‘Muito frio e noite em claro’: chuva invade barracos e assola pessoas em situação de rua em Fortaleza
Período é considerado como “o mais cruel” para quem vive sem teto na cidade

De um lado da avenida, num dia frio, as varandas dos prédios do bairro Papicu são, como na canção de Djavan, “um bom lugar pra ler um livro”. Do outro, porém, nos barracos construídos com papelão e madeira na calçada, a letra se completa: o dia é triste, “toda fragilidade incide”.
As fortes chuvas que banham Fortaleza neste período do ano agem como correntezas, arrastando as “casas”, o sono e a saúde das pessoas em situação de rua na cidade. Expostas, elas sucumbem à falta de roupas e camas secas, de alimentação adequada e até de proteção contra as rajadas de vento.
“O frio pega muito”, relata Aline Costa, que já viveu metade dos 43 anos de vida tendo o céu como teto – mas não tem no corpo qualquer memória que a acostume às noites de vendaval e temporal gelados.
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Há 4 anos, Aline se aninhou entre outras dezenas de pessoas que vivem na esquina entre as avenidas Almirante Henrique Saboia (Via Expressa) e Professor Sila Ribeiro, no Papicu, “comunidade” que cresceu visivelmente após a pandemia de Covid.
“Tá sufoco aqui, a água quando vem é com força. Entra no barraco de tudim, por cima e por baixo. Aí é noite em claro. Começo a trepar tudo e penso logo: ‘vamos perder tudo. O que já é pouco, vamos perder o resto’”, resume a mulher, que divide o espaço com o companheiro e três cachorros.

Diante das muitas ausências que cercam quem vive na rua, “a pior parte” vem com a chuva. “Nessas últimas agora, grossas, perdemos um bocado de coisa. O teto é de madeira, então incha e cai. Fica tudo molhado, a gente sente muito frio. Quem salva é quem doa lençol”, descreve Aline.
Há quase duas décadas, foi o vício em crack que a tirou da casa dos pais, como relata com olhos que suplicam por poder voltar no tempo, enquanto miram ainda um futuro. “Tenho o sonho de sair da rua. Não vou morrer aqui não.”
Na porta ao lado, Daniele Patrícia, 27, que lidera a comunidade formada ali, descansa ao lado de Kelvin, vira-lata preto que já cria há quatro anos “como um filho”. Por lá, ela contabiliza que já são mais de 20 barracos, a maioria ocupada por mulheres. Sem crianças.
“Não tem, criança não fica. Aqui é ruim pra quem ainda não sabe viver na vida.”

Órfã, a única herança que recebeu do pai é justamente o que a tem salvado das chuvas. “O meu barraco quem fez foi eu e Deus. Só consigo dormir porque sei quem me botou no mundo. Aprendi muita coisa com o meu pai, que era pedreiro. Aprendi com ele”, explica.
Nas goteiras, dá-se um jeito. No frio também. O que pega mesmo é a fome. “Até agora não alagou, mas eu me preocupo muito, não vou mentir. Mas a maior dificuldade mesmo é quando não tem nada pra comer”, silencia, com o pensamento cortado pelo barulho dos carros e das tosses nos barracos vizinhos.
“Barras cruéis”
As síndromes gripais que tomam as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de Fortaleza no período chuvoso também circulam soltas pelas ruas, do Papicu ao Centro.
Dos três filhos de Josivan Rodrigues, 29, dois adoeceram desde fevereiro. O jovem e as crianças – de 4, 6 e 9 anos de idade – vivem na rua há 4 meses, em um barraco erguido em uma praça do Centro. Durante o dia, comem no Centro Pop. À noite, se alimentam se chegar doação. Com chuva, dificilmente chega. “Tamo sofrendo umas barras crueis”, define.
“Esse inverno tá difícil pra quem mora na rua. As condições de comida, alimento mofa, os médicos não tão vindo… A gente adoece mesmo, né? Minha menina tá tossindo e o outro tá com um bicho de pé. Tá difícil”, lamenta.
Segundo Josivan, as equipes do Consultório na Rua, projeto da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) que leva atendimento itinerante a essa população, já estão há mais de uma semana sem aparecer – o que a SMS nega.
Em nota, a Pasta informa que a iniciativa realizou 26.561 atendimentos em janeiro e fevereiro, em todos os territórios da cidade, incluindo “consultas médicas, de enfermagem, psicológicas e de assistência social”, além de vacinação, exames e testes rápidos para Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs)
Do total de atendimentos, segundo a SMS, 1.912 foram realizados na região do Centro da cidade, onde Josivan e os filhos estão.

O barraco da família é cercado por lonas e coberto por telhas de acrílico, e teve a estrutura “reforçada” para suportar as precipitações intensas. Não funcionou. “Aqui alaga tudo. Só não perdi os documentos porque estão na sacola, mas perdemos roupas, os alimentos mofaram… Tá difícil até pra lavar roupa”, diz.
Para ele, até dormir se tornou privilégio desde que as chuvas começaram. “Não consigo, passo a noite em claro olhando eles. Tô tentando arranjar um abrigo pra gente. Meu sonho mesmo é trabalhar, ter minha casa de volta e meus filhos no colégio. O futuro hoje pra essas crianças aqui é o colégio, não é a rua”, reconhece Josivan.
É a escola municipal, aliás, que tem ajudado o pai solo a “fechar” o diagnóstico de autismo do filho. “O colégio vai compartilhando as coisas que ele vai vivendo com os coleguinhas e a professora. Falta só um papel e vou dar entrada no benefício pra eles.”
O que diz a Prefeitura
Uma das principais queixas que se inflamam entre as pessoas em situação de rua diante dos transtornos do período chuvoso é a dificuldade de acesso ao Programa de Locação Social, popularmente chamado de “aluguel social”, e de cadastro no Minha Casa Minha Vida (MCMV).
Aline, que vive no Papicu, afirma que a própria comunidade já “fez um acordo” com a prefeitura: ninguém sai de lá enquanto todos não saíram. Segundo ela, alguns chegaram a conseguir acesso ao aluguel, mas “respeitaram” o trato.

Em nota, a Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) informa que são concedidas, hoje, 300 vagas de aluguel social para a população em situação de rua, com auxílio mensal de R$ 420 para moradia, válido por até dois anos.
Em relação à alimentação, “são destinados 1.200 almoços diários, sendo 600 quentinhas distribuídas nos bairros com maior concentração, como Parangaba e Centro”. Já no Refeitório Social, são distribuídas “600 refeições no almoço e 700 porções de sopa no período da tarde”.
A SDHDS complementa que “também são servidos café da manhã, almoço e lanche para pessoas em situação de rua atendidas nos equipamentos municipais especializados para este público, como Centros Pop, Centro de Convivência e Casa de Passagem”.
famílias em situação de rua em Fortaleza estão inseridas no Cadastro Único (CadÚnico). É o 4º maior número do Brasil. Até novembro de 2024, eram cerca de 7,6 mil famílias.
Outros equipamentos, como as duas Pousadas Sociais de Fortaleza, também integram a rede de apoio à população de rua. Nelas, 240 adultos têm acesso a pernoite, alimentação e higiene pessoal, entre 20h e 7h. “Demanda livre, por ordem de chegada”, explica a Pasta.
“Existem, ainda, três casas de acolhimento temporário, que ofertam, ao todo, 150 vagas: Casa de Passagem (50 pessoas); Acolhimento Institucional para Homens (50 vagas) e Acolhimento Institucional para Mulheres e Famílias (50 vagas)”, resume a SDHDS.
Por fim, a Pasta informa que a gestão municipal está elaborando um “Programa Integrado para Superação da Situação de Rua, com ações intersetoriais a serem implementadas durante a atual gestão”.

Já a Secretaria do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor) afirma, até 2026, devem ser entregues 11 conjuntos habitacionais, somando 2.300 moradias populares do programa MCMV. Seis estão com “obras em andamento” e cinco estão “em fase de contratação”.
“O cadastro para participar do programa é realizado nas Secretarias Regionais da Prefeitura de Fortaleza. A Habitafor planeja a criação de um comitê intersetorial para a seleção das famílias que serão contempladas com a moradia popular”, completa a Pasta.