O risco de perder a audição é um dilema na rotina de músicos profissionais
O tema foi explorado recentemente no cinema com o filme "O Som do Silêncio", que concorre ao Oscar de "Melhor Filme"
Com seis indicações ao Oscar 2021, “O Som do Silêncio” retrata o drama do músico Ruben (Riz Ahmed). Ele é um baterista profissional e sua vida desaba quando perde a audição. Além de discutir temas como aceitação e coragem, o filme também alerta para um dilema comum fora da ficção.
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Em março último, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou o “Relatório Mundial sobre Audição”. Uma em quarto da população global, algo em torno de 2,5 bilhões de pessoas, terá algum grau de perda auditiva em 2050. 60% destes casos podem ser evitados. A saída é investimento em prevenção e tratamento de doenças ligadas à surdez.
Como retratado em “O Som do Silêncio”, profissionais da música lidam diretamente com o perigo. O que Ozzy Osbourne, Eric Clapton, Barbara Streisand, Chris Martin (Coldplay) e o imortal Ludwig Van Beethoven (1770-1827) têm em comum? Além do amor pela música, problemas severos em ouvir.
Pela exposição a níveis de pressão sonora, potencialmente danificadoras, os músicos são uma população de risco para o desenvolvimento de perda auditiva, explicita o estudo “Prevenção da perda auditiva nos músicos e sintomas associados”. A autora, Sara Sofia Cardoso Franco, aborda pesquisas acerca da educação e cuidados necessários à saúde destes profissionais.
“Os músicos deveriam ser educados sobre os sintomas que podem desenvolver e as medidas que podem tomar, assim como ter acesso facilitado a avaliações auditivas frequentes. Formações sobre este tema deveriam ser incluídas pelo menos nos cursos de música podendo ser disponibilizadas para outros músicos”, sugere a estudiosa.
Carolina Maia e Dangelo Feitosa são nomes reconhecidos na cena musical Fortaleza. Ambos iniciaram jovens. Por volta dos 15 anos já dedicavam atenção total ao instrumento percussivo.
Aquele zumbido
Dangelo fez o corre sozinho. Montou uma bateria de lata. Pegou um VHS do Guns N' Roses da mãe e alguns de vídeo aulas com amigos. O autodidata integrou bandas respeitadas do metal como Obskure, Diagnose e S.O.H. Atualmente segue com o grindcore do Facada.
A lista inclui trabalhos com outras sonoridades, como Alegoria da Caverna e Alisson dos Anjos. Antes da pandemia, a agenda de shows com a banda de baile, Os Transacionais, era movimentada.
Carolina já tinha o violão do lado desde a infância. A escola onde estudava ofertava aulas de música e ela agarrou a oportunidade. Desde a banda de meninas no colégio não parou mais. Participou de diferentes bandas da cidade (entre autorais e covers).
É professora de bateria e acompanha artistas em shows e gravações. Desde o primeiro período de quarentena, montou um "home studio" e grava faixas para produtores e jams em formato de colaborativo.
“No começo eu fui um pouco descuidada com minha audição, confesso. Tocava em bandas de rock e pop e o volume de tudo nos ensaios e shows era muito alto. Nos ensaios às vezes ainda usava protetores, mas palco... Saía do palco e ficava escutando um zumbido por horas! Era bem incômodo. Mas hoje é bem diferente”, afirma a musicista.
Já senti desconforto há muito tempo". Tive que ir ao médico e fiz tratamento", afirma Dangelo. A rotina é estafante, explica. "Tem vezes com os Transacionais que fazemos quatro shows por dia. Não tem como não chegar em cassa e estar, além de cansado, com o ouvido, naquele ‘zumbido que não para mais’. Não tem como tocar em palcos grandes e com um som, mais pesado, sem sair danificado”, rememora o artista.
Procure a fonoaudiologia
Fonoaudióloga e doutora na área das Ciências da Reabilitação pela Universidade de São Paulo (USP), Renata Almeida é professora do curso de Fonoaudiologia da Unifor desde 2002. “Além da perda auditiva por exposição ao ruído, também pode aparecer no indivíduo, devido à idade avançada ou por alguma doença”, observa a docente.
A perda auditiva é comprovada pela audiometria tonal que é realizada pelo fonoaudiólogo. É preciso estar atento a alguns sintomas. Os mais comuns são zumbido e sensação de ouvido tampados, segundo a professora. Ela exemplifica outras situações do dia a dia que podem sinalizar problemas na audição.
"Dificuldade para ouvir, principalmente em ambientes ruidosos. Pedir às pessoas para repetir o que disseram com frequência. Dificuldade em acompanhar uma conversa com duas ou mais pessoas. Apresenta irritabilidade em ambientes barulhentos, ouve TV ou rádio com volume alto etc", completa Renata Almeida.
Cuidados diários
Nem só os músicos ou quem trabalha "na graxa" (o termo é associado para quem atua na parte técnica do evento, os roadies, iluminadores, montadores de palco, técnicos de som...) é suscetível a lesões auriculares. Algumas práticas diárias, quase despercebidas, precisam ser repensadas.
O otorrinolaringologista, Paulo Manzano, explica como os "paredões de som” podem causar danos severos à audição. Na ocasião, Manzano analisou a incidência destes equipamentos durante o período de Carnaval. Único tratamento é prevenção.
"A sensação de zumbido depois da festa é um indicativo de que houve lesão das células auditivas”, arremata o entrevistado.
O exemplo acima situa uma atividade realizada ao ar livre. E dentro dos lares? A pandemia trouxe o isolamento social, medida necessária a evitar a disseminação do vírus. O período alterou o comportamento das famílias, defende a matéria
"Uso constante de aparelhos eletrônicos e do fone de ouvido pode causar danos à visão e à audição". Seja para estudar ou garantir horas de lazer, crianças, jovens e adultos tornaram frequentes os fones de ouvido.
"A perda auditiva pode aparecer em qualquer indivíduo que use fones de ouvido, principalmente se expostos por muito tempo e com volume alto. O ideal é que o som não ultrapasse 50% do limite do equipamento”, aponta Renata Almeida.
Paixão pela bateria
“A bateria representa tudo na minha vida. Toco desde que me conheço por gente”, Diz Dangelo. O instrumento também é motivo de orgulho por ser trabalho e uma fonte de renda. Porém, o músico detalha que deveria se precaver mais e usar protetor auricular.
“Hoje em dia, estão eliminando as caixas de retorno e usando fones no palco, é pior ainda, acaba prejudicando pelo volume”, estipula. Abaixo, uma "live" realizada pelo músico em 2020.
Já Carolina guarda atenção aos pequenos cuidados. Sempre usa fones (confortáveis e que vedam bem o barulho externo). Usa “pads” de borracha para aquecimento e só depois vai para o kit.
“Acho que os profissionais estão muito mais conscientes e buscando mais conforto para tocar. O equipamento evoluiu muito também”, argumenta. A profissional divulgou o recente trabalho na canção “Galliano no Forró”, de Nonato Lima. Cola na batida:
E após horas de muito som, fazendo o que mais gosta? Qual seria a receita para tanto esgotamento? A resposta é semelhante. "O que eu faço é dormir. O desgaste é alto. Se você emendar com outras atividades, não dá”, adverte Dangelo Feitosa.
“Nossa... o silêncio é muito valioso”, argumenta Carolina Maia. “Deitar numa rede ouvindo som de ondas é uma das melhores coisas da vida. Ou na serra com chuva no telhado. Mas, logo sinto falta de ouvir uma canção bonita!” finaliza a baterista.