Conheça o João, que aos 4 anos troca desenhos por vídeos de manutenção de carro e ar-condicionado
Pais têm a função de mediar a curiosidade infantil e permitir uma rotina equilibrada também fora das telas, como aponta especialista
Quando a dentista perguntou qual desenho animado poderia colocar na tela durante o atendimento do pequeno João Costa e Silva Ribeiro, de 4 anos, foi surpreendida pela resposta: vídeos de manutenção. O ar-condicionado está na atual mira do menino atento ao funcionamento, marcas e controles de aparelho por onde passa, em Fortaleza.
João desperta atenção entre familiares e amigos pelo interesse específico mesmo com tão pouca idade. O gosto por ar-condicionado, inclusive, chegou a ser pedido na cartinha endereçada ao Papai Noel: “me dê um controle do ar-condicionado e uma chave de carro”.
O menino ainda está no processo de construção da fala, mas isso não o impede de tratar com firmeza sobre as peças e detalhes técnicos do aparelho. Em casa, já solucionou o problema do controle que a avó não conseguia resolver.
“Você pega o controle e liga, se não acender mais é porque está com problema. Se o ar-condicionado não ligar mais e ficar sem abrir a portinha, tem que chamar o técnico para ajeitar”, explica João.
Tanto interesse pelo tema levou o menino a reproduzir o próprio ar-condicionado. O cesto de roupas virou um condensador, um pedaço de barbante agora é uma mangueira, já um copo de água se tornou um umidificador.
“O condensador, se for quadrado ou redondo, pode ser de qualquer marca”, detalha sobre a peça. João está no Infantil 4 numa escola onde vez ou outra também pede o controle do ar para a professora. “Eu gosto de aprender e de fazer amigos”, pondera o pequeno.
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Esse interesse é acompanhado pelos pais do menino, que buscam o equilíbrio entre as atividades da criança.
“Eu tenho uma amiga que conseguiu com o técnico do ar-condicionado dela um controle porque ele queria um específico e a gente deixa ele brincar. Obviamente, ficamos supervisionando porque tem as baterias”, explica Roberta Costa, mãe do João.
Quando a gente vai andar no shopping ele não tem interesse por brinquedos, mas por carros de verdade, ele fica parado olhando o ar-condicionado. Dos carrinhos elétricos ele passa e não liga, mas o real ele quer entrar
Como tudo começou
João ainda não tinha nem 2 anos quando precisou ficar recluso em casa por causa da pandemia da Covid. Na mesma época, um veículo novo dentro de casa fez os olhos do menino brilharem.
“Ele ficou fascinado pelo carro do vovô e começou a ver vídeos mostrando o motor, o desempenho e os pneus", lembra Roberta Costa.
Ela não sabe ao certo, mas talvez o algoritmo da plataforma de vídeos – que recomenda conteúdos similares para prender a atenção do público – tenha sido o responsável pelo novo interesse.
“Um belo dia eu vejo o João assistindo vídeos sobre ar-condicionado e ele ficou querendo saber o nome das peças. Hoje também gosta de controle de portão automático”, acrescenta a mãe do menino.
Se alguém chega aqui ele já pergunta: ‘Você tem carro? Deixa eu ver a chave?’. Daí, ele queria até abrir, mas a gente não deixa
Talvez a curiosidade do João, pode-se notar, migre para outros equipamentos. Durante a entrevista, por exemplo, o encanto foi com a câmera de onde os disparos saem rápidos e as imagens chamaram atenção do menino.
Essa característica da criança levou os pais a buscarem orientação profissional levando João a uma pediatra e entender sobre a possibilidade do diagnóstico de transtorno do espectro autista, que pode ser associado ao hiperfoco numa atividade. Isso, porém, foi descartado.
“Tenho uma amiga pediatra, que achou muito interessante, porque ele tem um gosto direcionado para eletrônicos e ela nos orientou a fazer teste de Q.I. (Quociente de Inteligência)”, aponta Roberta.
Mediação dos pais
Os responsáveis por crianças devem acompanhar as curiosidades infantis e assumir um papel de mediadores, como aponta Ticiana Santiago Sá, psicopedagoga e integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança (Nucepec).
“Algumas crianças autistas têm um hiperfoco e desenvolvem algumas habilidades e interesses mais específicos, que não necessariamente é algo ruim. Outras crianças têm o interesse simplesmente, sem ter altas habilidades ou neurodiversidade”, contextualiza.
Ela explica que existe uma cultura maker em que os pequenos buscam entender os processos e funcionamentos, além de enxergar a possibilidade de intervir nesses processos.
“A informação ficou mais democrática e acessível, tem os vídeos, e as crianças se apropriaram disso. Aquele conhecimento que era meramente conteudista foi se alastrando para todos os campos de experiências dessas crianças”, completa Ticiana.
As falas recorrentes num passado não tão distante, como “deixe de perguntar”, “deixe de mexer” e “fique quieto”, ficaram de lado num contexto em que as crianças entram em sites, escolhem o conteúdo para consumir e até produzem informação para a internet.
As conexões cerebrais nessa fase da vida são muito mais intensas, assim como as experiências sociais, familiares e cognitivas. Elas estão construindo não só conhecimento, mas identidade
Quem cuida de uma criança deve estabelecer uma rotina equilibrada com vários estímulos para evitar transtornos como ansiedade, problemas de visão devido ao tempo de tela, ou falta de interesse por socializar.
“A criança não tem todas as ferramentas para decodificar alguns elementos da realidade, como entender o juízo de valor. No primeiro momento, a criança toma como certo ou errado aquilo que um adulto diz”
Uma presença ativa nos interesses da criança, por outro lado, podem repercutir de forma positiva ao longo da vida.
“Vai ser um adolescente e um adulto com muito mais flexibilidade para lidar com as descobertas, interesses, erros e dificuldades. Temos de entender que as crianças são pessoas em condições peculiares de desenvolvimento”, conclui Ticiana.