Vilas antigas guardam passado de uma Fortaleza operária e mantêm convivência afetiva entre vizinhos

Pelo menos 15 conjuntos de casas já tinham moradores ainda na década de 1930; estruturas são testemunhas das transformações urbanas e sociais da Capital

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Vila Amarela
Legenda: Vila Amarela recebeu uma nova roupagem - azul - nos últimos anos
Foto: Kid Júnior

Imagine abrir a porta de casa e caminhar por Fortaleza há exatos 100 anos: gente vindo do interior em busca de trabalho e a modernização da cidade que, naquela época, deu início às primeiras construções de vilas de casas dos operários ligados ao algodão. De lá para cá, os imóveis deixaram de funcionar como controle dos funcionários e mantêm a convivência afetiva entre vizinhos.

Os lares, no entanto, perderam parte de suas estéticas centenárias e, alguns nem têm mais o aspecto de vilas. Um exemplo é a Vila São Diogo, no Centro, embora sendo uma das mais antigas da cidade, com 100 anos, tem grande parte das casas transformadas.

"Quando a cidade começou a crescer, foram desativados os muros e passaram a pista. Mudou muita coisa, os vizinhos foram se mudando", observa Zenúbia Ferreira, que mora no local o mesmo tempo que tem de vida: 72 anos.

Em Fortaleza, existem 3 vilas em processo de tombamento pela Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor):

  • Vila Filomeno (na Avenida Francisco Sá)
  • Vila de casas (sem identificação, na Rua 25 de Março)
  • Vila Vicentina (na Avenida Antônio Sales)

A Vila Diogo, do grupo Diogo Siqueira, era constituída por 66 casas. Em 1928, surgiu a Vila São José, do grupo Filomeno Gomes, no Jacarecanga, numa área mais afastada do perímetro urbano da época. As duas permanecem erguidas um século depois.

Os conjuntos de casas se expandiram com o incentivo fiscal oferecido pelos governos municipal e estadual, com legislação aprovada em 1925. Ou seja, os custos para a construção eram reduzidos para os proprietários. Em 1932, já existiam 15 vilas operárias de aluguel - com 293 casas - isentas de impostos em Fortaleza.

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Parte deste histórico está registrada no artigo “A Legislação no Campo da Habitação Popular em Fortaleza”, da professora Margarida Andrade, da Universidade Federal do Ceará (UFC), publicado no acervo da Prefeitura

Vilas surgiram ligadas ao trabalho

As vilas surgiram ligadas ao trabalho, principalmente, da indústria têxtil. Em 1945, oito conjuntos do tipo tinham espaço para abrigar 500 famílias na Capital.

O Estado começou a incentivar essas construções também porque, na época, acreditava-se que poderia evitar surtos de doenças, como a febre amarela, associadas às casas mais pobres, especificamente, de palha. 

“As duas primeiras vilas daqui (Diogo e São José) são da década de 1920, um momento em que Fortaleza estava se reestruturando na expansão e a habitação era importante para o empresário”, frisa a professora Margarida de Andrade.

Em 2001, como encontrou o Núcleo de Pesquisa do Diário do Nordeste, a Vila Diogo foi notícia pela permanência dos moradores. O quadrilátero mantinha um clima de cidade do interior, como descrito na reportagem da época.

Arquivo jornal
Legenda: Vila Diogo foi notícia pelo convívio dos moradores e resistência em meio às mudanças do Centro de Fortaleza
Foto: Diário do Nordeste

Isso porque, como explica a especialista, os proprietários conseguiam formar patrimônio com imóveis e ainda cobravam aluguel. Outra vantagem era controlar os horários dos funcionários.

Em uma das entrevistas para pesquisas acadêmicas sobre vilas operárias de Fortaleza, a professora Margarida ouviu da esposa de um mecânico: “ele estava sempre a postos, qualquer problema que acontecesse, ele tinha que ir resolver”.

Com uma convivência mais próxima, alguns funcionários começaram a se organizar por melhores condições de trabalho.

“Na Vila São José tem as casas e, no miolo, uns apartamentos que foram criados depois de 1945. Lá era onde os sindicatos começaram a se mobilizar”. As novas construções foram feitas, então, para desarticular o movimento trabalhista, como analisa a professora.

Fortaleza, além das moradias operárias, também abriga a Vila Vicentina, no Dionísio Torres, como uma das construções históricas tendo o surgimento ligado, na verdade, à Igreja Católica para ações filantrópicas.

O arquiteto Juan Marques, mestre com pesquisas sobre vilas operárias em Fortaleza, aponta a construção das moradias como um momento decisivo para a cidade. "Toda essa economia em torno do algodão deu início ao processo de modernização urbana", destaca.

Assim surgiram indústrias, os primeiros modais de transporte público, a implantação de iluminação pela cidade e muitas pessoas chegando em busca de oportunidades de trabalho.

Vila Diogo
Legenda: A Vila Diogo é a primeira vila de operários nos registros de Fortaleza
Foto: Thiago Gadelha

"Houve um inchaço populacional e surgiram muitas doenças. De certa forma, a moradia tornou-se um problema de saúde pública a ponto do Estado oferecer subsídios para os donos de fábricas que construíssem essas vilas operárias para os seus funcionários".

Mudanças de fora para dentro

Os meninos jogavam bola na rua, as famílias sentavam nas calçadas e às quartas-feiras tinha cinema de rua. “Zorro”, “O gordo e o magro” e “Pato Donald” estavam na programação há 60 anos, na infância de Zenúbia Ferreira, conhecida como dona Neném, moradora da Vila Diogo.

A vila, inclusive, foi o único lugar em que a aposentada, hoje com 72 anos, viveu até agora. "Meu pai trabalhava na Ceará Industrial, da família César Cals, que fez essas casas para os trabalhadores da fábrica", lembra.

Quando a família começou a crescer, a dona Neném e os irmãos começaram a comprar casas na Vila Diogo para permanecer. Os anos trouxeram mudanças na estrutura do local, como a retirada das divisórias da vila, e dos hábitos, como sentar na calçada.

Carros Vila Diogo
Legenda: Carros tomam de conta da rua que um dia já foi uma vila onde crianças brincavam livremente na rua
Foto: Thiago Gadelha

"Eram muitas crianças aqui e hoje dia não tem mais, são pessoas mais velhas. Antes, os meninos jogavam bola na rua, mas devido aos carros as crianças nem ficam aqui", observa. Com a família perto, por outro lado, ela consegue reviver os momentos de prosa na rua.

Do lado de fora, as transformações também atingiram as fachadas que foram remoldadas pelos proprietários. "Todas as casas eram iguais a essa daqui (aponta para o imóvel com o muro rosa), só que não tinha portão, era com meia porta, mas o pessoal foi se mudando".

Casa rosa
Legenda: Casas de vilas são alteradas por moradores e perdem identidade do surgimento das moradias
Foto: Kid Júnior

Esse movimento, inclusive, acontece nas demais vilas de Fortaleza, como analisa Juan. "Com o passar do tempo, os filhos podiam vender para outras pessoas e, aos poucos, essas vilas industriais passaram a não ser exclusivas de operários", destaca.

Essa descaracterização das estruturas, no entanto, ameaça o aspecto histórico. "As vilas são testemunhas físicas dos processos de transformação da dinâmica urbana de Fortaleza em decorrência, sobretudo, dos processos de industrialização", ressalta o arquiteto.

Casas diferenciadas para funcionários

Funcionários com cargos vistos com maior importância recebiam moradia com padrão arquitetônico mais alto. Uma dessas construções está na Vila Filomeno, no Jacarecanga, ao lado da Escola de Artes e Ofícios, na Avenida Francisco Sá.

Vila Filomeno
Legenda: Vila Filomeno possui estrutura com padrão diferenciado em relação às demais vilas operárias
Foto: Kid Júnior

Janelas amplas, sacadas bem desenhadas e jardins floridos do lado de fora. Dentro, pé direito alto, garagem com banheiro para visitas, dispensa e cômodos espaçosos - bem diferente da realidade das moradias cada vez mais apertadas.

“Eu fico aqui até quando puder, porque em apartamento - se você me der um de luxo - eu não quero. Não gosto (da ideia), parece uma prisão “, sentencia a aposentada Edna Fernandes, de 75 anos. A moradora já chegou a receber estudantes de arquitetura interessados na estrutura do local.

Janelas
Legenda: Edna gosta de reunir a família e amigos em casa para celebrar aniversários e datas comemorativas em grande estilo
Foto: Kid Júnior

Já são cerca de 50 anos no local e tanto tempo perto das mesmas pessoas gera intimidade. “Essa daí é uma irmã, aquele senhor ali é uma pessoa fora de série”, define enquanto aponta para os vizinhos.

“Aqui a vizinha me chama pra dar uma coisa, eu dou outra pra ela, se eu precisar de algo, como aconteceu essa semana, ela estava prontamente (para ajudar). Tem um rapaz, que se eu precisar para fazer algo, ele está aqui de imediato”, finaliza.

A morada abriga também memórias da família e de si. “Na minha casa tinham muitas festas, foram natais, a festa de 90 anos da minha mãe, com mais de 100 pessoas, fiz meus 75 anos”, exemplifica.

paredes
Legenda: Memórias estão estampadas nas paredes da casa de Edna
Foto: Kid Júnior

As vilas, portanto, facilitam os vínculos tanto com o espaço urbano quanto com as relações sociais com os vizinhos, como reflete Juan.

A história dessas vilas acaba se confundindo com a dos seus moradores e, por consequência, a da cidade. Contar a história dessas casas e preservá-las é uma forma de preservar a história de Fortaleza
Juan Marques
Arquiteto e urbanista

O que define uma vila ?  

Normalmente são construções térreas, de muro baixo, lado a lado e que normalmente tem o mesmo padrão construtivo - com janelas e portas para a rua -, como explica Juan Marques.

"As casas têm, a cada dia, o muro mais alto, os condomínios são mais blindados - com câmera de segurança a cerca elétrica - e é uma outra realidade para quem vive nessas vilas. É como se a rua fosse uma extensão do espaço residencial", completa.

Com o diálogo entre vizinhos e pessoas varrendo a frente de casa, essa é a realidade do conjunto conhecido como Vila Amarela, mesmo ganhando uma tintura azul nos últimos anos, no Henrique Jorge. A fachada preservada tem referências do estilo arquitetônico art decó.

Foto mostra moradora de vila
Legenda: Dona Celma mora há 18 anos e é conhecida por todos os moradores da vila
Foto: Kid Júnior

“Quando eu vim para essa casa, meus filhos tinham entre 5 e 10 anos, e aqui tivemos uma convivência e até hoje estou aqui. Toda vez que eu digo que vou sair, nunca saio”, conta a pensionista Celma Maria de Souza, de 53 anos.

São 18 anos vivendo no local e sempre que alguém passa interessado em alugar uma casa no local recorre às informações dela. “Antigamente tinha vizinhos muito bons, mas foram mudando e hoje cada um fica na sua casa e saem para o trabalho”, observa as mudanças.

Vila Amarela
Legenda: Vila Amarela recebeu uma nova roupagem - azul - nos últimos anos
Foto: Kid Júnior

As reuniões de família, com churrascos e conversas, são memórias do local onde a mulher viu a própria vida mudar nos últimos anos com a perda do marido, por exemplo.

“Eu tenho memórias de natais e reveillons, dos meus filhos e de amizades, porque minha casa vivia cheia de gente aos finais de semana. Hoje, devido à Covid, não dá mais e as coisas estão diferentes”, analisa.

Algumas vilas históricas de Fortaleza ainda de pé:

  • Vila Diogo (Centro)

Vila Diogo
Legenda: Vila Diogo dá clima residencial ao Centro de Fortaleza
Foto: Thiago Gadelha

  • Vila São José (Jacarecanga)

Vila São José
Legenda: Vila São José foi construída numa área mais afastadas dos serviços urbanos da época
Foto: Thiago Gadelha

  • Vila Azul (Centro)

Vila Azul
Legenda: Vila Azul foi descaracterizada com o passar dos anos perdendo a padronização
Foto: Thiago Gadelha

  • Vila Vicentina (Dionísio Torres)

Vila Vicentina
Legenda: Vila Vicentina é uma das poucas vilas históricas que não tem origem operária, mas sim ligada à Igreja Católica
Foto: Thiago Gadelha

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