Quando os filhos viram pais dos pais: ‘Não precisam ser vistos como um fardo’

Documentário cearense “Tereza e Bruno” aborda a inversão de papéis vivida por um jornalista e a mãe

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Dirigido e roteirizado por Rosana Gurgel, curta “Tereza e Bruno” quer alargar olhar sobre um cotidiano de superações diárias
Foto: Arquivo pessoal

Todo mundo sabe ser filho. Tornar-se pai ou mãe é outro procedimento – sobretudo quando a vida nos impõe. Aconteceu com o Bruno de Castro há cinco anos. A mãe do jornalista cearense, Tereza de Castro Brito – dona Terezinha, como é conhecida – foi acometida de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) em setembro de 2017. Desde a época, passou a ser filha do próprio filho. E a realidade tão desafiadora quer ser conhecida por mais gente.

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“Tereza e Bruno” chega com essa proposta, alargando o olhar sobre um cotidiano de superações diárias. Dirigido e roteirizado por Rosana Gurgel, o documentário em curta-metragem mergulha na rotina específica de mãe e filho, mas pretende ir além, sendo o retrato de tantas outras famílias sob o mesmo panorama. “Estamos num país que está envelhecendo, mas não discutimos como isso impacta na nossa vida”, analisa Bruno.

Segundo ele, há dois cenários possíveis de entendimento quando falamos em acompanhamento de idosos enfermos: aquele praticado por cuidadores profissionais; e os vivenciados por parentes que se tornam cuidadores. Nesta última modalidade, entra em cena o espanto. Basta um acontecimento para a rotina mudar completamente e pegar as pessoas de surpresa – muitas delas sem preparo algum para o que vem. Foi o caso de Bruno.

Legenda: Basta um acontecimento para a rotina mudar completamente e pegar as pessoas de surpresa – muitas delas sem preparo algum para o que vem; foi o caso de Bruno
Foto: Arquivo pessoal

“Eu não fazia ideia do que era administrar uma medicação por sonda, trocar uma fralda, usar pomada para assadura, mudá-la de posição de três em três horas... Nada disso eu sabia porque nunca tinha lidado com uma pessoa na situação como ela se apresentou. Isso faz com que a vida da gente dê uma cambalhota, vire de cabeça pra baixo”. Tem também o turbilhão emocional, capaz de paralisar e entristecer, haja vista a cruel situação de quem se ama.

No caso de “Tereza e Bruno”, esses detalhes se unem ao processo de inversão de papéis, de como um filho pode se tornar pai da mãe. Para isso, o documentário mergulha na própria perspectiva de Bruno a partir do que ele escreveu sobre o tema. As impressões estão registradas no belíssimo “E, no princípio, ela veio: Crônicas de memória e amor” (Moinhos, 2020), obra finalista do prêmio Jabuti. 

Dividido em três partes, somente na última seção do livro é apresentada a relação da dupla após o AVC de dona Terezinha. O curta abraça esse recorte.

“É uma realidade geralmente invisibilizada porque, na família, as pessoas não falam sobre isso. Muitas vezes, um joga a responsabilidade pro outro, ninguém quer assumir o caso porque sabe do impacto. Também é uma questão romantizada, e não tem nada de romântico nisso. É uma rotina extremamente dolorosa – física, mental e emocionalmente – e a gente precisa discutir mais essas questões”.

Falar da dor

A arte tem cumprido um importante papel nesse cenário. Além de “E, no princípio, ela veio” e o próprio “Tereza e Bruno” – com lançamento no Ceará no dia 15 de novembro, no Cineteatro São Luiz – outros materiais encaram o assunto de frente. 

No mesmo léxico dos projetos já mencionados, ainda há uma pintura de dona Terezinha feita pelo artista cearense Cacá, em tinta e papel; e a menção deles dois, Bruno e Tereza, na peça “Avoa Acauã, Avia Maria”, dirigido por Tiago Duarte. 

Estendendo o território, outra contribuição singular nesse movimento de pensar a temática é o livro “Lili: Novela de um luto”, da escritora paulistana Noemi Jaffe. Publicado no ano passado pela Companhia das Letras, trata-se de um cortante relato sobre a partida da mãe da autora, com especial ênfase no que fica após a pessoa amada ir embora. 

Lili faleceu aos 93 anos em fevereiro de 2020. Era sobrevivente do holocausto, mãe de três filhas e viúva. A doença vivenciada por ela vinha se estendendo há tempos, e Noemi deixa claro que isso não faz com que a dor da partida seja menor. “Uma pessoa pode ser só o calor da mão. Isso basta para que uma mãe seja uma mãe e para que eu seja sua filha”, narra.

Ao longo do livro, além de tratar o processo final da vida da mãe, ela também se coloca como cuidadora, mensurando todos os aspectos desse horizonte. “Tudo nela emanava um amor infantil, que acariciava com o olhar. Era como ser olhada por um filhote cervo, ser abraçada por um leão, ser beijada por um amante que recebe a amada. A mão grossa e quente apertava o meu tronco e as minhas mãos. Falávamos pouco. Ela adormecia e muitas vezes eu dormi no seu ombro, ouvindo a respiração lenta, me sentindo aconchegada. Ela era mãe”.

Legenda: Terezinha sempre foi alegria e deslumbramento pela existência; convém que todos ao redor também alimentem a esperança de dias melhores para ela
Foto: Arquivo pessoal

Bruno corrobora essa visão, inclusive sublinhando que o documentário capta a mesma essência. “Ele mostra isso, o impacto que foi na nossa vida, como a gente precisou se reinventar, como tudo mudou, e como ela ainda é muito importante para a gente. Mesmo com todas as limitações, ela ainda nos ensina muito”.

Ensina sobretudo a reposicionar o sentimento. Apesar da realidade difícil, cabe não se deixar levar pela tristeza. Terezinha sempre foi alegria e deslumbramento pela existência. Convém que todos ao redor também alimentem a esperança de dias melhores para ela e para tantos na mesma condição.

Atenção ao AVC

Nesse sentido, “Tereza e Bruno” igualmente surge como oportunidade para deixar o público mais informado sobre o AVC. A emergência médica mata uma pessoa a cada cinco minutos no Brasil e deixa pelo menos 300 mil pessoas no país por ano com sequelas temporárias ou definitivas. Isso faz da realidade da dupla algo comum a muitos lares. Tema, portanto, urgente a ser pautado, bem como a responsabilidade afetiva de filhos com mães e pais diante do acontecimento.

“O curta vem na perspectiva de mostrar que é possível termos pessoas idosas ou acamadas nas nossas vidas e nossas vidas continuarem. Elas não precisam ser vistas como um fardo – muito embora essa nova condição traga um impacto para a nossa rotina. Com isso, não estou romantizando, definitivamente – até porque o documentário não romantiza. Ele se propõe a debater como é cansativo esse processo, mas também como ele pode ser edificante, de você escolher que não seja uma coisa dolorosa. Eu escolhi enxergar na minha mãe, na nova condição dela, uma possibilidade de enxergar um outro mundo, outras relações”.

Legenda: "Mesmo com todas as limitações, ela ainda nos ensina muito no dia a dia”, conta Bruno de Castro sobre dona Terezinha
Foto: Arquivo pessoal

Decerto Bruno sente saudades da outrora dona Terezinha – gente de prosa fácil e cantoria onipresente. Da voz dela. Da possibilidade de falar e conseguir falar, de andar e conseguir andar. Viver. Maior que tudo isso, porém, é a vontade de vê-la bem, com a dignidade de quem ama a vida. 

“A gente tenta praticar o respeito todo dia, tenta dar a ela o máximo de autonomia dentro dessa condição. É um exercício muito bonito de escuta – não das palavras, mas dos sentimentos, já que as palavras não temos mais. Escutar os movimentos do olho, do aceno de mão, da tentativa de falar alguma coisa – porque ela tenta. É bonito ver essa relação se reconstruindo, se remodelando, para que não acabe”.

 

Serviço
Exibição do documentário "Tereza e Bruno", de Rosane Gurgel
No dia 15 de novembro, às 18h30, no Cineteatro São Luiz (R. Major Facundo, 500 - Centro). Entrada franca. Contato: (85) 3252-4138

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