Pintura do século XIX é descoberta em paredes da reitoria da UFC durante reforma; veja imagens
Restauro envolve cadeiras, aparadores, espelhos, dentre outros móveis históricos que devem compor uma exposição
As portas do Salão Dourado, espaço diplomático na Reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza, foram abertas para reforma após mais de 20 anos sem atividades, e esse processo revelou uma pintura do século XIX. Com janelas amplas e móveis centenários, a sala deve receber curiosos pela história de Fortaleza a partir de agosto numa exposição.
Morada da tradicional família Gentil, de 1918, a estrutura foi vendida para a Universidade – e não perdida durante apostas, como alguns acreditam –, e adaptada, em 1956. Por lá, passaram personalidades como Juscelino Kubitschek, Simone de Beauvoir e o embaixador dos EUA John Cabot. A sala fechada por volta dos anos 2000 começou a ser reformada em dezembro do último ano.
Foi quando a equipe começou a raspar as camadas de parede (um processo chamado de janelas prospecção) até encontrar o desenho de uma flor de lis. O Diário do Nordeste visitou o espaço onde o cheiro de tinta e a poeira fina são parte dos preparativos para o resgate histórico.
A obra artesanal é conhecida como pintura parietal e pode ser vista também em ambientes da Casa de Thomaz Pompeu e do Teatro José de Alencar, como um reflexo do ecletismo no Ceará. As mudanças no ambiente foram feitas também em razão do modernismo.
Os desenhos apareceram pela curiosidade dos restauradores, que inicialmente iam cuidar apenas dos móveis, e pode mostrar outras formas e cores. A parede foi coberta de tinta em 1959, quando a primeira reforma no espaço foi feita para a colocação de concreto armado.
Ainda não há data definida para toda a camada de reboco ser retirada e, finalmente, o painel artístico ficar todo à mostra. Até lá, o retângulo já descoberto vai passar por uma pintura para devolver o aspecto mais próximo do original e ficar exposto protegido por uma vidraça.
"Nós achávamos que íamos encontrar uma sequência cronológica que contasse a história, as cores e intervenções ocorridas na Universidade. Então, foi uma surpresa de fato", descreve Carolina Alves, coordenadora do restauro numa empresa participante do processo.
Roberto Moreira Chaves, técnico de conservação e restauro de bens culturais móveis do Memorial da UFC, explica que, entre o final do século XIX e início do XX, esse tipo de pintura foi bastante usada para a decoração de ambientes.
"Muitas casas de Fortaleza possuíam pinturas parietais, não só espaços como o Teatro José de Alencar. Então, a residência da família Gentil marca o processo das primeiras chácaras no Benfica", aponta o especialista.
Para as pinturas, possivelmente, eram usados moldes. Com os estudos sobre a técnica, há a possibilidade de identificar quem eram os artistas e quais materiais eram usados por eles para a pintura parietal.
Isso é importante não só para a Universidade, mas para a cidade porque marca um período de diferentes usos do bairro. Essa instalação serve para pensarmos como as famílias vindas do Centro e do Jacarecanga passaram a se instalar no Benfica
Os esforços para devolver os aspectos históricos também foram para reunir os móveis deixados pela família Gentil. Armário de jantar, mesas e aparador estavam espalhados por outros campi, mas voltaram ao gabinete do reitor, que fica no andar de cima.
Antes da revitalização, o Salão Dourado, que provavelmente ganhou esse nome pelas peças folheadas a ouro, estava impróprio para o uso, com infiltrações e decoração danificada. O espelho de cristal estava desgastado e foi encontrado no chão.
"Da década de 1960 pra cá, o mobiliário foi passando por algumas transformações, os tecidos foram trocados e nós queremos trazer as peças para uso e que o Salão Dourado seja um espaço de memória", completa Roberto.
Trabalho minucioso
Do outro lado da Avenida da Universidade, onde fica a Oficina Mestre Noza do Museu de Arte da UFC (Mauc), uma equipe de restauradores trabalha de forma minuciosa, com instrumentos delicados e substâncias que revelam as faces originais de 4 conjuntos de peças.
Toda a movimentação vai devolver não apenas a beleza do mobiliário, como também a capacidade do público usá-lo. Dessa forma, em breve, visitantes poderão sentar na mesma cadeira que presidentes e personalidades estiveram.
"A ideia é trocar o último tecido que existe no mobiliário seguindo o padrão original. Esse tecido foi comprado na Espanha, que segue o estilo parisiense, com os mesmos arabescos. Queremos ter um entendimento do conjunto e do estilo da época”, analisa Roberto.
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Essa troca é importante porque o material encontrado não pode ser usado no cotidiano e reverter isso não foi uma missão fácil. Foram 4 meses até conseguir comprar os últimos 5 metros de tecido – que já não é mais fabricado – na Europa.
Carolina acrescenta que, muitas vezes, os materiais e processos para o restauro só são definidos durante o procedimento. "Como a prospecção tinha uma espécie de mistério, no mobiliário também há. Quando a gente começa a remover as intervenções mais recentes, isso vai mostrando o que a gente precisa fazer", pontua.
Das peças, apenas uma cadeira será mantida como está para compor a exposição do Memorial da UFC. "Foi selecionado um item que vai para o acervo de memorial que vai ajudar a contar a história para o visitante entender que aquele tecido marca uma temporalidade", conclui Roberto.
Relevância da preservação
Quem entrar no Salão Dourado restaurado poderá fazer um passeio pela Fortaleza que começou a se transformar de forma rápida com chegada da modernidade à época.
"Com a instalação da Universidade no Benfica, o bairro começou a passar por intervenções pela necessidade de instalação dos laboratórios e uma estrutura mais urbana passa a se desenvolver nessa área da cidade", contextualiza Roberto.
Algumas histórias estão marcadas no prédio. Na visita de JK, por exemplo, conta-se que o presidente acenava para quem estava nos jardins da reitoria durante a sua visita ao Ceará. Simone de Beauvoir também conheceu o espaço universitário.
Além das personalidades, o prédio da Reitoria também era usado por moradores. A “escada das noivas”, como é conhecida, fica no salão ao lado e era usada para fazer a foto de quem casava no bairro.
Ainda sobre casamentos, uma história contada por arquitetos que trabalharam no espaço registram a celebração de uma das filhas da família Gentil em que um tapete vermelho foi estendido do Salão Dourado até a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios.
Desses acontecimentos, entre outros, Carolina defende a preservação do espaço. "Estamos contando uma época bem significativa para a história de Fortaleza e do bairro. Existe uma relação de afeto também. Isso abre possibilidade de estudos do período que marcou as construções históricas da cidade".