Construtoras pagam à Prefeitura para erguer prédios acima do limite estipulado em Fortaleza
A legislação permite exceções e, na Capital, a gestão municipal arrecadou R$ 89,3 milhões com essa flexibilização
O limite de altura das edificações em bairros como Meireles e Aldeota, em Fortaleza, é 72 metros, mas nessas áreas há prédios maiores, alguns com mais de 100 metros. É possível extrapolar esse limite de forma regular? Na Capital, assim como em outras cidades brasileiras, a resposta é sim, pois há mecanismos em leis municipais que permitem. Mas, os construtores precisam pagar uma contrapartida em dinheiro à Prefeitura.
Processos disponibilizados pela Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), consultados pelo Diário do Nordeste, evidenciam que empresas pediram à Prefeitura autorização para alterar a altura de, pelo menos, 24 prédios, desde 2016. Outros 99 também solicitaram alterações do índice de aproveitamento do terreno.
Os recursos pagos pelas construtoras podem custear obras de melhorias urbanas e infraestrutura em todos os bairros. Mas, a cidade precisa acompanhar e monitorar se a medida é realmente benéfica ao planejamento e à coletividade.
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Essa “alternativa” já é conhecida em cidades muito urbanizadas como São Paulo. Em Fortaleza, passou a ter ênfase em 2016, quando a Prefeitura estabeleceu em leis municipais (10.335/2015 e 10.431/2015) formas práticas de cumprimento dessa possibilidade, que já é prevista no Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) e no próprio Plano Diretor municipal (em vigor desde 2009).
Esse mecanismo garante aos construtores o uso da chamada Outorga Onerosa, que assim como o nome indica, é uma “concessão”, no caso do poder público ao mercado imobiliário, mas que tem um custo para os interessados.
Milhões foram arrecadados pela Prefeitura de Fortaleza, entre 2016 e 2022, das construtoras que tiveram o uso da Outorga autorizado.
O que os construtores solicitam?
Na Capital, desde 2016, conforme dados publicizados pela Seuma, em 32 empreendimentos os construtores solicitaram o uso da Outorga Onerosa do Uso do Solo.
Na prática, nessa situação, eles requerem o direito de flexibilizar alguns parâmetros urbanísticos, como a altura, índice de aproveitamento do terreno, recuos, ou mesmo a atividade a ser desenvolvida na área, por exemplo, construir um comércio em uma zona definida como preferencialmente residencial. Esses pedidos são de edificações no Meireles, no Centro, Aldeota, Cocó, dentre outros.
Outros 99 construtores solicitaram o uso da Outorga Onerosa do Direito de Construir, que, em geral, é a possibilidade de flexibilizar o índice de aproveitamento. Ou seja, alterar o limite de quantas vezes é possível construir em metros quadrados em cima de um terreno. É poder construir mais no mesmo espaço.
Por exemplo, se o terreno é de 1.000 m² com coeficiente 1 a construção permitida é de 1.000 m². Então, o construtor pode pedir a outorga para mudança do coeficiente para 2, e a construção permitida, se autorizada pela Prefeitura, será de 2.000 m².
A Prefeitura disponibiliza publicamente a lista dos empreendimentos nas quais foram solicitadas as flexibilizações. Dos 32 empreendimentos que pediram a Outorga para Uso do Solo, o Diário do Nordeste identificou que no processo de 24 deles consta explicitamente que as construtoras demandaram a alteração no limite de altura.
No maior prédio de Fortaleza, situado no Mucuripe, cujo limite de altura na área era de 72 metros, foi autorizada o uso desse mecanismo e estabelecido um custo a ser pago em dinheiro, para o empreendimento chegar próximo a 170 metros.
O Diário Oficial do Município de 18 agosto de 2020 registra que o valor estabelecido pela Prefeitura para flexibilizar dois parâmetros (altura e um dos recuos), no processo do prédio mais alto, foi previsto o pagamento de R$ 5,7 milhões pela flexibilização. A serem pagos em 12 parcelas.
Conforme levantamento do Diário do Nordeste, nos 24 processos possíveis de identificar o pedido de alteração de altura, a flexibilização solicitada pela construtoras varia de 1,20 metro até 90,42 metros a mais do que o limite previsto inicialmente.
A Seuma informa que as edificações que solicitam a Outorga Onerosa têm projetos enquadrados como “Especiais e Empreendimentos Geradores de Impacto”. Cada um deles, diz a pasta, “possui sua própria especificidade”.
Por que os construtores pagam?
“Não é barato pagar a outorga onerosa, mas por enquanto tá viabilizando”, diz o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará (Sinduscon Ceará), Patriolino Dias. A contrapartida financeira da outorga onerosa, informa a Prefeitura, é aplicada na emissão do Alvará de Construção.
De acordo com Patriolino Dias, no cálculo da viabilidade financeira do empreendimento, “o que determina o preço final do imóvel é o mercado. Se o consumidor não quiser pagar não se consegue viabilizar. Então fazem a conta inversa. O que conseguem pagar pelo terreno, ou permuta”.
Em bairros mais consolidados próximo à Beira-Mar, explica ele, o valor do metro quadrado é de R$ 15 a R$ 20 mil.
A fórmula que determina quanto será cobrado de cada construtora pela Outorga Onerosa do Direito de Construir considera:
- Índice de aproveitamento pretendido até o máximo permitido;
- Índice de aproveitamento básico;
- Fator de Planejamento;
- Valor Venal base para cálculo do IPTU do imóvel por m²;
- Área total do terreno em metros quadrados (m²);
Já no caso da Outorga Onerosa de alteração do Uso do Solo, inclui:
- Valor da Extrapolação de Parâmetros Urbanísticos (em R$);
- Fator de Transposição de via;
- Fator de Transposição de zona;
- Área total do terreno em metros quadrados (m²);
- Valor de mercado (em R$/m²)
No caso das outorgas pagas, há situações em que o custo é de R$ 50 mil e outros, por exemplo, de mais de R$ 6 milhões. A Prefeitura de Fortaleza tem no site um simulador, no qual qualquer pessoa pode calcular quanto pode ser cobrado de outorga em cada solicitação.
“Tornou-se tão vantajoso verticalizar com prédios muito altos que existe um processo que tem acontecido em alguns lugares, o de demolição de hotéis de 10 andares, prédio de 4 andares. A tendência é que seja viável economicamente verticalizar. Faz a permuta, faz a demolição e faz um prédio de 50 andares”.
Ele reitera que desde 2016, com a nova Lei de Uso e Ocupação do Solo que flexibilizou os parâmetros mediante a contrapartida financeira, o aumento da altura dos prédios se acentuou gerando impactos, como a verticalização em áreas que têm a densidade elevada.
O arquiteto explica que ele mesmo mora em um prédio de duas torres de 15 andares, mas uma construtora fez uma proposta de demolí-las para edificar outras duas torres, mas de 30 andares.
“Há pessoas que querem, mas outras que não querem porque vão perder uma área grande e isso faz com que perca a qualidade do espaço. Esse tipo de dinâmica é uma consequência direta da flexibilização dos parâmetros”, completa.
Quais bairros receberam investimentos
O dinheiro arrecadado da outorga vai para o Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano de Fortaleza (Fundurb) e deve ser aplicado na manutenção e conservação urbanística, em programas de urbanização e obras de infraestrutura nas zonas adensadas com carência de serviços. Na prática, é usado no asfaltamento, no calçamento, na drenagem, na melhoria das calçadas.
O Fundurb recebe dinheiro das Outorgas, mas também de aplicação de multas decorrentes de infrações à legislação urbanística, aplicadas pela Agefis ou por outros órgãos públicos do município.
Segundo a Seuma, de 2016 até o momento, foram arrecadados via Fundurb cerca de R$ 98 milhões. O Diário do Nordeste cruzou dados disponíveis publicamente pela Seuma e constatou que desse total, 89,3 milhões foram provenientes de Outorgas Onerosas.
Os recursos do Fundurb, segundo a Prefeitura, entre 2016 e 2021, foram aplicados em 99 bairros. A Serrinha, foi nesse intervalo, o bairro que mais recebeu verba do Fundurb, ao todo foram R$ 3,4 milhões.
Veja bairros que não receberam recursos do Fundurb:
- Bom Futuro
- Cambeba
- Conjunto Palmeiras
- Curió
- Dendê
- Guararapes
- Jardim Cearense
- Manuel Dias Branco
- Maraponga
- Novo Mondubim
- Olavo Oliveira
- Pan Americano
- Parque Presidente Vargas
- Parque Santa Rosa
- Parreão
- Panamericano
- Pedras
- Quintino Cunha
- Sabiaguaba
- Salinas
- São Gerardo
- Sapiranga
- Varjota
Avaliação de cada caso
Os empreendimentos que solicitam à Outorga são submetidos à aprovação da Comissão Permanente de Avaliação do Plano Diretor (CPPD) ligada à Seuma. A CPPD, composta por conselheiros de 13 órgãos públicos municipais e 13 entidades da sociedade, como UFC, Sindiônibus, CREA, avalia as propostas. Mesmo pagando, há um limite máximo para construção e os parâmetros urbanísticos devem ser respeitados.
O arquiteto e vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) do Ceará, Henrique Alves, ressalta que a primeira noção é que o poder público “não pode permitir infinitamente”, logo, as alturas (ou outros parâmetros) flexibilizados estão acima do que é convencionado, mas precisam respeitar os demais índices urbanísticos.
Além disso, ele ressalta que é preciso ter maior participação social no acompanhamento das decisões sobre a flexibilização. “A Comissão define casos que não são contemplados pela Lei. É preciso monitorar se ela tem a participação da população ou ela tem a participação apenas de técnico. Além disso, é preciso observar que o legislativo muitas vezes tem operado para mudar leis (urbanísticas) sem trazer justificativas técnicas”, reforça.
A permissão das Outorgas são avaliadas pela comissão e se for permitido, as construtoras assinam um termo de compromisso com a Prefeitura. Todos os termos são publicados no Diário Oficial do Município.