Sair do armário: como a ficção retrata o tema e de que forma essa escolha afeta a vida real

Produções como a série “Heartstopper” e o recém-lançado “Vermelho, branco e sangue azul” apostam no assunto e conquistam diferentes públicos; psicólogo reflete sobre o processo de afirmação

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Na série "Heartstopper", da Netflix, o arco de um dos protagonistas é assumir a bissexualidade
Foto: Divulgação

Deveria ser fácil, mas quase nunca é. Entender os próprios desejos, externá-los para o mundo, iniciar um relacionamento e se sentir confortável nessa situação ainda é bastante desafiador para a comunidade LGBTQIAPN+. Felizmente, sobretudo nos últimos anos, a ficção tem se apropriado do tema e discutido a complexa “saída do armário”.

A segunda temporada da série “Heartstopper” e o filme “Vermelho, branco e sangue azul” são exemplos fresquinhos de produções que abraçam a possibilidade de ser quem se é e amar do jeito que for. A primeira, da Netflix, foi lançada em 3 de agosto; a última entrou há pouco no catálogo do Prime Video. Bem avaliadas, estão conquistando o público.

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“Heartstopper” aprofunda o olhar sobre todos os personagens, sobretudo Nick Nelson (Kit Connor). O rapaz, agora namorado de Charlie (Joe Locke), tenta de todas as formas se assumir para os amigos e a família, protagonizando cenas nas quais a dúvida e a angústia caminham lado a lado, embora com doses de acolhimento.

“Vermelho, branco e sangue azul”, por sua vez, faz bom uso dos clichês da comédia romântica para contar a história de amor entre um príncipe britânico e o filho da presidente dos Estados Unidos. Na trama, o também jovem casal precisa lidar com o peso da política e da tradição, além da vontade de não esconder do mundo a atração que sentem um pelo outro.

“Vemos esse assunto sendo tratado especialmente na juventude por esse período ser de crescimento, descobrimento e auto afirmação na vida de todos nós”, analisa Francisco Ilo, psicólogo clínico e terapeuta sexual. “Mas de forma alguma existe tempo certo para sair do armário. Pode acontecer na juventude, quando você é adulto ou mesmo na maturidade”.

Apesar disso, segundo ele, pode acontecer de a identidade sexual ser reconhecida pela pessoa ainda jovem, mas permanecer negada ou suprimida por anos – chegando até a nunca ser afirmada. Aqui cabe uma ressalva importante: independentemente da idade ou de qualquer outra característica, no momento em que uma pessoa diz “sou bissexual, lésbica, gay etc.” ela não se “tornou” ou “virou” alguém assim. Ela se reconheceu

“Isso quer dizer que há um processo interno que busca responder à pergunta que todos nós, seja qual for nossa identidade sexual, fazemos: ‘Quem sou eu?’. Passamos longos períodos nos perguntando isso e a própria resposta também é longa: eu sou eu, com este nome, feito dos lugares onde cresci, as escolhas que fiz, as pessoas com quem estive, por quem me interesso sexualmente, meus planos, minha capacidade de mudar, entre outras”.

Não existe passo a passo

Dado o profundo contexto da subjetividade humana, é fácil concluir que não existe passo a passo para sair do armário – embora haja alguns pontos que merecem atenção. Esse é um processo tão individual quanto a história de cada um, mas a reação das pessoas ao redor costuma ser a principal preocupação. 

De que forma vão encarar isso? Os amigos vão se afastar? A família vai punir? Tenho independência financeira e segurança alimentar para lidar com uma possível expulsão de casa? Conheço alguma ONG de apoio e moradia, caso precise? A escola ou o trabalho vão lidar bem? Perderei o emprego? Serei tratado de forma diferente nos ambientes? São questões, segundo Francisco Ilo, possíveis de passar pela cabeça de quem está nessa situação.

“Alguns, ao se fazerem essas perguntas, percebem que provavelmente vão sofrer muitas perdas e violências, então preferem esperar por um período ou estar em um lugar mais seguro para se afirmar. Outros preferem fazer logo, mesmo com todos os desafios. Não acho que uma escolha seja melhor que a outra. É preciso ser pragmático e analisar cada caso de acordo com os valores, desejos e a vida de cada um”.

Uma concepção bem aceita – encarando-a de forma flexível – para o processo de afirmação da identidade sexual é a desenvolvida pela psicóloga Vivienne Cass. Para ela, essa dinâmica tem estágios, que podem ou não se sobrepor e se repetir. 

Em geral, as pessoas passam por estágios de: 

  • Confusão: nota interesses diferentes, mas ainda se identifica como heterossexual;
  • Comparação: considera a possibilidade de não ser hétero, mas não se define com nada que afirme identidade;
  • Tolerância: começa a se identificar, mas tem dificuldade em se aproximar das práticas culturais da identidade;
  • Aceitação: sente-se identificado, vive práticas culturais dessa identificação na própria vida e reconhece problemas sociais do preconceito;
  • Orgulho: identifica-se totalmente com a identidade e demarca bem as diferenças, mas também pode adotar posturas de rivalidade contra a heterossexualidade;
  • Síntese: integra a identidade sexual em todas as áreas da vida, convive bem com pessoas hétero sem se sentir necessariamente ameaçado por elas, apesar de ainda reconhecer o preconceito social e a necessidade de lutar contra ele

Passar por esses estágios leva tempo e é um processo cíclico de descoberta e reconhecimento que não deve nunca ser apressado por ninguém. “Tirar alguém do armário sem que a pessoa esteja pronta, na esperança de que seja livre e feliz, pode ser muito prejudicial. Você provavelmente a estará deixando exposta e despreparada para enfrentar uma série de mudanças complexas que podem acontecer na vida dela a partir disso”, sustenta Ilo.

E se o desejo for reprimido?

Por outro lado, quem não afirma a identidade sexual fica em um estágio chamado de Tolerância da Identidade Sexual: geralmente aceita a própria orientação, mas reprime o comportamento sexual. Ou aceita o comportamento sexual, mas reprime a identidade. 

Assim, pode se relacionar com pessoas do sexo oposto, mas manter relacionamentos LGBTQIAPN+ em segredo sem se reconhecer bissexual, por exemplo. Ou chegar até mesmo a não se relacionar, apesar de se reconhecer LGBTQIAPN+. 

“O uso de pornografia como forma de dar vazão a esse sentimentos também pode acontecer. Em geral, há um sofrimento extremo diante da abdicação dessa parte da vida, e a isso a pessoa tentará dar um sentido”, explica Ilo.

É questão de escolha

Por isso a importância de uma pessoa LGBT sair do armário? Ou, no fim das contas, é realmente necessário ela fazer isso? Será que pode expressar livremente os próprios desejos sem necessariamente se assumir para os outros, preservando a esfera privada?

Na visão do psicólogo, essa diferença entre público e privado é fantasiosa. Sinais de carinho, companheirismo e afeto em público são vistos no mundo todo entre pessoas que se relacionam. Tais comportamentos são expressões públicas associadas ao relacionamento das pessoas que, teoricamente, são da esfera do privado. 

Legenda: O filho da presidente dos Estados Unidos e o príncipe britânico se apaixonam em "Vermelho, branco e sangue azul"
Foto: Divulgação

“Não há motivos para que pessoas LGBTQIAPN+ não demonstrem carinho em público senão em razão do preconceito. Se você definir sair do armário como ter uma conversa com as pessoas sobre sua identidade sexual, serei pragmático e direi que não é realmente necessário”, defende, por um lado, o estudioso. 

“Mas se você sente que é importante para você – ou que facilitaria todo o processo –, é um sinal que você devia fazer. Para algumas pessoas, sobretudo aquelas com famílias acolhedoras e/ou segurança financeira e alimentar, assumir-se pode acontecer ao responder a uma pergunta feita no almoço de domingo sobre uma pessoa com quem foi visto(a)”.

No fundo, todos queremos viver nossas vidas da forma mais livre e plena possível. Se “sair do armário” é um caminho para isso, por que não fazê-lo nos seus próprios termos?

Como a arte espelha o tema

No momento, Ilo está na metade da segunda temporada de “Heartstopper” e já assistiu ao filme “Vermelho, branco e sangue azul”. Ele observa que as produções são feitas com muita responsabilidade e cuidado, e acredita que estamos ganhando com elas, ao mesmo tempo em que revelam uma perda. 

Existem obras mais antigas e renomadas – a exemplo dos filmes “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005) e “Carol” (2015) – que abordam a temática do amor LGBTQIA+, mas tiveram pouca visibilidade, sofreram preconceito e, geralmente, tinham desfechos esmagadores. Serviam de denúncia e visibilidade, porém deixavam um vazio sobre os retratos dos amores possíveis: os que sobrevivem (às vezes literalmente) ao preconceito. 

“Acho que produções como ‘Heartstopper’ e ‘Vermelho, branco e sangue azul’ retratam esses amores, ao mesmo tempo em que nos permitem sonhar com um mundo onde esses amores não sofram tanto preconceito. A meu ver, elas retratam muito bem todo o processo interno que afirmar uma identidade sexual toma, e como isso impacta o mundo à nossa volta”.

Legenda: "Carol", de 2015, traz uma relação entre mulheres no contexto dos anos 1950
Foto: Divulgação

Embora diversas, a falta que elas revelam é de outras tramas parecidas sobre mulheres bi e lésbicas e pessoas trans que, apesar de retratadas em “Heartstopper”, também mereciam maior desenvolvimento e visibilidade.   

“Temos responsabilidade sobre nossa existência. Isso às vezes é um peso, às vezes é libertador. Diante da perspectiva da nossa existência finita, geralmente nos perguntamos se vivemos nossa vida como realmente queríamos viver. Não é uma pergunta sobre viajar ou não, ter ou não ter tal coisa, mas sobre como nos relacionamos, como impactamos as pessoas e como elas nos impactaram, sobre o que deixamos como marca”, diz Ilo.

“Sair do armário ou se assumir, geralmente é um caminho para um fim. O que se quer ao se assumir é poder construir uma vida em que aqueles que estão ao seu redor saibam quem você é de verdade. E a sexualidade é uma parte da existência humana. Ao falarmos sobre nós, ou nos afirmarmos, criamos comunidade, trocamos experiência, nos desenvolvemos enquanto pessoa. Acredite: isso não é diferente para uma pessoa heterossexual. Ela só não precisa se assumir e, espero, um dia também não será preciso para ninguém”.

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