Pesquisadora diz que família e escola devem se unir além da cobrança: ‘acolher, observar e orientar'
Em entrevista ao Diário do Nordeste, Elvira Pimentel fala a respeito da relação entre as duas instituições e também sobre a amplitude de ações necessárias para garantir a proteção de crianças e adolescentes nas escolas
A garantia de segurança nas escolas, com foco na proteção das crianças e adolescentes, é a meta de diversas iniciativas, intensificadas nas últimas semanas. A construção dessa proteção, contudo, é complexa e precisa envolver diversas áreas - não apenas as instituições de ensino e as famílias ou só o fortalecimento de políticas de policiamento ostensivo.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, a pedagoga Elvira Pimentel fala do caminho que é preciso trilhar, desde o acolhimento e orientação de crianças e adolescentes - e como lidar com os medos e angústias sem excluí-los do processo - até iniciativas de promoção da cultura de paz e regulação das plataformas digitais.
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Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Educação Moral e do Instituto de Estudos Avançados, ambos também vinculados à Unicamp, Pimentel ressalta a complexidade do problema.
"Não tem uma solução fácil. É um problema complexo, multidimensional, que precisa ser olhado pelas várias áreas, pelos vários setores da sociedade e cada um vai fazendo a sua parte para que a gente possa superar", ressalta.
Confira a entrevista completa:
É um momento delicado para a comunidade escolar como um todo - professores, funcionários, estudantes e também para os pais e responsáveis. Tem existido um sentimento de medo que tem sido presente nesse momento. O que é importante fazer nesse momento? Como é que se lida com essa angústia?
É importante a gente pensar que o medo é um sentimento que faz parte da nossa organização enquanto pessoa, uma primeira coisa que a gente tem para isso. Tudo bem a gente sentir medo, tudo bem as crianças sentirem medo, tudo bem os jovens sentirem medo. O que a gente pode ajudar, aos adultos e às crianças, a tentarem lidar com esse medo é o que essas pessoas vão fazer com esse medo que elas estão sentindo. A gente vai aprendendo a lidar com ele. Então, as famílias podem ajudar as crianças a expressarem isso.
Dar espaço para que as crianças e jovens expressem que estão com medo, porque a família precisa ser também esse espaço em que eu me sinto seguro para dizer que eu tenho medo de alguma coisa.
Não há ‘não posso sentir medo, não posso’. A gente pode sentir. E os próprios adultos também podem dizer ‘eu também (estou sentindo medo)’ (ou) ‘às vezes também me sinto assim, mas a gente está pensando todo mundo junto em como é que vai resolver, tá todo mundo preocupado com isso’. E ir contando um pouco para as crianças o que está sendo feito, no sentido de trazer segurança para ela, de dizer ‘olha, já está sendo feito, tem um monte de gente pensando sobre isso’.
E a gente sempre fala que se responde às crianças na medida do que é perguntado. Então, por exemplo, não precisa ficar passando detalhes do que tem acontecido, repassando… Tem que filtrar, a partir da idade das crianças. Então, à medida do que as crianças vão perguntando, você vai trazendo as respostas. Sempre, mostrando também o que está acontecendo para que ela se sinta segura nesse espaço.
(Dizendo) ‘Ó, você chega (na escola) e professora te recebe. Não é assim? E aí, tal hora eu vou te buscar, então’. Trazer essa sensação de que a escola também é esse espaço que tem outras sensações que não só a do medo. Uma coisa que é importante, a gente enquanto adulto também perceber, se, naquele momento, você está em condição de acolher aquela criança ou você está muito nervosa, porque você também ficou muito assustada. Ter o cuidado de não conversar na hora que você está muito nervosa, muito assustada, porque você vai passar tudo isso para a criança. Então, se acalma um pouco, respira, bebe uma água, para poder conversar depois com a criança ou com o adolescente.
E como conversar com o adolescente?
Com os adolescentes a gente já amplia um pouco mais. É possível conversar mais, explicar mais a situação, orientar melhor no sentido.. Como que faz se receber alguma coisa, porque muitas vezes os adolescentes recebem também essas ameaças, recebem tudo isso. Então, (orientar sobre) o que é que faz quando recebe. Já tem os canais de orientação que podem ser denunciados. Então, se consegue ter uma conversa - também acolhendo. Como é que está se sentindo? O que está pensando?
Isso é uma parte. A outra parte é justamente pensar sobre essa divulgação dos materiais que vai recebendo. A gente tem falado amplamente que essa divulgação em massa não resolve o problema, porque se uma pessoa passa para outra, que passa para outra, que passa para outra… No fundo, as pessoas vão se assustando, se assustando, se assustando e, às vezes, não se denuncia onde precisa ser denunciado. Então, não curte, não comenta. Mesmo que seja um comentário reprovando, não faz, porque isso aumenta algoritmo.
(Se) É uma postagem que está numa plataforma, não curte, não comenta. Às vezes, os perfis são pequenos, mas o tanto de gente que reposta, que curte, que comenta faz aquela notícia se ampliar muito. Então, denuncia na plataforma, denuncia no site do governo, no Escola Segura, se for necessário. Faz também a denúncia no 181 da Polícia Civil (do Ceará), faz a denúncia da ameaça nesses espaços. No Ceará, a gente tem um canal específico, o 3101-0181, que é daí do Ceará, é o WhatsApp.
Faz as denúncias e não repassa. Às vezes as pessoas acham que fazendo o download… ‘Ah, vou burlar o algoritmo fazendo o download’. Mas faz o download, quando esse download é feito, perde-se a fonte de onde saiu a notícia, a ameaça. Então, assim, não repassa. O que dá para fazer agora é fazer as denúncias nesses canais que estão buscando analisar todas essas denúncias que estão sendo feitas. E se fizer uma menção direta a uma instituição, falando especificamente de um lugar, conversa com a gestão da escola, que a gestão da escola também está sendo orientada de quais são os órgãos que ela precisa procurar.
Então é isso, é não repostar, porque essa sensação de medo… A gente fica se perguntando: a quem serve uma sociedade com medo? A quem serve uma sociedade que está amedrontada, que está apavorada. Faz parte também desse processo esse terror, esse medo. A gente não quer colaborar para isso, precisa cuidar de como a gente lida com o que chega até a gente e o que a gente repassa para as crianças também ou para os jovens.
Você falou sobre a importância não só do acolhimento, que é importante, mas também da orientação. Nesse sentido, de que forma é possível e, mesmo importante, a integração da comunidade escolar? Porque, às vezes, as famílias enxergam a escola como algo apartado do contexto familiar. Como é que pode ser feita essa união para agir de forma conjunta, complementar?
Toda vez que a gente fala de relação de família e escola, é um processo que deve acontecer em parceria. Então, se a família está percebendo alguma coisa ou está percebendo inclusive algum tipo de sofrimento na criança, ela precisa comunicar a escola para que a escola esteja ciente e também possa fazer os processos de roda de acolhimento lá, possa também abrir espaço para que as crianças falem dos sentimentos ou, se for uma situação específica que a família (percebe que) teve alguma coisa que precisa de uma atenção individualizada, a escola também precisa ficar sabendo.
Então, é sempre nesse sentido, de uma atuação em parceria. Não uma atuação só no sentido de ‘eu cobro que você faça’, das duas partes, (...) ir lá só pra cobrar que você faça a sua parte. (Mas sim) O que a gente pode pensar junto para poder ir complementando esse debate e ampliando. Sabendo que só família e só escola… A gente não pode colocar nas costas só dessas 2 instituições um problema da dimensão do que está acontecendo.
É importante saber que existem outros órgãos que estão, e que devem estar, diretamente envolvidos no enfrentamento dessa situação, mas que a família tem o seu papel de acolher, de não disseminar, de observar, de orientar. A escola também consegue ter esse papel de acolhimento, de observação, de promoção de uma convivência ética, de um clima escolar mais positivo. Essas são as ações que dá para fazer ali nessa dimensão, mas existem outras ações que precisam ser feitas por outros órgãos também para lidar com esse problema de forma ampla.
E nessa relação família-escola, é importante que não haja uma ponte no sentido de que a criança fique excluída do processo ou o adolescente fique excluído do processo.
A gente tem recebido algumas notícias de que, às vezes, as famílias estão cientes do que a escola comunica ou a escola está ciente do que a família está fazendo, mas a criança não está sabendo de que está sendo feito um cuidado, de que está se olhando para isso. Então, a criança fica excluída do processo. Claro que, na medida da proporção da idade de cada criança, mas é importante que, se a criança tem demonstrando uma insegurança, ela está com medo, a família vai lá, conversa com a escola e a escola diz o que está fazendo, que a criança saiba o que está acontecendo. (...)
Não deixar a criança excluída do processo, da relação entre família e escola, mas respeitando, claro, a idade de cada um, do que vai passar para cada criança.
Existe uma demanda por maior policiamento e um aumento das barreiras físicas como forma de proteção. Isso é suficiente? Quais são as outras políticas que precisam ser implementadas para prevenir esses ataques para além apenas na política de segurança, de policiamento ostensivo?
Esse policiamento ostensivo tem se apresentado como uma medida de contenção para esse momento agora, do que tem acontecido e, muitas vezes, são as alternativas que muitos lugares têm encontrado. Mas, por exemplo, em ataques que ocorreram em outros países, (como) nos Estados Unidos, os estudos que se têm a partir disso (mostram que) foi feito um grande investimento na parte de segurança e os ataques continuam acontecendo.
O policiamento que a gente vem falando… A importância da segurança pública atuar sim, a gente não vai dizer que não é importante atuar, mas assim sempre externo a escola, no espaço de uma proteção, no sentido do que tem feito a inteligência, que tem sido já utilizada para poder estar verificando as postagens, as ameaças e também está identificando nos grupos, nos ‘chans’ que tem de conversa, esses grupos que têm feito isso.
Porque esses ataques, pelo menos os que a gente tem estudado - que não engloba todos o que já aconteceram - mas que são principalmente realizados por alunos, ex-alunos. Eles têm algumas características que são comuns. Existe um aliamento desses estudantes a pensamentos neonazistas, pensamentos machistas, pensamentos racistas e eles são cooptados por grupos que reforçam isso e são grupos que estão ali que estavam antes na internet profunda e agora estão atuando na superfície da internet.
Então, a regulação do que se veicula de discurso de ódio, por exemplo, na internet, já está sendo abordado, já está sendo buscado. A gente viu que já tem algumas medidas, têm um decreto, inclusive, que saiu essa semana, porque no Twitter, no Instagram, havia vídeos e comentários que eram combinando como é que ia acontecer sem nenhum tipo de regulação.
Então, essa área da regulação dessas plataformas, desses espaços, retirando, principalmente, (publicações) que demonstram ameaças explícitas…. (É necessário) Uma reflexão sobre a regulação também de discursos de ódio. A gente não faz isso presencialmente, a gente não não veicula discursos racistas, machistas no dia a dia, porque na internet a gente pode fazer? Uma discussão sobre não incitação da violência como forma de resolver conflito, o cuidado com a veiculação das notícias na mídia, que é uma coisa que já está mudando também. (...) Porque uma das coisas que esses adolescentes querem é visibilidade, é serem reconhecidos e a mídia acabava colaborando para isso. Já teve uma ampla discussão, não há mais uma divulgação de dados que denotem essa visibilidade e essa notoriedade.
Maior controle de armas de fogo, de munição, mais transparência sobre essas vendas, porque essa circulação também complica, porque os ataques com armas de fogo são os mais letais. E nesse chats, nesses grupos, eles têm uma disputa de qual ataque que vai conseguir mais.
Além disso, política de redução da desigualdade, porque a gente sabe que, com a pandemia, isso tudo ficou muito mais evidente. As pessoas perderam estabilidade financeira ou, mesmo que não tivessem, pioraram situações financeiras. Ampliação de sistema de proteção social - Cras (Centro de Referência de Assistência Social), Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). Possibilidade de ampliação de psicólogo para atendimento nesses espaços, fortalecimento de apoio a serviços de saúde mental.
E oferecimento de programas, oficinas esportivas, que também criem outros espaços de socialização para que esses jovens não sejam cooptados só por esses grupos que estão aliados a esse pensamento, eles tenham outros espaços que eles se sintam pertencentes. E, claro, dentro disso, o enfrentamento do racismo, do machismo que está posto na sociedade e a atuação que também pode acontecer na escola. Então, veja, tem tudo isso e também o que a gente pode fazer dentro da escola.
Sobre a questão da saúde mental, existe inclusive uma lei federal que determina que tem que haver psicólogo e assistente social nas instituições de ensino. De que forma esse acompanhamento psicossocial é importante para essas crianças, para esses adolescentes?
A importância é no sentido de ter um apoio profissional. A assistência social, o psicólogo, fazem parte de uma rede que a gente chama de rede de proteção da criança e do adolescente, que é uma garantia do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que o adolescente e a criança tenha. A escola é um desses órgãos (de proteção), mas esses outros órgãos que eu citei e também profissionais, como psicólogo e assistentes sociais, fazem parte dessa rede de proteção.
Então, ter um psicólogo na escola é importante, mas normalmente o psicólogo escolar não atua no atendimento clínico. Ele faz um trabalho diferente dentro da instituição escolar e, por isso, a necessidade de um fortalecimento desses órgãos e do psicólogo no sentido da possibilidade de serem atendidas as crianças também clinicamente, ou seja, fora da escola.
Porque as crianças que estão vivenciando situações, muitas vezes, de medo, uma situação persistente ou vivenciam algumas situações de bullying, de preconceito que estão ali mexendo muito com como ela está se sentindo ou são famílias que percebem que os filhos estão tendo comportamentos que merecem atenção, é importante o acompanhamento também desses profissionais.
Mas sem sobrecarregar e dizer que são eles que vão resolver esse problema. É sempre esse cuidado. Não é só a família, não é só o psicólogo, não é só a escola. É um conjunto de ações que precisam ser tomadas de forma, de fato, coletiva e ampla.
Ter para onde a escola ou a família fazer a denúncia. Ou a família vem e traz uma demanda, a escola faz um encaminhamento e esse aluno nunca é atendido, isso é muito complicado. Então, a ampliação de assistentes sociais e psicólogos de forma, principalmente gratuita, disponíveis pelo governo, é muito importante - porque é um serviço que nem sempre é possível de ser acessado por todo mundo - para fazer esse acompanhamento e para trabalhar junto com a escola nesses, nessa rede de proteção dessas crianças e adolescentes.
Existe uma camada do problema que envolve as redes sociais. Propostas de legislação para regulação das plataformas que tratam desse problema de forma mais ampla, mas tem também a atuação individual de pais, por exemplo, quanto ao tempo dessas crianças e adolescentes em frente às telas. Como é possível lidar com isso de forma individual para prevenir essas ações?
A questão do tempo em frente às telas é até mais ampla do que situações como essa. Com a pandemia, a gente sabe que houve uma ampliação de muitas pessoas que têm possibilidade de acesso a telas, mas houve uma ampliação do tempo de uso de telas. E já existe uma orientação, que é mundial, sobre quão judicial esse tempo de tela é para o desenvolvimento da criança, para desenvolvimento do adolescente.
Para além do que ele está fazendo quando está na tela, o tempo (gasto nessa atividade), de fato, é uma coisa que precisa ser considerada e deve ser olhada por famílias, porque já existem orientações e já existem estudos que mostram que esse tempo exacerbado pode trazer alguns prejuízos para o desenvolvimento.
Trazendo o foco para como essa criança está usando ou esse adolescente está usando esse esse computador. Se tem a ver com isso tudo, se não tem, se a gente proíbe jogos, se não proíbe. O que a gente tem visto nas pesquisas é que não é o fato do jogo ser violento necessariamente que vai determinar que aquela criança vai ter comportamentos (violentos).
Muitas vezes, a cooptação que acontece é feita no chats. E esses chats podem ser em jogos que são violentos, mas também pode ser em outros jogos. É preciso um cuidado no sentido de um ambiente familiar que também não incentive o uso de violência para poder resolver as coisas, que não incentive falas que demonstram discursos de ódio, de machismo, de racismo, que não reforcem tudo isso. Porque esse reforço, muitas vezes, só é ainda mais reforçado se esse adolescente, por exemplo, encontra outras pessoas que estão ali dizendo que é isso mesmo, tem que ser assim mesmo. Então, precisa de um ambiente familiar que não reforce.
Além disso, é preciso um olhar atento. É um jovem que tem apoio a esses discursos, é um jovem que está demonstrando muito isolamento, afastamento social? Viveu alguma situação de bullying? Demonstra algum sofrimento emocional?Demonstra irritabilidade excessivamente, às vezes tem pensamentos ou expressa mesmo a intenção de ferir outras pessoas, de machucar? Demonstra interesse por armas e ataques, às vezes não tão explícito, mas está ali… Eu estou trazendo alguns pontos, que não devem ser olhados de forma isolada, mas assim são pontos para se olhar, se ter atenção. Está acontecendo?
Conversa com a escola porque é importante que esse jovem se sinta pertencente a alguns grupos, que ele se sinta pertencente e se sinta acolhido em outros espaços também, fora o acompanhamento que vai precisar de outros profissionais, como a gente já falou.
É importante a família observar, mas não acho que é limitando o jogo que vai resolver o problema, porque no fundo é muito mais do que isso. Porque pode ser que no jogo ele não esteja, mas ele entra em outros lugares, ele vai ter outros acessos. A gente sempre fala que cortar completamente, se a raiz do problema não é essa, não resolve.
É um problema que não tem uma solução fácil, né?
Não tem, não tem uma solução fácil. É um problema complexo, multidimensional, que precisa ser olhado pelas várias áreas, pelos vários setores da sociedade e cada um vai fazendo a sua parte para que a gente possa superar. E possa superar a raiz do problema e não só mascarar.
A gente precisa de ações a curto prazo, claro, pelo que está acontecendo, mas temos que ter cuidado para que essas ações não mascarem, porque a raiz do problema não está na superfície. Ela precisa de um entendimento profundo. Do que a escola pode fazer, do que a família pode fazer, do que a sociedade como um todo precisa cuidar.
A gente precisa de uma sociedade que veicule menos o ódio, que busque resolver as coisas pelo diálogo e não pela violência, que não traga ações racistas, machistas. Que, na verdade, seja antirracista, seja anti machista, anti todos esses preconceitos que a gente sabe que existem. Então, precisa ter esse cuidado amplo e esse olhar amplo para a gente não achar que é uma ou outra ação que vai resolver imediatamente o problema.
Esses atentados a escolas, que há algum tempo são comum nos EUA, pareciam uma realidade remota aqui há alguns anos. O que desse crescimento que estamos vendo agora é causado por especificidades do Brasil, do momento que estamos vivendo, e o que podemos entender como um fenômeno que passa por muitos países?
De fato, tivemos um aumento muito grande do segundo semestre do ano passado para cá. (...) Desde que aconteceu o primeiro caso em 2002, quase que metade ou mais (dos atentados registrados) aconteceu da metade do ano passado pra cá. A gente tem um fenômeno que é amplo. No Brasil, de forma mais específica, a gente teve um aumento das desigualdades, mas a gente viveu uma pandemia que foi global. E que essa pandemia que foi global gerou questões de saúde mental, gerou o olhar para o quanto que nós somos desiguais, mostrou o quanto que nós somos desiguais e acentuou ainda mais essas desigualdades.
Houve perda de emprego, houve uma instabilidade muito grande, que sim, tem um nível nacional. Mas a gente tem, principalmente nesses países que você citou - os Estados Unidos, aqui também -, nos últimos anos, uma cultura, muitas vezes, de fomento à violência e uma banalização dessa violência para resolução das coisas.
Uma ampliação de grupos que valorizam esses preconceitos e que legitimam essas falas, que fortalecem. Esse conjunto de coisas... A pandemia, a ampliação das desigualdades, maior circulação de armas, essa banalização da violência. A gente tem o terrorismo estocástico, que que essa manipulação da comunicação para gerar terror. Tudo isso vai se juntando e, se você observar, isso teve muito nos países (como) Estados Unidos e aqui no Brasil nesses últimos anos. E isso vai fomentando também tudo isso que está acontecendo. Então, não é uma coisa de agora. Teve um aumento agora, mas isso é construído, isso tem sido construído.
A gente teve uma ampliação dos discursos de ódio, a gente teve uma ampliação dessa sensação de terror e de medo, de não aceitação da opinião do outro, quando é uma opinião que não está ferindo ninguém, mas só porque o outro, às vezes, está trazendo uma percepção diferente - e eu não estou falando de discurso de ódio, nem estou falando de preconceito, de racismo, de machismo -, mas quando você lida com o outro e percebe que o outro tem uma opinião diferente, daí você quer usar da violência para resolver aquilo. Tudo isso junto e, claro, com todos os problemas que a gente já conversou, vai juntando e vai trazendo essas consequências do que tem sido apontado.
Muito tem se falado da “Cultura de Paz”, que é necessário implementar ações nesse sentido nas escolas. De que forma isso pode estar presente como ações práticas para atrair essas crianças e adolescentes, inclusive não só nas escolas?
Na nossa LDB, que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, já tem um artigo que indica a necessidade do trabalho para a promoção de uma cultura de paz na escola. É um artigo que foi mudado há pouco tempo, mas já existe essa intencionalidade, inclusive legal desse trabalho. (...) Mas para além do que é lei, a gente precisa, enquanto sociedade entender… A cultura de paz está permeando essa construção e, como você falou, não é só a escola. É uma cultura que vai se construindo. A cultura de paz, não pode ser só na escola, ela deve ser também (na escola).
É uma cultura que é oposta a essa cultura da violência, da resolução das coisas por meio da violência. E essa violência não é só violência que às vezes está explícita, que está ali, a violência física. Às vezes é uma violência que é psicológica, às vezes é uma violência que é patrimonial, às vezes é uma violência que é estrutural. É esse conjunto de ações que a gente precisa combater.
E dentro da escola… A escola é um espaço de convivência, é o espaço que as pessoas convivem. O que a gente lembra, muitas vezes, quando a gente sai da escola é dos amigos, das coisas que a gente conviveu, das coisas que a gente viveu ali com outras pessoas. E ela pode ser um espaço de uma convivência ética, democrática, em que as pessoas podem pensar juntas sobre os problemas que elas têm.
Se eu tenho um problema com uma outra pessoa dentro da escola, por que que a gente não pode pensar junto em qual a melhor forma da gente lidar com isso que a gente está vivendo? Ou se a gente tem um problema na nossa turma, um problema coletivo, está todo mundo chateado porque alguma coisa está sendo injusta, que a gente tem espaço sistematizado na escola, (como) rodas de conversas… A gente pode pensar em assembleias escolares para que se pense sobre essa convivência, pense em como lidar com os problemas que são coletivos. Espaços de mediação de conflitos também, para pensar em conflitos que são mais individuais. Uma implementação, no tempo da rotina, para falar sobre questões da convivência, para falar sobre temas que tem a ver com essa construção dessa convivência que é democrática, que é ética, que tem a ver com essa construção dessa cultura de paz.
São várias ações que podem ser feitas. E esse tempo precisa ser pensado, precisa ser planejado, assim como a gente planeja outras áreas da escola. Planejar, pensar intencionalmente a convivência na escola. O que a gente faz preventivamente, como que a gente trabalha o tema dos discursos de ódio no currículo, como que a gente trabalha outros temas, sobre o racismo, o bullying, os conflitos - sobretudo o que a gente vive na nossa convivência -, sobre temas mundiais que estão acontecendo, coisas que são mais amplas também no nosso currículo. E como que a gente lida quando essas coisas acontecem na escola, como que a gente lida com isso, como que a gente decide as coisas na escola democraticamente, com a participação de todos.
São muitas coisas que dá para se fazer. Tem as equipes de ajuda que a gente trabalha, que são grupos de adolescentes que ajudam outros adolescentes a se sentirem mais acolhidos, pertencentes e buscam enfrentar o bullying. Tem muita coisa que dá pra fazer dentro da escola pensando na promoção dessa convivência ética e também no enfrentamento de situações de violência.
(...) As pessoas precisam entender que é um problema que é grande, é complexo. Todas as áreas têm o seu pedacinho pra fazer. E a gente precisa… Não tentar culpabilizar ou tentar resolver as coisas de forma imediata apenas. Ou jogar tudo nas costas de um dos setores. Não é assim que a gente vai resolver. E a gente pode se ajudar.
Nesse momento, a gente ainda precisa conter essa sensação grande do pânico, do medo. Então, sempre orientação, sempre verificação de informação. Se está recebendo uma notícia, por exemplo, de um ataque que está acontecendo, é preciso verificar se as coisas que a gente recebe, é verdade. E, muitas vezes, as ameaças a gente não vai conseguir verificar se é verdade ou não. Então, faz a denúncia e não compartilha.