Faz 20 anos que o Ceará tem uma Escola de Artes e Ofícios gratuita, e é sempre necessário conhecê-la
Do bordado à restauração de peças, espaço já capacitou mais de cinco mil pessoas e comemora inserção de estudantes em diferentes frentes de trabalho do Estado
Avenida Francisco Sá, 1801, Jacarecanga. Um imponente prédio em amarelo e branco cintila na paisagem. É deslumbrante, sim, mas longe de ser inacessível. Faz convite silencioso para que todos possam entrar. Tem 20 anos que a Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho age assim, e quer estender o legado. É sempre necessário conhecê-la.
O aniversário de duas décadas acontece neste mês de dezembro, quando o espaço oferta programação especial. Vamos juntos ocupar o equipamento? Chegamos pela manhã para conhecê-lo melhor. Logo na entrada, um arco com belíssimo detalhe arquitetônico anuncia que estamos em outra Fortaleza. Uma mais clássica, imperiosa e repleta de minúcias.
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O prédio que sedia a Escola de Artes e Ofícios pertenceu originalmente ao engenheiro, escritor e intelectual Thomaz Pompeu Sobrinho (1880-1967) e à família dele. Repare: logo após a recepção, no Salão principal, o mobiliário – com gramofone, castiçais e cadeiras antigas – remete a essa época outra. Tudo foi doado, sobretudo pelo Museu do Ceará, reconstituindo aquele período e vivências.
A pintura da sala é um presente visual à parte, uma vez que era a mesma presente no século passado. O casarão foi construído de 1924 a 1929, e é um exemplo do movimento Art Nouveau em Fortaleza. Os traços coloridos na parede surgiram após processo de raspagem por meio do curso de Prospecção e Mapas de Danos, realizado na própria Escola. Cada pedacinho do lugar, assim, tem mãos e traços de cada professor e estudante. Um aconchego.
Pés no piso à frente – assoalho e madeiras originais, além de charmosíssimos –, damos de cara com outros cômodos do sobrado. Ele todo precisou de adaptações para comportar seções como setor administrativo, coordenação pedagógica, auditório, sala multiuso, entre outros.
Nesse movimento, está acontecendo em vários espaços do casarão a I Mostra Fazendo Arte Aprendendo Ofícios, com peças de alunos advindas de formações ao longo do ano. O projeto fica em cartaz até 30 de dezembro.
No térreo, já é possível conferir uma exposição de bordados toda dedicada ao engenheiro, poeta e compositor Fausto Nilo. Alunas de diferentes turmas imprimiram em tecido o rosto dele, animal de estimação e obras. Um pequeno tratado sobre um de nossos maiores nomes. Imperdível.
Mas, afinal, por que a Escola existe?
A resposta é possível de obter indo lá e sentindo o ambiente. O objetivo da Escola de Artes e Ofícios é disseminar e manter vivos os ofícios tradicionais por meio de técnicas artesanais. Tudo feito a mão. De forma gratuita, o equipamento da Secretaria da Cultura do Estado, gerido pelo Instituto Dragão do Mar, já capacitou mais de cinco mil pessoas, e festeja a inserção de estudantes em diferentes frentes de trabalho.
Gabriela Souto, 23, é um exemplo. Os 40 minutos que separam a casa dela, no Papicu, da sede da Escola, não impediram-na de fazer dois cursos e participar de um projeto no equipamento. Ela e mais dois amigos restauraram uma das pinturas de Chico da Silva (1910-1985) – as obras estão presentes no auditório do sobrado, organizado para recebê-las – e também fazem parte da I Mostra Fazendo Arte Aprendendo Ofícios.
“Restaurar é um trabalho muito delicado. Você precisa prestar bastante atenção porque não quer alterar o que já foi feito. A gente procura o que está errado, faz uma catalogação e, a partir disso, entramos com um plano de ação”, explica, com propriedade. Graduada em Odontologia – embora, no momento, ainda não atuando no ramo, ela brinca: “Na Odontologia, tem o restauro dentário, mas estou atuando é no restauro de telas”.
“Acho que a escola é um local que possibilita soltar a criatividade. Aqui, a gente se sente em casa. Um espaço gratuito que oferece oportunidade para qualquer pessoa fazer um curso. Depois daqui, conseguem realizar também muitas outras coisas – criam a própria loja, o próprio museu… Você entra e é uma casa, e o mundo surge a partir daqui”.
Sintonizada a esse espírito, Gabriela seguiu conosco no passeio pelo prédio – com ela, também estava presente Lúcia Ferreira, professora de bordado. No subsolo, nos deparamos com mais obras feitas por alunos – dois painéis com cerâmicas coloridas – e outra exposição, esta de caráter permanente, sobre o bairro Jacarecanga.
É onde sabemos informações sobre o bonde homônimo ao bairro, o trem rumo à Estação João Felipe e sobre o próprio palacete Thomaz Pompeu Sobrinho. A capital cearense em nítida transformação, sob dados e fotografias. Ali, um pouco mais além, o ateliê de costura – com maquinário próprio e robusto – igualmente convida para mais perto. É preciso mergulhar.
Aprender é lei
Lúcia Ferreira – Lucinha, como é chamada – agora nos chama para o “quintal” da Escola. Recanto de delicadezas, lá se encontra um pé de siriguela e, em um primeiro momento, o ateliê de artesanato, com foco sobretudo em bordado. São cores, frases e intervenções capazes de nos transportar para saudades e realidades. A mostra em cartaz evoca esses componentes por meio de trabalhos sobre liberdade. Gracejos visuais poderosos.
Uma pequena área de convivência com árvore de frutos em bordado separa esse ateliê de um outro, dedicado à gravura. Com farto material, possui até uma prensa alemã, otimizando os saberes no ramo. Além disso, suportes específicos para trabalhos em xilogravura, litografia e metal conferem aos estudantes grandes aprofundamentos na área.
“Existe uma parte da minha vida antes e depois da escola, uma vez que ela me proporcionou várias coisas novas. Cada curso que a gente faz, abre um horizonte diferente”, situa João Marcs Nunes, 24, estudante de Arquitetura. Há quatro anos ele frequenta a casa – chegou a ser, inclusive, monitor do ateliê de gravura – e tem perspectiva apurada sobre o espaço.
“Estar aqui é uma experiência única. Embora poucas pessoas conheçam, toda vez que eu falo elas se interessam – principalmente quando sabem que é tudo gratuito. Sempre ressalto que ela existe para beneficiar todo mundo. Grandes nomes vieram da escola, primando por um ótimo trabalho”, comemora, convocando os conterrâneos a chegar junto.
No equipamento, há formações longas e breves, contemplando ofícios tradicionais (bordado, artesanato em couro, prataria, artesanato), gravura (xilogravura, litografia e metal) e patrimônio. Muitos bens importantes de Fortaleza foram restaurados com a participação de estudantes da Escola – do Theatro José de Alencar ao Cineteatro São Luiz, passando pela cripta da Igreja Nossa Senhora dos Remédios.
“Todos os cursos dão aula sobre o que é patrimônio, história da arte…É necessário não apenas ensinar a técnica, mas gestar nos alunos uma consciência patrimonial e crítica no segmento. A escola não tem uma formação acadêmica, mas os ofícios são passados por pessoas que têm ofícios. Por isso mesmo, alguns alunos viram monitores e professores”, ouço Lucinha comentar.
Ao término, visitamos a biblioteca do palacete, com títulos de ficção e, sobretudo, voltados para as áreas trabalhadas na casa. O espaço é aberto ao público, com possibilidade de acesso à internet e impressão gratuitos.
Lá fora, o suntuoso prédio ainda resplandece sob o sol. Se nunca pareceu distante, agora parece bem menos. Mas é preciso adentrá-lo para que não haja somente impressões: há que se conhecer as linhas e entrelinhas. Apropriar-se do que ele tem para dar – e é muito. A Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho é convite.
Serviço
Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho
Av. Francisco Sá, 1801 - Jacarecanga. Na última semana do ano, a escola vai funcionar nos dias 26, 27 e 28 de dezembro, de 14h às 16h30. Retorno às atividades, em 2 de janeiro de 2023. Contato: (85) 3238-1244, pelo e-mail contato@eao.org.br ou pelo site.