'A criança com altas habilidades tem também suas fragilidades', diz pesquisadora sobre superdotação

Em entrevista ao Diário do Nordeste, a doutora em Psicopedagogia, Rita Vieira, aborda a atuação das famílias e os cuidados sobre as questões emocionais das crianças superdotadas

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Ceará tem superdotados em muitas cidades
Legenda: Escolas públicas e privadas do Ceará têm 287 estudantes superdotados em 65 cidades

Quem convive com crianças e adolescentes superdotados sente que ainda são muitas as necessidades de efetiva inclusão nas escolas. Falta identificação da condição, preparação em lidar com os alunos, garantia de desenvolvimento dos planos educacionais individualizados e do acolhimento das diferenças.

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Mas, um ponto muitas vezes, sequer mencionado, também é obstáculo e gera angústia tanto nos superdotados, como nas famílias: o descompasso entre aceleração cognitiva e falta de amadurecimento emocional. E essa é uma dimensão que, de modo algum, pode ser ignorada. 

Na busca por melhor compreensão da condição dos próprios filhos ou dos estudantes, pais, profissionais e gestores da educação “precisam ter clareza” sobre esse conflito para que ele possa ser enfrentado, destaca a professora titular aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em Psicopedagogia e pesquisadora no campo da Educação Especial e da Inclusão Escolar, Rita Vieira de Figueiredo.

Ela atuou no Grupo de Trabalho para a formulação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, do Governo Federal em 2008. Em 2020, o atual governo, via Decreto Federal 10.502, alterou as dimensões da norma anterior e essa mudança tem sido alvo de críticas e até ações judiciais por conter retrocessos. 

Na série de matérias sobre superdotação, o Diário do Nordeste entrevistou Rita e abordou os cuidados sobre as questões emocionais das crianças superdotadas, pais e responsáveis, bem como a atuação das famílias no processo, os mecanismos que as escolas precisam dispor e a formação dos professores.  

Rita  destaca que “não cabe mais na escola a aprendizagem por meio da competição”. Determinar quem é melhor ou pior na sala de aula, diz ela, é a contramão de processos inclusivos. “Nós temos possibilidades e fragilidades. A criança que tem altas habilidades tem também suas fragilidades”, ressalta. A cooperação, enfatiza, “é o melhor movimento para trazer para dentro da escola. A pedagogia da contribuição deve ser praticada”. 

Ceará tem muitas cidades com crianças superdotadas
Legenda: Rita Vieira é professora titular aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em Psicopedagogia e pesquisadora no campo da Educação Especial e da Inclusão Escolar

Quando se fala em pessoas superdotadas, com altas habilidades, no Brasil ainda há muitos mitos, desconhecimento, expectativas e entraves para a inclusão efetiva. Quais pontos são prioridade?

Um dos aspectos que a gente tem que colocar como prioridade é a questão da transformação da escola. Porque a escola ainda é uma instituição muito conservadora. A sociedade vem se transformando em termos de conquistas de tecnologias e comunicação, mas a escola continua com os mesmos valores de muitos anos, muito conservadora no sentido do processo de produção do conhecimento. 

A aprendizagem se dá de diversas formas e ninguém pode regular o processo do outro. Aprendizagem é autônoma. O professor é extremamente importante no ato de aprender, mas ele não pode regular a aprendizagem. Pode criar condições para que a aprendizagem aconteça. 

Quando estamos falando de pessoas que têm altas habilidades, superdotação, que têm um processo de aprendizagem extremamente mais rápido do que a média da população, se torna muito complicado e difícil porque com esse modelo de escola, no qual as crianças têm que ficar em um determinado padrão, qualquer pessoa que não esteja no padrão é vista como desviante dentro do que é esperado. 

A escola precisa se renovar para possibilitar que as pessoas aprendam cada uma no seu ritmo. Compreender que os processos são feitos segundo a motivação e as possibilidades de cada um. Então, é muito difícil quando a escola se organiza de um forma restrita e rígida na organização das condições para que a aprendizagem aconteça. 

Nas escolas, pais relatam que há muitas dificuldades de diagnóstico, acolhimento e trato das necessidades específicas. Em relação aos professores, como isso os afeta? Qual a formação necessária para atuar na perspectiva inclusiva?

Quando a gente fala em processo pedagógico e fala na formação, o que é importante é que o professor tenha uma boa formação pedagógica. E não ser um especialista em deficiência ou em altas habilidades. Isso não muda nada em termos de práticas pedagógicas. O que torna diferente, acessível o processo de produção do conhecimento, é o professor ser um professor que tenha condições de realizar uma ação pedagógica que oportunize todas as pessoas aprenderem, com atividades diversificadas. 

Não é uma atividade individual para cada criança. É a oportunidade de as crianças fazerem diferentes coisas no mesmo espaço. Não significa que todos têm que estar realizando a mesma tarefa, mas sim que os objetivos de aprendizagem sejam os mesmos para todas crianças. 

As atividades podem ser diversificadas. Não há só uma forma de aprender. É permitir que essa criança tenha acesso ao conhecimento de diferentes formas. Não é só por escrito ou verbalmente que a criança pode expressar o que aprendeu. 

Nesse contexto, qual a distinção entre a Educação Especial e a Educação Inclusiva?

É fundamental que a escola compreenda que o professor que responde pelo processo de inclusão das crianças é o que está na sala de aula comum. Esse professor tem que ter uma formação muito boa na questão pedagógica, da didática, porque ele não vai trabalhar só o conteúdo. 

Já o professor da educação especial que também precisa está na escola por meio do Atendimento Educacional Especializado (AEE), esse professor sim precisa de uma formação além da formação pedagógica. Precisa ter uma formação na educação especial. E ele vai fazer um trabalho que vai ajudar na acessibilidade ao conhecimento por todas as crianças que são consideradas público alvo da educação especial, como a criança com superdotação e altas habilidades. 

O professor do AEE vai trabalhar na sala de recursos multifuncionais que deve existir nas escolas em parceria com o professor da sala comum. Vai verificar, identificar os aspectos que criam barreiras no processo de aprendizado da criança. 

Uma criança pode ser superdotada e estar com dificuldade na escola. Não porque ela tem dificuldade cognitiva, mas por causa dos processos. Dificuldade por causa da relação. Como ela aprende mais rápido, ela se sente ociosa. O professor do AEE, trabalhando em parceria com o professor do ensino comum, pode criar estratégias para que essa criança socialize melhor e se beneficie muito mais.   

A garantia efetiva de inclusão para pessoas com superdotação ou altas habilidades, claro, envolve toda a comunidade escolar. A família tem um papel estruturante nesse diálogo e como deve proceder? 

Essa relação com a família é fundamental porque é muito importante que a família saiba o que está ocorrendo na escola e também possa contribuir com a escola porque quem mais conhece a criança é a família. A escola não pode mais ficar chamando a família para dar feedback, reclamando da criança. 

Muitas vezes, uma criança sofre processos de castração quando os pais são superprotetores. Os pais tiram a possibilidade dessa criança desenvolver sua autonomia. Esses processos precisam ser conversados. A autonomia se conquista em casa e na escola. Mas quando ela é conquistada em casa, ela vai para a escola. 

Criança superdotada no Ceará
Legenda: Crianças têm dificuldades de serem incluídas na escola devido suas altas habilidades
Foto: Kid Júnior

Outro ponto bastante enfatizado pelos pais é o dilema de lidar com a assincronia entre capacidade intelectual dos filhos e as questões emocionais das próprias crianças. O que é esse “descompasso”? E qual a orientação diante dele?

Uma criança, por exemplo, de 10 anos,  do ponto de vista cognitivo pode estar muito além do seu grupo, mas do ponto de vista emocional ela é uma criança de 10 anos e precisa da relação social com as crianças da idade dela. Então, por isso, a questão da inclusão é tão importante. Ela precisa conviver com as crianças da sua idade. 

Ceará tem superdotados em muitas cidades
Legenda: Escolas públicas e privadas do Ceará têm 287 estudantes superdotados em 65 cidades

É importante quando existe na escola o Atendimento Educacional Especializado porque nessa sala de recurso o professor pode criar estratégias, promover momentos de aprendizagem que a criança vá se revelando muito além do que ela faz na sala de aula. 

Não podemos deixar que essa criança se isole, se sinta excluída do seu grupo, porque o processo de aprender dela é mais rápido.É preciso que as famílias e professores tenham essa clareza da convivência. 

Pais de crianças superdotadas também relatam dificuldades emocionais no trato e na compreensão dos próprios filhos. O que os pais precisam fazer?

Quando a gente propõe a construção de salas de recurso nas escolas e o AEE, o professor da educação especial precisa elaborar o Plano de Atendimento Especializado. Ele vai elaborar esse plano e fazer um estudo de caso. Estudar como essa criança está se desenvolvendo, socializado no espaço da escola e na comunidade. 

Quando o professor do AEE faz essa entrevista com a família é o momento de acolher e ouvir essa família. O momento dessa família é dizer quais as angústias, as dificuldades e  as dúvidas. A família precisa ser acolhida para ter uma orientação de como trabalhar com a criança e contribuir com a escola. 

Muitas vezes, existe uma cobrança muito grande, porque as famílias dizem "se ele é inteligente para isso, porque ele não é para outras coisas". A maturidade emocional não alcança o desenvolvimento intelectual. Esse aspecto gera muita angústia e conflito na família. 

Se espera uma maturidade que a criança não tem. Ela pode demonstrar um avanço intelectual, mas emocionalmente ela é apenas uma criança. E se torna agressiva em casa ou na escola porque também vive esse conflito. Ela tem dificuldade de conviver com a outra pessoa não acompanha seu raciocínio. 

Como atuar diante desse conflito?

Essa questão do conflito nas relações sociais de crianças e jovens que apresentam a superdotação pode ser minimizada a partir do momento que é dado espaço para discutir esse aspecto. É muito interessante quando as famílias se sentem acolhidas para fazer essa discussão. 

É importante que se promova encontros entre as famílias que vivenciam os mesmos processos. É muito difícil para as mães porque essas crianças, muitas vezes, têm a característica que quando iniciam uma atividade, não querem parar até finalizar. E isso leva muito tempo porque ela está numa atividade que vai muito além do que é esperado dela cognitivamente. Quando a família entende os processos dos seus filhos, fica mais fácil lidar com eles. 

Ao invés de trabalhar com o conflito negativo, podemos trabalhar o conflito como um fato positivo por poder explicitar o que gera esse conflito. É importante se criar o espaço do diálogo. Se colocar na mesa quais são as nossas verdadeiras angústias e dificuldades. Tanto na família, quanto na escola, quando se abre o espaço para o diálogo franco, a tendência é a gente superar. 

Em relação aos aspectos legais, o que temos de marcos regulatório e políticas públicas estabelecidas no Brasil, nesse contexto, atende às necessidades?

Em 2008, o Brasil lançou a Política Nacional da Educação Especial na perspectiva da Política Inclusiva. Uma das maiores conquistas que a escola brasileira obteve para o processo de inclusão de todos os estudantes. E essa conquista foi feita por uma luta de famílias, instituições, professores, das próprias pessoas da educação especial. 

Infelizmente, o atual Governo Federal tentou desmantelar essa política que é de vanguarda. Quando comparamos essas políticas com outras, como Canadá, Estados Unidos, a nossa política (brasileira), em muitos aspectos, é superior. 

Um decreto foi lançado em 2020 e foi preciso que a sociedade civil se organizasse para que essa política (de 2008) não fosse descumprida e desrespeitada. 

A conquista da política (Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva) já é um primeiro passo e precisa ser implementada. Quando ela diz que as crianças precisam do Atendimento Educacional Especializado, precisam de um professor que trabalhe em parceria, no sentido de oferecer os recursos de tecnologia assistiva, é uma política de inclusão social. Não se pode trocar por um decreto que é um verdadeiro atraso na educação. 





 

 

 

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