Proclamação da República: o que mudou na atuação de militares na política brasileira 132 anos depois
A República brasileira começou por meio de uma mobilização de militares que, desde então, continuam tendo forte protagonismo no cenário político do País
O Governo Bolsonaro conta com mais de 6,1 mil militares em cargos do governo federal - quase metade deles oficiais da ativa. Uma presença que, embora crescente, não é inédita na história da República brasileira, pelo contrário. Os militares tiveram protagonismo na própria Proclamação da República, há exatos 132 anos, no dia 15 de novembro de 1889. A data representa um momento-chave do início desta participação das Forças Armadas na política brasileira.
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Mais de um século depois, entretanto, o contexto político é bem diferente. Lá atrás, o movimento liderado por Marechal Deodoro da Fonseca representou a ruptura com a Monarquia no País e um novo momento para a política brasileira, em um momento de fortes crises do Império. Agora, a extensa presença de militares na gestão federal carrega consigo o histórico da participação das Forças Armadas na política brasileira - nem sempre positiva.
Reivindicação por reconhecimento
O movimento pelo início da República no Brasil é difuso. A mobilização republicana chegou aqui no mesmo período do crescimento da luta abolicionista, mas não conseguiu reunir tantos adeptos quanto a causa pela libertação de homens e mulheres negros escravizados.
As diferentes crises com instituições e parcelas importantes da sociedade civil - como a Igreja Católica e os cafeicultores - deram força ao movimento. O fortalecimento do Exército após a Guerra do Paraguai - e a crescente insatisfação entre os oficiais com a Monarquia - também foram fundamentais para o início da República.
"Os militares começaram a República, com um golpe, por demandas corporativas. Eles queriam maiores soldos, reconhecimento público, mais legitimidade. Eram demandas corporativas perante a Monarquia", explica o professor do curso de História da Universidade Estadual do Ceará, Marcos Diniz.
"Foi uma revolução em que uma minoria de civis e militares surpreendeu a população. Não houve nem apoio político nem participação da população. Na legislatura de 1989 (por exemplo), não tínhamos nenhum deputado republicano", completa o Tenente-Brigadeiro do Ar, Francisco Joseli Parente Camelo.
Ministro do Superior Tribunal Militar, ele considera que "os militares foram arrastados para a política" nesse período. Como exemplo, ele destaca a eleição de 54 militares para a Assembleia Nacional Constituinte de 1890, que elaboraria a primeira Constituição da República brasileira - e a segunda na história do País.
"República da Espada"
No período imperial, a Constituição determinava a proibição da participação na política interna - inclusive com prisão de oficiais que atacavam abertamente integrantes do governo. A mudança trazida pela República foi, então, significativa.
"Militares que nunca tiveram acesso a cargos importantes do governo, de repente tiveram a possibilidade até de ser presidente da República", completou o Tenente-Brigadeiro Francisco Joseli. Exemplo disso foram os governos dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto - período que ficou conhecido como República da Espada.
Para o professor Marcos Diniz, a partir daí, os modos de interação entre as Forças Armadas e a República brasileira vão sendo alterados. "Os militares se profissionalizaram, desenvolveram ideologias sobre a sociedade brasileira e, aos poucos, vão interferindo na política do País", detalha ele.
Como exemplos, ele cita o Movimento Tenentista, ocorrido na década de 1920 e liderado por militares de baixa e média patente, e o apoio oferecido pelas Forças Armadas à candidatura de Getúlio Vargas, na década de 1930, entre outros episódios da história brasileira.
O ápice dessa interferência foi o golpe militar de 1964, que depôs o então presidente João Goulart, o Jango, e instaurou o regime militar - que duraria até a década de 1980. Para Diniz, neste mais de um século de participação relevante de militares na política, um elemento continuou constante durante todo o período.
"Foi se fortalecendo uma espécie de tutela militar sobre a sociedade brasileira. Militares fazem uma leitura da participação política, muitas vezes conservadora ou até reacionária. (...) Esta tutela, às vezes explícita, às vezes implícita, continuou como uma ameaça permanente na sociedade".
Crescente presença militar
Levantamento realizado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCU) em 2020, contabilizou 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A presença militar neste governo é mais do que o dobro do que existia no governo de Michel Temer (MDB) - eram 2.795, na época. Um número que, por si só, não é o problema.
"O governo está permeado de militares é algo que não deve ser avaliado apenas no aspecto quantitativo", justifica o diretor-geral da Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará e doutorando em Políticas Públicas na Uece, Juarez Júnior.
Ele considera que elementos como a função que estes militares desempenham e se ainda estão vinculados a instituições também devem ser levados em conta. Do total de militares na gestão federal, quase metade deles - um total de 3.029 - ainda são oficiais da ativa das Forças Armadas.
"Não é uma boa prática. Não questionando a qualidade administrativa das pessoas que estão no governo, não é isso. Mas não deveria ser repetida em futuros governos essa prática de ter uma quantidade excessiva de militares ocupando funções de governo, com poder de decisão e ainda com vinculação às suas instituições".
Desvinculação das instituições
Para o Tenente-Brigadeiro Francisco Joseli, não há nada de errado em militares ocuparem postos no governo federal.
"Não vejo nada demais o presidente escolher um elemento que ele ache competente para exercer uma ou outra função. Todo cidadão brasileiro tem direito de ser. Naturalmente as escolhas são feitas em cima daquelas pessoas de confiança do presidente".
Sobre eventuais candidaturas de figuras ligadas às Forças Armadas, ele considera que "é a cidadania, o direito de votar e ser votado". "Mas quando vence a eleição, é afastado para não ter uma influência maior dentro das unidades, que não podem ser politizadas. Nós temos experiências no passado que não foram boas para o País", completa.
Segundo ele, a máxima entre o comando das Forças Armadas é a mesma: "o importante é que não se leve a política para os quartéis". "Se politizar, as Forças Armadas vão se deteriorar, porque a função das Forças Armadas é muito específica, temos que estar voltados para nossa atividade que é defender a pátria", afirma.
Marcos Diniz concorda com a premissa de que, a princípio, não há problema dessa participação dos militares na política. "Militares participando da política não são um problema em si. Tivemos, na história, muitos que participaram", lembra.
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O período do regime militar, no entanto, mudou a percepção sobre a atuação deles na política e no governo brasileiro. "Foi uma experiência muito duradoura. A imagem dos militares ficou desgastada e antipática perante a sociedade, porque foi um período violento", explica. "A entrada de militares em massa, apoiando um presidente e sendo empregado em massa por eles em cargos comissionados gera uma desconfiança".
A presença relevante principalmente na "corrente político-partidária" também traz riscos, considera Juarez Júnior. “Não está aqui se questionando se tem competência para governar ou se não tem. A questão é de ter, à frente do governo, do Poder maior de um Estado Democrátido de Direito, alguém com o poder das armas. Isso pode ser prejudicial, porque em algum momento essa noção pode se sobrepor a qualquer contorno de democracia”, afirma.