Com 190 mil alunos fora de faixa, Ceará tem 15% dos estudantes em séries atrasadas

Turmas na transição entre os ensinos fundamental e médio são as que concentram mais alunos nessa situação

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Ceará tem mais de 190 mil alunos com estudos atrasados
Legenda: Anos finais do ensino fundamental e o ensino médio são períodos com mais estudantes atrasados, em distorção idade-série
Foto: José Leomar

Mariana* cursava o 1º ano do ensino médio, aos 15 anos, quando “as contas apertaram” na casa que divide com a mãe e dois irmãos pequenos, na periferia de Fortaleza. A rotina de estudos matinal passou, então, a ser noturna. “De dia, precisava trabalhar.” Depois, conciliar ficou impossível. “Aí reprovei.”

Aos 16, quando muitos estudantes concluem o ensino básico, ela reiniciou o médio, “com muito esforço e insistência da mãe pra não desistir” – mas já sendo uma dos 190.796 estudantes cearenses que estavam atrasados nos estudos, em 2020, conforme o Censo Escolar.

O número corresponde a cerca de 15% de todos os matriculados nas redes municipais e estadual de ensino.

Veja também

O número inclui os alunos das redes municipal e estadual do Ceará que estão em distorção idade-série, ou seja, deveriam, pela faixa etária, estar num patamar mais avançado de aprendizado.

Entre os cearenses, o problema atravessa todos os níveis, mas se concentra num período: a transição entre os ensinos fundamental e médio.

A psicopedagoga Ticiana Santiago, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), explica que a passagem dos anos finais do ensino fundamental para o médio deixa clara a influência direta que os fatores sociais e emocionais têm no processo de educação.

É nesse período que a adolescência começa a dar espaço à vida adulta, os estudantes são demandados a trabalhar e enfrentam mais conflitos sociais, sejam relacionados a si, sejam ligados ao convívio familiar.

O papel social começa a ser mais exigido, assim como as funções cognitivas se tornam mais complexas. Nesse momento, o modelo tradicional de ensino não favorece, dificulta a vinculação do aluno com a escola.
Ticiana Santiago
Psicopedagoga

As dificuldades de aprendizagem e de permanência em sala de aula, então, se acumulam. “Fora isso, ainda há poucos psicólogos e psicopedagogos para identificar os desafios e atuar preventivamente para evitar a evasão”, lamenta Ticiana.

A especialista acrescenta, ainda, que fatores levam à distorção idade-série:

  • Qualidade da educação oferecida;
  • Representação que a escola tem para alunos e famílias;
  • Desigualdades psicossociais;
  • Metodologias não-participativas/atrativas;
  • Dificuldades de aprendizagem.

Meninos e alunos negros são os mais afetados

Além do recorte de gênero dos estudantes atrasados nos estudos (61% são meninos), há também o racial. Dos quase 191 mil alunos cearenses em distorção idade-série na rede pública em 2020, 130 mil são negros (pretos e pardos) e cerca de 21 mil são brancos.

A psicopedagoga Ticiana Santiago destaca que isso perpassa questões de acesso a políticas públicas como um todo, e não apenas as de educação – visto que, no Brasil, a população mais vulnerável socioeconomicamente tem cor e raça definidas.

“Fatores como a qualidade de desenvolvimento oferecida a essas pessoas, no acesso à alimentação, moradia e segurança, interferem no aprendizado, que precisa de uma rede estruturada pra acontecer”, frisa.

A primeira grande questão é desmistificar a ideia de que o aluno negro ou com condições socioeconômicas piores não aprende. Eles aprendem, sim. Teorias que tentavam provar isso caíram por terra.
Ticiana Santiago
Psicopedagoga

O que falta, portanto, é “pensar a educação com esses marcadores interseccionais”. “Estudos mostram que alunos cotistas, por exemplo, têm desempenho igual ou maior quando são oferecidas as condições ideais pra isso. Enquanto essa dívida histórica não for sanada, as dificuldades vão acontecer”, avalia Ticiana.

O que é preciso fazer

Para a doutora em educação, algumas providências são fundamentais para melhorar o desenvolvimento dos estudantes cearenses e evitar atrasos e abandono dos estudos:

  • Fortalecer a rede de atendimento psicossocial nas escolas, para alunos e professores;
  • Investir na educação e na formação continuada de docentes; 
  • Estimular a participação da família;
  • Promover esporte, cultura e lazer integrados ao ambiente escolar.

“Temos que entender qual é a função social da escola, para além da instrução, e tê-la como figura-chave de referência no desenvolvimento do estudante e da sociedade”, destaca Ticiana.

Em nota, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) reforçou que é responsável pela oferta do ensino médio, e destacou estratégias cujo foco é reduzir a distorção idade-série:

  • Educação em tempo integral e profissional;
  • Desenvolvimento de competências socioemocionais e cognitivas;
  • Recomposição da aprendizagem no pós-pandemia de Covid-19;
  • Colaboração com os municípios no suporte ao Programa Aprendizagem na Idade Certa (Mais Paic), da Educação Infantil até o Ensino Fundamental, que são de responsabilidade das gestões municipais.

60%
da rede pública estadual oferta tempo integral, totalizando 392 escolas regulares e profissionais com essa modalidade. A universalização deve ocorrer até 2026.

A Pasta frisou ainda a queda histórica da distorção idade-série na rede pública de ensino. “Em 2006, no ensino médio, a distorção chegava a 50,5%; enquanto em 2021, era de 21%. Um decréscimo de quase 30 pontos percentuais”, pontua.

No Ensino Fundamental, também houve redução da quantidade de estudantes atrasados, conforme a Seduc: “em 2006, o índice era de 30,6%, enquanto em 2021, baixou para 9,4%, uma queda de 21,2 pontos percentuais nesse período”, informa.

Ainda sobre as ações executadas, a Seduc citou o projeto Professor Diretor de Turma, o Programa Busca Ativa Escolar e os Grupos de Apoio à Permanência Estudantil, além de medidas de estímulo à formação continuada de docentes.

*Nome da personagem Mariana é fictício, para preservar identidade da estudante.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.