O que a prevalência de endereços em logradouros com nome de santos e coronéis mostra sobre o Ceará

Tradições religiosa e militar do estado ajudam a entender essa tendência na denominação de espaços públicos

Escrito por Marcos Moreira , marcos.moreira@svm.com.br
‘Coronel’ se destaca entre as principais denominações de logradouros no Ceará
Legenda: ‘Coronel’ se destaca entre as principais denominações de logradouros no Ceará
Foto: Kid Jr

Entre as denominações mais populares de vias, o Ceará tem 174.248 endereços em logradouros com ‘São’, ‘Santa’ ou ‘Santo’ no nome. O grande destaque fica por conta do primeiro tipo, com 112 mil, segundo dados do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), relativo ao Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados neste mês.

A tradição religiosa do Estado é um dos fatores que explica a prevalência dessas nomeações. Como aponta o pós-doutor em Geografia Humana e professor emérito do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), José Borzacchiello da Silva, esse legado é marcado pelo catolicismo popular que, por sua vez, é caracterizado por ser ‘santocêntrico’, no qual figuras canonizadas são tidas como elementos fundamentais. 

“Nós vivemos em um estado extremamente religioso. É muito comum o culto, essa devoção, esse catolicismo popular. Ele tem origem sertaneja, com essa manifestação da fé ligada à ruralidade, e na cidade se manifesta também”, comenta Borzacchiello.

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“Por exemplo, São José, Santo Antônio, Padre Cícero, São Pedro, São João, etc., há uma prevalência muito forte. O que a gente percebe, até no nosso dia a dia de campo, chega a ser uma herança cultural, uma herança religiosa do catolicismo. Então, às vezes a gente está nas áreas mais rurais, pequenos vilarejos, desde lá já se começa essa tendência, tudo ali ao redor da igreja principal. E aí com a falta de uma padronização técnica de uma nomenclatura, a própria população já começa a denominar usando a sua cultura mesmo”
Rodolfo Freitas
Chefe do CNEFE Ceará

PADROEIRO 

Entre os nomes de santos,‘São José’ lidera a lista com 16.669 endereços. O índice do Estado ajuda o Nordeste a ser a única região do país onde há mais edificações em vias do padroeiro do Ceará do que de ‘Santo Antônio’

Para Borzacchiello, o fato de ser o patrono do estado é determinante, mas há outro elemento significativo: a relação de São José com a chuva e a seca. Isso faz que ele se “instaure” na região, mesmo sem ser um santo “junino”, como Santo Antônio (13/6), São João (24/6) e São Pedro (29/6). 

174.248 endereços cearenses estão em logradouros com ‘São’, ‘Santa’ ou ‘Santo’ no nome
Legenda: 174.248 endereços cearenses estão em logradouros com ‘São’, ‘Santa’ ou ‘Santo’ no nome
Foto: Reprodução/Google Maps

“Cientificamente, as chuvas são explicadas pela posição da terra, mas no catolicismo popular é atribuída à proximidade com o dia 19 de Março [Dia de São José]. Além de ser padroeiro, tem esse caráter também da relação dele com a chuva. Isso dá uma legitimidade sertaneja, que chegou à metrópole também”, salienta o pesquisador. 

CORONEL 

Logo após os nomes com ‘São’, a denominação ‘Coronel’ se destaca. O Ceará tem 61.960 endereços em logradouros com esse nome, conforme o CNEFE. O índice faz do Estado o 1º do Nordeste e o 4º do Brasil no ranking de edificações em vias intituladas dessa forma.

“A gente encontra bastante essa questão de patentes, como almirantes, coronéis, juntamente com essa questão religiosa. Sem entrar no mérito da história, eu entendo que remete a essa situação que a gente viveu ao longo da história, de religião e a própria situação de colônia do Brasil e do Nordeste, onde acabam prevalecendo essas culturas também. De tipo, 'na minha região tinha um coronel bem conhecido'", relata Rodolfo Freitas.

As relações históricas de poder e de propriedade da terra ajudam a explicar essa predominância, avalia Borzacchiello. “Até hoje permanece a concentração de terra, como a terra é poder. E o poder se manifestava como o proprietário da terra pegava uma denominação militar, o coronel enquanto patente militar e o que é o dono da terra, que vai ter o controle dos votos. O coronelismo é muito forte e se for procurar, nem todos são coronéis. São coronéis nessa perspectiva de uma relação de poder e de controle do território”, desenvolve.

Além disso, complementa o professor emérito da UFC, a carreira militar é forte no estado, o que se manifesta por meio da quantidade de militares que se tornaram políticos e no próprio aspecto da formação, tendo como um dos exemplos a predominância dos cearenses entre as vagas do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). “O Ceará tem uma tradição de militares. A carreira militar surgiu aqui como a possibilidade de empregar pessoas com cargo importante.”

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