Fortaleza chega às vésperas de completar 300 anos como a capital mais populosa do Nordeste e a quarta de todo o Brasil, como revelam os dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Se, no final do século XIX, toda a sua população caberia na Aldeota de hoje, a cidade atraiu pessoas, recebeu investimentos, cresceu e transbordou para os municípios vizinhos. Ela passou de uma vila fora do circuito econômico e tem se consolidado como uma metrópole, com todas as facilidades e contradições que coexistem nesses centros urbanos.

O censo demográfico de 1890 do IBGE, o primeiro realizado após a proclamação da República, em 1889, mostra uma cidade com quase 41 mil habitantes. Essa população inteira é menor do que a de 11 bairros da capital cearense nos dias atuais, como Aldeota, Messejana, Vila Velha, Barra do Ceará e Jangurussu — esse último, o mais populoso.

A quantidade de habitantes de Fortaleza aumentou constantemente, em uma dinâmica influenciada por questões sociais e econômicas. Até aqui, as migrações para a capital foram motivadas por aspectos como grandes secas, criação de políticas de desenvolvimento, investimentos privados, turismo e oportunidades de emprego e acolhimento para pessoas em situação de vulnerabilidade.

Veja também

Esta é a segunda reportagem do especial “Fortaleza, quantas histórias...”, veiculada ao longo do mês de abril, quando se celebram os seus 299 anos. A ideia é contar a história da Capital a partir de aspectos que ajudam a construir a memória da cidade, como a criação dos bairros, a arquitetura, as migrações e os motivos do crescimento da população.

Fortaleza, quantas histórias

Mudanças econômicas

Até 1799, quando a capitania do Ceará foi desmembrada de Pernambuco, Fortaleza praticamente não tinha expressão econômica. Era no sertão que estavam as vilas mais importantes, como Icó e Sobral, que cresceram com o desenvolvimento da pecuária. Mas a Capital tinha a seu favor a posição estratégica para segurança e abastecimento.

Ao chegar, o primeiro governador da capitania, Bernardo Manuel Vasconcelos, deparou-se inclusive com uma vila pobre, que aos poucos foi recebendo infraestrutura e serviços. Foi com a produção de algodão e a exportação da mercadoria por Fortaleza que se começou a gerar riqueza para a Capital.

Na metade do século XIX, Fortaleza já está no mesmo nível na hierarquia urbana de Sobral e Icó. Mas a pedra fundamental disso tudo vai ser a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, que deixam de produzir algodão para a Inglaterra, e a demanda pelo algodão brasileiro aumenta. E o Ceará passa a ser um grande exportador.
Maria Clélia Lustosa Costa
Professora da UFC e coordenadora do núcleo Fortaleza da Rede Observatório das Metrópoles

“Dizemos que o Ceará entra na divisão internacional do trabalho fornecendo algodão para o mercado europeu”, afirma Maria Clélia Lustosa Costa, professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do núcleo Fortaleza da Rede Observatório das Metrópoles. Esse contexto leva ao crescimento da economia e à dinamização do comércio de Fortaleza. Surgem escolas, chegam importadoras, constroem-se casas e palacetes.

No texto “Fortaleza: expansão urbana e organização do espaço”, Lustosa explica que, com os períodos de estiagem, os agricultores buscavam apoio do poder público na Capital ou migraram para outras regiões do Brasil. Com a ocorrência das chuvas, muitos voltavam às terras de origem, enquanto outros permaneciam na Cidade, contribuindo para a sua expansão.

Esse crescimento populacional pode ser observado no histórico do censo demográfico, disponibilizado pelo IBGE. Entre os levantamentos de 1900 e 1920, por exemplo, a taxa de crescimento da população fortalezense foi de 62%, aumentando 30.167 habitantes em duas décadas.

Nesse intervalo ocorreu a seca de 1915, que inspirou “O Quinze”, de Rachel de Queiroz, e levou à criação de campos de concentração para reter os migrantes. “Mas ainda tinha muita migração para o Sul e o Sudeste. Depois você começa a ver que essa população vai se fixando em Fortaleza, tanto que nos anos 1930 já se fala de várias favelas que surgem em função dessa migração”, contextualiza a professora.

Esse processo fica mais intenso ao se comparar as décadas de 1950 e 1960, quando a população da Capital quase dobra, passando de 270.169 para 514.818, um aumento de 90,5% — frente a um crescimento intercensitário de 23,8% da população do Estado como um todo.

Lustosa caracteriza o aumento populacional de Fortaleza desse período — em meio à crise da agricultura cearense, à concentração fundiária e a grandes secas — como “chocante”. “(Teve) a famosa seca de 1958, em que Juscelino Kubitschek criou o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, que foi a base da criação da Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste] nos anos 1960”, contextualiza.

Vista aérea de Fortaleza na década de 1950
Fachada da Companhia Têxtil José Pinto do Carmo, em Fortaleza, em 1957
Fachada da loja Mesbla
Legenda: A dinamização da economia de Fortaleza materializou-se em lojas, indústrias e moradias
Foto: Acervo Prefeitura de Fortaleza

Crescimento horizontal

As últimas décadas do século XX foram marcadas por acelerado crescimento populacional. De 1970 para 1980, por exemplo, os dados do IBGE mostram que a Capital ganhou quase 450 mil habitantes, ultrapassando o marco de 1 milhão de pessoas.

“Essa foi uma fase muito importante, dos anos 1970 para o presente, e foi acompanhada de muitos investimentos públicos de transformação da cidade, como a abertura de novas avenidas, alargamento de espaços e construção de conjuntos habitacionais gigantescos”, analisa o geógrafo Alexandre Queiroz, professor UFC, membro da Rede Observatório das Metrópoles e colunista do Diário do Nordeste.

Com essa reestruturação urbana, “novas localizações foram sendo dotadas de novas funções” e a Cidade cresceu horizontalmente. O comércio e os serviços não estavam mais restritos ao centro histórico, locais que antes não eram habitados passaram a ser zonas residenciais, fábricas foram instaladas e novos polos de lazer foram criados. Assim, a cidade torna-se policêntrica.

Um exemplo desse movimento é a perda da função de centro do poder administrativo pelo centro da Cidade. Nos anos 1970, por exemplo, a sede do Governo do Estado passou do Palácio da Luz — que hoje abriga a sede da Academia Cearense de Letras — para o Palácio da Abolição, na Aldeota.

Vista área de Fortaleza, na proximidade do mar, mostrando prédios altos e casas mais humildes
Trânsito na avenida Aguanambi, com carros borrados e rastros de luz, indicando a velocidade dos veículos
Obras da construção de unidade de conjunto habitacional do minha casa, minha vida
Legenda: Com o passar das décadas, diferentes áreas de Fortaleza ganharam novas funções e a cidade expandiu
Foto: Fabiane de Paula e Thiago Gadelha

Outra demonstração dessa nova dinâmica foi a criação de diversos shoppings, atendendo às diferentes necessidades da população. “Até os anos 1990 você tinha um, dois, no máximo três shoppings center. Hoje, você tem um espalhamento nos vários bairros, na Parangaba, na Messejana, no Eusébio, em Maracanaú, em Caucaia. Isso demonstra as novas direções de fluxo”, complementa.

Fortaleza foi se tornando cada vez mais importante para a realidade brasileira e muito mais para o Nordeste. Até os anos 1960, Fortaleza encontrava-se abaixo de Salvador e Recife, em termos de classificação da importância das cidades no Brasil. Nos estudos de 2007 para cá, o IBGE tem demonstrado que Fortaleza encontra-se no mesmo patamar, enquanto uma aglomeração metropolitana, até produzindo mais riqueza.
Alexandre Queiroz
Geógrafo, professor UFC e membro da Rede Observatório das Metrópoles

Com todas essas mudanças, nasce uma metrópole, esse espaço “denso, fragmentado, mas articulado, diversificado”, segundo Queiroz. Um espaço de grandes distâncias e que aproxima pobreza e riqueza. “E isso vai propiciando também um transbordamento das populações e das funções nos espaços que ficam vizinhos à cidade de Fortaleza”, complementa.

Para o IBGE, a metrópole está no topo de cinco principais níveis hierárquicos. “Quanto maior a hierarquia urbana de uma cidade, maior tende a ser o número de cidades que a ela se subordinam enquanto região de influência”, explica o Instituto. Todos os municípios brasileiros recebem influência direta ou indireta de uma metrópole — ou mais de uma —, tanto pela atração para o acesso a bens e serviços quanto pela gestão de empresas e instituições públicas.

A consolidação de Fortaleza como metrópole e dos municípios vizinhos como região metropolitana também é citada pela pesquisadora Denise Bomtempo, professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), que tem foco em pessoas em situação de migração, refúgio e apatridia.

Por muito tempo, ela explica que o Ceará foi marcado por uma migração intraestadual ou de estados vizinhos, mas isso começou a mudar na transição para o século XXI, com uma articulação em nível nacional. Nesse período, foi implementada uma série de políticas para dinamizar setores econômicos, como indústria, agronegócio e comércio.

Outra área estimulada foi o turismo, que antes era mais “pé na areia” e passou a receber investimentos de outros locais do Brasil e do Exterior. Pessoas de outros países passam a enxergar no Ceará a oportunidade de investir também para pequenos e médios empreendimentos, com a criação de pousadas e restaurantes em praias próximas à Capital, estabelecendo também moradia.

“A indústria também passou por esse mesmo processo, principalmente a de transformação mais tradicional, como a de alimentos, que atua a partir do Ceará em todo o território nacional. É um setor que tem centralidade nacional a partir do Ceará. E nós também tivemos atração de empresas de outras regiões do Brasil e uma série de serviços passaram a ser consumidos em Fortaleza”, complementa Bomtempo, que reitera a presença de investidores internacionais e a atração de profissionais qualificados.

Ao mesmo tempo, porém, essa dinâmica também faz surgir diversos problemas, como a desapropriação de comunidades tradicionais, seja pela atividade turística, seja pela instalação de grandes equipamentos. “São problemas importantíssimos de serem vistos, na perspectiva de termos um território que possa ser ocupado por todos, por aqueles que já existiam aqui, antes desses processos dinamizadores maiores, mas também por aqueles que chegam”, ressalta.

Como esse polo de atração, Fortaleza também passou a atrair migrantes internacionais em busca de inserção no mercado de trabalho e estudo. Pessoas da Venezuela, da Guiné-Bissau, da Índia, de Cuba, da Colômbia, entre outros.

Temos, de maneira coexistente, tanto o investidor quanto as pessoas que chegam com vulnerabilidades, que essa dinâmica econômica de Fortaleza atrai também na perspectiva da inserção no mercado de trabalho. (...) Falo de estudantes que procuram a cidade para qualificação, de pessoas de outras nacionalidades que chegam até aqui buscando atenção no que concerne a serviços para realização da vida cotidiana.
Denise Bomtempo
Geógrafa, professora da Uece e coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello

São pessoas com potencialidades, qualificação técnica ou de nível superior em diferentes áreas, em busca de reestruturar a vida cotidiana. Uma característica de Fortaleza e do Ceará para esse público, segundo a professora, é a existência de programas e políticas públicas de atenção a migrantes e refugiados. “Precisamos avançar muito em nível de município e estado, mas ainda assim já temos uma base que contribui para o atendimento dessas pessoas”, afirma.

“É muito importante considerar que a metrópole é aberta à diversidade. As pessoas que chegam dão esse ar de metrópole à Cidade, que é o sentido da diversidade das línguas, das culturas, das cores, dos sabores. Acho que Fortaleza, hoje, é essa cidade que apresenta não só aquilo que é próprio da cultura do Ceará, da cultura fortalezense, mas que abriga essa diversidade cultural das pessoas que chegam de outros lugares do Brasil e de outros países”, destaca a professora.

Fortaleza, quantas histórias

“O espaço metropolitano não respeita limites”

O Censo Demográfico de 2022 mostrou que, pela primeira vez, a população de Fortaleza reduziu, com 23.477 pessoas a menos do que o levantamento de 2010, representando uma redução de 1%.

Ao mesmo tempo, Caucaia, Itaitinga, Eusébio e Maracanaú, que compõem a região metropolitana, aumentaram mais de 25 mil novos habitantes cada. A cidade que mais cresceu, proporcionalmente, foi Itaitinga, que passou de 35.817 habitantes em 2010 para 64.650 em 2022 — 80,5% a mais.

Mas isso não quer dizer que Fortaleza esteja perdendo influência nem demonstra uma saturação da Cidade, segundo o professor Alexandre Queiroz. Além de a pandemia de Covid-19 ter mudado padrões de habitação, ele explica que havia projeções para a população que não foram atualizadas pela falta de contagem populacional, então os modelos estatísticos não foram calibrados.

E, atualmente, Fortaleza não se restringe ao traçado delimitado em seu mapa. Seja em busca de moradias mais baratas ou de residências de alto padrão, muitas pessoas passaram a buscar municípios vizinhos. Não é raro alguém residir em Caucaia ou Maracanaú e trabalhar em Fortaleza; morar em Fortaleza e trabalhar em Aquiraz; deslocar-se entre uma cidade e outra todos os dias.

“Uma coisa é o município; outra coisa é o espaço metropolitano. O espaço metropolitano não respeita limites, ele vai crescendo e estabelece uma forma conurbada, colada, e você quase não distingue o fim de um município e o início de outro”, pontua Alexandre Queiroz.

“Não dá para, chegando à terceira década do século XXI, entender Fortaleza por ela mesma. Esse processo de metropolização amplia Fortaleza para além da sua área enquanto cidade. (...) Se perdemos população frente à região metropolitana, é em decorrência desse processo de metropolização”, corrobora Denise Bomtempo.

Silhueta desfocada de pessoas esperando o metrô, que aparece ao fundo, em foco
Carros nos dois sentidos de uma avenida de Fortaleza que leva para Caucaia
Motos, ônibus e carros em via de Fortaleza
Legenda: À medida que a região metropolitana cresce, mais difusas firam as fronteiras entre os municípios
Foto: Davi Rocha e Alex Costa

Desafios para o futuro

Os dados do censo populacional de 2022 também mostram a mudança da pirâmide etária de Fortaleza. Assim como o Brasil como um todo, Fortaleza está envelhecendo. Enquanto a parcela da população de 0 a 9 anos passou de 19,2% em 2000 para 12,1% em 2022, a proporção de idosos era de 7,5% em 2000 e chegou a 15,1% no último levantamento. Isso aponta para um dos desafios da capital cearense ao chegar ao terceiro centenário. 

Transporte adaptado, acessibilidade, calçadas adequadas, ônibus mais fáceis de entrar, instituições de educação e de saúde. Tudo isso precisa ser redefinido, segundo o geógrafo Alexandre Queiroz, que aponta que Fortaleza não é amigável ao idoso. “A cidade teve evoluções, mas sempre são conquistas que estão em perigo”, pondera.

“Temos essa conquista da abertura a uma mobilidade mais saudável, mais segura, que foi um avanço que incluiu uso cada vez maior da bicicleta. Mas, ao mesmo tempo, o transporte coletivo de massa tem perdido usuários”, destaca, pontuando que já deveríamos ter avançado no transporte sobre trilhos. “Infelizmente estamos a anos luz disso.”

Em relação ao meio ambiente, à questão da situação de emergência climática, ainda temos que lutar para garantir que um espaço não seja transformado em prédio. Há um debate, há uma luta, mas tudo isso ainda é muito duro, as coisas são muito lentas até que você convença as pessoas, o mercado, as empresas, os políticos.
Alexandre Queiroz
Geógrafo, professor UFC e membro da Rede Observatório das Metrópoles

E se em alguns bairros os idosos são mais numerosos, em outros a população ainda é mais jovem. Análises do professor Alexandre Queiroz sobre a pirâmide etária do Grande Bom Jardim, na região sudoeste de Fortaleza, mostram uma redução expressiva de homens jovens em relação às mulheres.

“Às vezes, os homens acabam saindo de casa para migrar, para buscar outros lugares de moradia, mas também tem a questão da violência”, avalia. É com esse cenário que o professor chama atenção para o “atacado da morte” e para a perda de jovens para as facções criminosas.

Esse é mais um desafio que Fortaleza — e não só ela — precisa enfrentar. Caso contrário, corre o risco de que sejam criadas “mini cidades isoladas”, em que uma tem medo de “invasores”. “Então, tem que olhar para um lado, para o outro, sempre achando que tem que ter mais e mais segurança porque tem mais e mais medo”.

“A cidade é um produto coletivo, seus problemas sempre serão de responsabilidade coletiva. Se não houver essa noção de coletividade, de alteridade, os problemas só serão mitigados ou colocados para debaixo do tapete. (...) Às vezes, a gente tem que ceder. É um amadurecimento civilizatório de qualquer sociedade que vive numa grande aglomeração. Temos que calibrar nossa capacidade de convivência, de respeito nas várias dimensões”, finaliza o pesquisador.

Fortaleza, quantas histórias