Prédios que não existem mais? Castelo e palacete dão lugar a praça e faculdade em Fortaleza

Demolição da cultura edificada traz prejuízos à memória coletiva de eventos históricos e transformações sociais vivenciadas no Ceará

Parte da história da capital cearense está em escombros enterrados e já não pode ser mais tocada devido à destruição de prédios que marcaram a formação de Fortaleza. Veio abaixo, dessa maneira, um castelo imponente onde foi construído um mercantil, uma cafeteria que foi berço da Padaria Espiritual, e um palacete que hospedou Getúlio Vargas.

Os prédios de relevância numa Fortaleza deixada para trás são o Castelo do Plácido de Carvalho, o Café Java e o Palacete do João Gentil. Cada uma dessas edificações guardava um aspecto histórico da Capital e são relembradas nesta reportagem.

Ao frequentar esses espaços no presente, você encontra a Praça Luiza Távora, os quiosques da Praça do Ferreira e o Centro de Humanidades III, da Universidade Federal do Ceará (UFC).

E a destruição do patrimônio cultural edificado traz um prejuízo para a memória coletiva, seja em Fortaleza ou nas outras cidades brasileiras, como avalia Solange Schramm, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC.

“As edificações ou conjuntos de edificações que guardam valores artísticos, históricos, afetivos, de relevante valor simbólico para uma comunidade são elementos indissociáveis da memória coletiva. São, portanto, construtores da cidadania”, define a especialista.

Isso acaba por afastar os moradores da capital cearense de eventos relevantes para a formação da cidade e das transformações sociais vivenciadas em Fortaleza. No Café Java, por exemplo, nomes importantes da cultura revolucionaram o pensamento artístico.

O Palacete do João Gentil, para completar, hospedou uma das figuras políticas mais importantes do País: Getúlio Vargas.

“Nas últimas décadas, tem sido ampliado o interesse pelo assunto, ainda que nem sempre corresponda a medidas efetivas para a justa proteção desses bens”, pondera Solange Schramm.

Isso acontece num contexto em que há ausência de ações de educação patrimonial e falta de conhecimento do acervo de bens de valor cultural, como analisa.

“O patrimônio existente em cada bairro poderia ser um campo de estudo desde a idade mais tenra da educação formal, no início do ensino fundamental, por exemplo”, acrescenta.

Diante da destruição desses prédios históricos, o Diário do Nordeste traz um resgate histórico do Castelo do Plácido de Carvalho, do Café Java e do Palacete do João Gentil.

Castelo do Plácido de Carvalho

Já pensou ver um castelo europeu no seu deslocamento cotidiano por Fortaleza? Isso era possível na Avenida Santos Dumont, até a década de 1970, quando o Castelo Plácido de Carvalho desenhava a cidade com a mesma planta de uma construção em Florença, na Itália.

As paredes e torres imponentes foram abaixo para dar lugar a uma estrutura muito menos interessante: um supermercado. No final das contas, no terreno foi construída a Praça Luiza Távora, mas antes de entender o fim do castelo, vale voltar para a década de 1920, quando a obra ficou pronta após um pedido romântico.

A elegante moradia foi erguida para abrigar o casal formado pelo empresário cearense Plácido de Carvalho e a italiana Maria Pierina Tacconi Rossi.

Os dois se conheceram numa das viagens internacionais que Plácido fazia constantemente e ele pediu a mão de Pierina em casamento. Na época, ela avisou que só se casaria se fosse construído um castelo.

Pedido aceito, o projeto foi elaborado pelo artista plástico e engenheiro João Sabóia Barbosa. Pierina veio para Fortaleza, aos 28 anos, para viver com o marido no palácio em 1917 e permaneceram lá até 1933.

Naquele ano, Plácido adoeceu e a família foi viver no Hotel Excelsior – também propriedade do empresário –, no Centro, mais próximo do atendimento médico.

Plácido morreu no ano seguinte e Pierina em 1957. A filha do casal, chamada Zaíra, vendeu o castelo para o grupo Romcy interessado em construir um supermercado.

A estrutura foi cercada por tatames e derrubada em meio às críticas negativas da população e da imprensa da época. Devido a uma dívida empresarial, o terreno foi transferido para o Governo do Estado.

A primeira dama da época, Luiza Távora, mandou construir uma edificação para abrigar os artesãos em plena produção. Em março de 1992, o local passou a ser chamado oficialmente de Central de Artesanato do Ceará (Ceart).

Café Java

Há 135 anos, no dia 23 de junho, o Café Java abria as portas numa estrutura de dois andares com detalhes em madeira e forte presença de intelectuais, na Praça do Ferreira. Ali, inclusive, nasceu a Padaria Espiritual – movimento cultural e político cearense.

O fundador do café foi o aracatiense Manuel Pereira dos Santos, conhecido como Mané Coco, que ocupou o canto nordeste da praça. Naquela época, o Café Java ficava de frente para o edifício Rôtisserie Sportman, onde atualmente fica a Caixa Econômica Federal.

“Era naquele local que reinava a boemia literária, que fez furor e caiu no gosto do público, e de que nasceu a famigerada Padaria Espiritual, marcando uma das épocas mais curiosas da história do Ceará”, detalha o jornalista Raimundo de Menezes no livro “Coisas Que o Tempo Levou”.

Cenário das reuniões dos intelectuais, Mané Coco recebia o grupo com “acolhida carinhosa e franca”. A Padaria Espiritual foi idealizada por nomes como Sabino Batista, Álvaro Martins, Temístocles Machado, Tibúrcio de Freitas e Antônio Sales.

“E quando a Padaria andava em franca prosperidade, Mané Coco jamais esqueceu de festejar o aniversário de um padeiro - conforme o depoimento de Antônio Sales, - embandeirava em arco o Café Java, iluminava-o à noite, fazia uma enorme jarra de aluá, para dar de graça aos fregueses”, contextualiza Raimundo de Menezes.

Além disso, Manuel produzia um balão com 10 metros de comprimento com um letreiro “Padaria Espiritual”. “Quando se escrever a história do Ceará literário, o nome do Mané Coco não poderá ser olvidado, como Mecenas daquele pugilo de moços que teve a sua época, dentro da pasmaceira sonolenta da Fortaleza daqueles tempos”, completa.

Mas, até aquele momento, a Praça do Ferreira era como um grande campo de areia e o Café Java era apenas um dos quiosques espalhados nas pontas, como registra o historiador e jornalista Nirez de Azevedo.

Na primeira gestão do prefeito Godofredo Maciel, em 1920, foram derrubados os quiosques e o Jardim 7 de Setembro, além da retirada da caixa d’água e do catavento, que ficavam na Praça do Ferreira, para o Parque da Liberdade. Na atualidade, estão dispostos quiosques e bancos no local.

Palacete do João Gentil

Num passeio por Fortaleza, em 1933, a Avenida da Universidade ainda se chamava Boulevard Visconde de Cauhype e aquela região do Benfica tinha muito mais árvores do que casas, mas uma delas chamava atenção: o Palacete Gentil.

A residência ampla e com detalhes arquitetônicos caprichosos pertencia ao banqueiro João Gentil e recebeu o presidente da República Getúlio Vargas como hóspede, em setembro daquele ano, como também registra Nirez.

Anos depois, a casa foi alugada para sediar a Escola Doméstica de Fortaleza e depois o Ginásio Americano, em 1942. O local foi transformado no Ginásio Americano e passou a ser propriedade das Filhas do Coração Imaculado de Maria, em 1950.

O destino final da estrutura veio com a morte do antigo proprietário do prédio, João Gentil, em 1958. O Palacete Gentil foi adquirido pela UFC e destruído para construção de salas administrativas. Hoje o espaço faz parte do Centro de Humanidades III onde são lecionadas aulas, por exemplo, de sociologia.

Prédios destruídos não são exceção 

A professora Solange Schramm contextualiza que a demolição de prédios de relevância histórica acumulam exemplos. Um destes, no período mais recente, é a Casa da Família Gondim, no Centro da cidade, que estava em processo de tombamento, mas foi destruída.

“A esse expressivo imóvel, herança do Ecletismo arquitetônico do final do século XIX e início do século XX, somam-se, do mesmo período, a destruição da chácara Flora, situada na Rua Marechal Deodoro e, mais recentemente, o Centro Artístico Cearense, no cruzamento das Avenidas Tristão Gonçalves e Duque de Caxias”, destaca.

O Esplanada Hotel, na Beira-Mar, entra para a lista dos imóveis que guardavam aspectos históricos e detalhes arquitetônicos importantes, mas sumiram da paisagem. O terreno deve abrigar um prédio residencial de luxo.

Muitos imóveis da modernidade arquitetônica na cidade de Fortaleza têm sido descurados, apesar do esforço de professores e pesquisadores que têm se dedicado a estudar a relevância desse patrimônio de décadas mais recentes, construídos, sobretudo, após a implantação do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC
Solange Schramm
Professora de arquitetura

Nesse sentido, Solange destaca a atuação dos arquitetos Francisco Sales Veloso, o Chico Veloso, que sempre trabalhou na área da preservação do patrimônio, e José Liberal de Castro, que "dedicou sua vida ao estudo da arquitetura antiga do Ceará". Ambos faleceram esse ano.

“O mestre nos ensinou o valor daquelas arquiteturas, em décadas de docência, pesquisas, em textos primorosos, contribuição fundamental para o entendimento da preservação do patrimônio cultural edificado”, homenageia.