e individualização do atendimento.

A família acolhedora recebe uma bolsa-auxílio de 1 salário mínimo por criança ou adolescente acolhido, valor acrescido em 50% caso seja pessoa com deficiência. Além disso, o imóvel utilizado pela família ficará isento de pagamento do IPTU.

Os requisitos para ser uma família acolhedora são: 

  • Não ter interesse em adoção;
  • Ter moradia fixa em Fortaleza há mais de 1 ano;
  • Ter disponibilidade de tempo para oferecer proteção e apoio ao(s) acolhido(s);
  • Ter idade superior a 21 anos, sem restrição de estado civil nem gênero;
  • Ser pelo menos 16 anos mais velho que o acolhido;
  • Apresentar concordância de todos os membros da família maiores de 18 anos que vivem no lar;
  • Atender as orientações da equipe técnica do serviço.

Os interessados em acolher ou saber mais informações sobre o Família Acolhedora devem procurar a SDHDS por meio do e-mail familia.acolhedora@sdhds.fortaleza.ce.gov.br ou dos telefones (85) 98902-8374 e 3105-3449 para cadastro e capacitação.

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