Cripta redescoberta embaixo de altar de Igreja tem obra de arte restaurada em Fortaleza
Espaço que reúne fé e arte, conhecido como Horto da Agonia, ficou esquecido por cerca de 50 anos
Embaixo do altar da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, no Benfica, está uma cripta onde fé e arte foram encobertas por poeira durante mais de 50 anos. Há um mês, no entanto, a estrutura e as pinturas ressurgem com um trabalho de restauro que foi finalizado nesta sexta-feira (25).
Após a reabertura da cripta conhecida como Horto da Agonia, usada como depósito nos últimos anos, foram feitas intervenções para colocação de luzes, higienização das pinturas nas paredes e recuperação das imagens – parte delas coberta por tinta.
Os esforços começaram após a iniciativa do pároco Sílvio Mitozo com apoio de uma equipe da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho. A ideia era resgatar um fato histórico da Igreja e a memória do autor, de 1941, como conta o líder religioso.
"Quando cheguei na paróquia, tive a pretensão de reabrir porque vi que há uma preciosidade, uma obra de arte que retrata a Paixão de Jesus e aqui está a maior obra do artista cearense Gerson Faria”, lembra.
A Igreja, inclusive, é datada de 1910 e presenciou diversas transformações na cidade. Do lado de dentro, o acesso para a cripta acontecia no meio do altar.
Apesar da conclusão dos trabalhos de restauro, a cripta deve continuar num processo de adaptação para voltar a receber visitantes, o que deve acontecer em dezembro. Um evento para reabertura é organizado pelos religiosos.
Com isso será devolvido “um bem público” e dada mais visibilidade para a Igreja, como avalia Silvio Mitozo.
A arte também inspira e nos ajuda a compreender essa dimensão espiritual. Inclusive, no passado quando as pessoas não tinham muito conhecimento, a Igreja procurou retratar as cenas bíblicas através da arte, como a gente pode ver no Vaticano e nas igrejas antigas
Antes de começar a intervenção no local foi necessário um trabalho de pesquisa para recompor parte das pinturas que foram cobertas por tinta amarela, como detalha Antônio Vieira, conservador e restaurador de obras de arte.
“Tinham duas cenas realmente degradadas e nós fizemos um estudo prévio das patologias, dividimos em etapas para facilitar o trabalho, com o processo de higienização, reparação e fixação das partes ausentes, e a fixação da pintura”, explica.
Foram retirados cobogós das laterais da cripta, que foram substituídos por grandes, além da higienização dos espaços. Uma das etapas envolveu a fixação das pinturas para a continuidade das intervenções.
“Foram pintadas por Gerson Faria, mas são obras que ele tirou das gravuras do artista francês (Francisque Joseph) Duret. Com base nisso, a gente fez o contraponto com as imagens que estavam nas paredes”, completa.
Ao descer as escadas de acesso à cripta, os visitantes poderão mergulhar nos retratos do sofrimento de Cristo nas obras da Santa Ceia, Jesus rezando no Horto das Oliveiras, o beijo da traição de Judas e a descida do corpo de Jesus após a crucificação.
O espaço fechado facilita a contemplação das pinturas e tem, no ponto central, algumas pedras que se unem aos desenhos de montes. Frases bíblicas e um céu estrelado ganharam atenção sensível dos restauradores durante o processo de acabamento.
Até chegar nessa fase final, contudo, alguns momentos exigiram mais cuidado e delicadeza, como pondera Antônio Vieira.
“A recomposição das duas cenas foi mais dificultosa, porque a gente tinha poucos fragmentos. Por exemplo, ao fazer o rosto tivemos um pouco mais de trabalho e delicadeza para fazer a recomposição”.
A cripta tem um valor religioso e, para a Igreja, trazer de volta esse trabalho para os fiéis é super importante por ter mais um espaço de fé. Para a comunidade do Ceará, tem uma importância no sentido de salvaguarda dessa memória, porque foi um pintor reconhecido na época, que era referência no período
Estudantes da Escola de Artes integram o trabalho guiado por Antônio, como é o caso do arquiteto Caio Silva Caetano, de 26 anos, que fez uma seleção para participar do processo de restauro.
“Eu sabia da existência da Igreja, mas nunca tinha pisado aqui e muito menos imaginar uma cripta abaixo com toda a riqueza artística que ela possui. Foi realmente uma descoberta e uma dessas experiências que vem para agregar valor”, resume.
Caio atuou em todas as fases do projeto, como a impermeabilização da pintura, e aprende ao lado do professor e colegas sobre as habilidades e a sensibilidade necessárias para atuar com patrimônio, como avalia.
“Ter a oportunidade de trabalhar nesse processo de restauro, que tem um significado para a cidade, é muito vantajoso uma vez que através da troca de conhecimento adquirimos uma bagagem para atuar nessa área”, frisa.
Fechamento da cripta
Os frequentadores mais antigos da Igreja da Nossa Senhora dos Remédio, na faixa dos 80 anos, são os poucos que conheceram o espaço. Agora, tanto os mais velhos quanto os mais jovens estão numa expectativa para entrar no local.
Mas por que houve o fechamento da cripta? O livro tombo da Igreja não especifica nenhum motivo específico, mas Silvio acredita que a mudança aconteceu após a publicação do Concílio Vaticano II, na década de 1960.
Naquela ocasião, uma reformulação da Igreja Católica começou a ser implementada. Por exemplo, até então as missas eram celebradas em latim e com o padre de costas para os religiosos.
"Um dos padres que aqui realizou a reformulação, iniciou esse processo de fechamento total da cripta. A princípio deixaram uma parte acessível e depois, realmente, fecharam de forma total e se transformou num simples depósito", detalha.
O pároco está no local há 3 anos, mas só agora conseguiu o apoio necessário para ativar a cripta novamente. A próxima Semana Santa, então, pode voltar a ser como nos velhos tempos em que o espaço recebia um grande número de religiosos.
"Muitos dos antigos ainda recordam que entravam na cripta e que era um local de muito fervor. Eu vejo que é um bem público, porque engloba a sociedade e eu creio que muitos tem interesse de conhecer”