Cearenses abrem as portas de suas casas de ferro para mostrar como é viver em contêineres
Em Fortaleza, um condomínio com quitinetes de 15m², 18m² e 30m² com isolamento térmico atraem curiosos. Para atender o cearense, foi instalado até armadores para redes de dormir
Tijolo e cimento alicerçam nossa relação com a moradia – seja casa ou apartamento –, mas caixas metálicas empilhadas também constroem lares para alguns fortalezenses e causam curiosidade por quem passa pela Rua Tenente Benévolo. Lá está o primeiro condomínio de contêineres da capital cearense.
Quem vê as estruturas montadas, e agora os convidados dos moradores, listam dúvidas sobre o calor, a estabilidade da estrutura e a divisão do espaço. Afinal, viver numa ‘casa de ferro’ no Ceará, conhecido por ter um Sol para cada cabeça, ainda é novidade.
Mas bastou conhecer o lugar para o psicanalista André Gomez, de 50 anos, garantir uma das 20 unidades do Residencial Gerardo Campos, inaugurado há 6 meses. São quitinetes de 15m², 18m² e 30m² com isolamento térmico e pintura para proteger o metal do Sol.
“As pessoas têm curiosidade, e eu mesmo pensei: ‘um contêiner em cima do outro, qual a estabilidade disso?’. Mas tem o próprio peso, os limites técnicos e também são fixados um no outro. As escadas estão numa estrutura bem sólida e você não sente nem balançar”, frisa.
São quase 3 meses vivendo no local, mas ainda há ajustes para fazer. André optou pelo tamanho menor e enxerga com uma nova lente os livros, roupas e objetos pessoais na busca de uma boa organização. Uma parte deles, já foi doada.
“Já morei em apartamento com dois quartos, na casa da minha mãe que tem quatro quartos e em quitinetes, em São Paulo e em Brasília. Também morei em um quarto alugado na Espanha. A questão, é adaptar os objetos ao espaço que se tem”
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André amontoa algumas telas pintadas por ele encostadas numa estante, porque o material que reveste as paredes não permite a fixação de itens pesados. Cabides e aparelhos eletrônicos mais leves são presos com auxílio de fita.
“Essa estrutura de PVC não suporta, por exemplo, um quadro. Mas já tem armadores, devido a nossa cultura do Ceará, para armar redes na estrutura do contêiner”, pondera.
O gosto pela cultura também influenciou a escolha do psicanalista pelo lugar perto de equipamentos como Estação da Artes e Dragão do Mar. Já o mar da Praia de Iracema, onde nada, faz parte da rotina de exercícios.
“Essa quitinete sai por R$ 650 e eu já cheguei a pagar R$ 600 no Benfica, a diferença não é muito grande. Eu vim em função da localização e a estética do contêiner me atraiu”, completa o morador.
Com o uso do espaço, André reparou na necessidade de fazer alguns ajustes em relação ao conforto térmico. Na unidade em que vive, e na que fica do lado, o sol incide de uma forma em que o calor aumenta.
“Tem problemas que vão surgindo, por ser algo novo, após a construção com os próprios moradores sentindo esses problemas. Eu sugeri colocar toldos laterais, porque só o isolamento térmico não é suficiente e o David (gestor) é muito receptivo, o que é muito bom”.
O calor não é uma questão para a aposentada Mara Brasil, de 79 anos. Pelo contrário. Se não estivesse dando entrevista para esta reportagem, no meio da manhã, poderia até tirar um cochilo, como admite.
“Aqui é tão ventilado, comprei um ventilador e nunca usei. Meu quarto é uma maravilha, se eu deitar agora eu durmo, e aqui não tem zuada de nada, nem de rádio e nem do trânsito, porque é bem reservado”, descreve sobre o novo lar desde que voltou a morar em Fortaleza.
O fato de ser contêiner não apresenta nenhuma diferença, não sinto, porque tem tudo que eu quero. Eu gosto de espaços pequenos, porque eu tenho um problema na coluna e não posso limpar apartamentos grandes
Formas de morar
Mara veio de Quixeramobim, no Sertão Central, há 7 décadas e passou por casas, apartamentos e quitinetes da cidade até decidir ir morar com o filho em Manaus em setembro de 2021. Quando completou exatamente um ano, voltou para o Ceará.
“Eu não paro, vivo de mudança, e por isso minhas coisas são todas novas. Quando eu fui para Manaus, vendi tudo. Gastei quase R$ 15 mil para mobiliar a quitinete, porque comprei da colher a televisão”, conta sobre o processo.
Mara é uma pessoa prática e organizada. No quitinete de 30 m², posiciona bem tudo que precisa. O quarto tem cama, guarda-roupa, TV, e uma poltrona onde faz suas rezas diárias. Na cozinha, os utilitários ficam distribuídos na bancada da pia e na estante fechada.
Ao lado da cozinha está um lugar especial: o quarto da filha, que deve chegar em maio.
“Minha filha mora em Portugal, está voltando pra cá, e disse que queria um apartamento com dois quartos. Quando cheguei em Fortaleza, fiquei na casa da minha irmã procurando, falaram para mim e eu fiquei apaixonada”, detalha.
Na parte central da casa, Mara tem acesso à área comum onde mantém o olhar sobre as plantas.
“Assim que eu cheguei, tinha aquela mesa e eu pensei ‘vou ficar é aqui mesmo’ já saí com o contrato na mão. Não sabia nem o que era contêiner e quando eu vim pra morar foi que disseram, porque tinha umas coisas que eu achava esquisitas” diz ao apontar para o PVC.
A localização também foi estratégica para Mara e a filha por estar perto de assistência médica, igrejas e da praia.
“Eu sou católica e aqui tem muitas missas, vou andando para a Igreja do Cristo Rei, tem a comunidade Shalom no seminário, que é só atravessar a rua. E aqui vai ser ótimo pra ela, porque adora praia”, conclui.
Uso de contêiner
Ainda não há levantamento sobre as construções feitas com contêiner no Ceará, mas empresas que atuam na área indicam a existência de lojas e outros pontos comerciais em Fortaleza. Também existe casa de praia no interior do Estado feita com o material.
Os contêineres são usados pela indústria de transporte e descartados após 15 anos devido às normas do setor. Para a transformação em moradia, os blocos são recuperados, recebem isolamento térmico e adaptação ao projeto com apoio de engenheiros e arquitetos.
A instalação acontece com apoio de guindaste e a vida útil da estrutura pode ser superior a 90 anos. Essa é alternativa de construção mais barata e rápida. O Residencial Gerardo Campos, por exemplo, ficou pronto em um ano e com cerca de 40% de redução dos custos.