Nova promessa da literatura brasileira vem do Ceará: conheça Stênio Gardel
Natural de Limoeiro do Norte, o escritor é apontado por importantes nomes como uma das vozes mais originais da contemporaneidade; “A palavra que resta”, seu romance de estreia, está em pré-venda e será lançado pela Companhia das Letras no próximo mês
Aos 41 anos de idade, Stênio Gardel se define como um homem que vive, neste momento, o sonho do menino outrora com 12: ver publicado o primeiro livro sob sua pena. “É, antes de tudo, uma sensação muito boa, de realização potente”, dimensiona o autor, trazendo à superfície a emoção do presente instante.
“A palavra que resta”, romance de estreia do cearense natural de Limoeiro do Norte, interior do Estado, encontra-se em pré-venda e será lançado pela Companhia das Letras em 19 de abril.
Entre a alegria e a ansiedade pelo amanhã que já bate à porta, Stênio conversou com o Verso a fim de tecer detalhes não apenas sobre o trabalho, mas a respeito da própria trajetória. Um caminhar que o levou a ser apontado por Socorro Acioli e Lira Neto como uma das vozes mais originais da contemporaneidade, nova promessa da literatura brasileira.
O singrar por palavras começou na comunidade Córrego de Areia, zona rural de Limoeiro do Norte. Ali, Stênio viveu até 1997, quando mudou para Fortaleza de modo a se aprofundar nos estudos e fazer faculdade. Antes disso, porém, miúdo ainda, recorda as visitas à casa de uma das tias, moradora da sede do município, e do fascínio com a leitura de “O Cão dos Baskervilles”, do inglês Arthur Conan Doyle (1859-1930).
“É uma história de Sherlock Holmes, com direito a mistério, suspense, sustos e, claro, a inteligência do personagem. Lembro de ter ficado muito impressionado com aquilo”, conta. “Acho que foi a partir dali que comecei a me perguntar, ‘será que é possível criar histórias assim?’”.
A resposta viria décadas depois, em 2016, quando participou, na Capital, dos ateliês de narrativa ministrados pela já mencionada escritora Socorro Acioli. Um período que mudaria tudo.
“O pensamento de escrever me veio como uma vontade na infância, mas não cheguei a me identificar muito. Escrevia esporadicamente e guardava, aquelas coisas de tentar fazer um conto, de tentar montar uma história, e ficar guardando. Mas só mesmo em 2016, nos ateliês da Socorro Acioli, que tomei a decisão. Havia chegado o momento de dizer ‘Eu vou escrever essa história’, que, no caso, já era o enredo de ‘A palavra que resta’”, detalha.
Reencontro inesperado
O livro tem como protagonista Raimundo, que, aos 71 anos de idade, decide aprender a ler e escrever. A intenção do homem já idoso é acessar o conteúdo de uma carta recebida aos 19 anos, nunca aberta. A partir daí, o romance envereda pelo panorama do personagem, descortinando a trajetória dele desde a juventude, passando pelo processo de aprendizagem do beabá, até as pessoas que conheceu e os desafios enfrentados.
A história da carta também ganha relevo: quem foi o autor dela? O que ela diz? Por que não foi aberta antes? E por qual razão o próprio Raimundo não começou a estudar logo cedo? “São questões que vão levando o leitor ao longo da obra”, diz Stênio. Segundo ele, a ideia para o enredo central surgiu a partir de sua vivência no Tribunal Regional Eleitoral - TRE, órgão do qual o escritor é funcionário.
“No meu dia a dia, quando trabalhei no cartório eleitoral, tive a oportunidade de atender muitas pessoas que não sabiam assinar o nome, indivíduos de uma certa idade que não foram alfabetizados. O livro trata disso. Essa é uma primeira ligação que faço dele com minhas experiências pessoais”, explica.
“A segunda é que sou homossexual e o Raimundo também é. Assim, questões como aceitação e o processo de se encontrar homossexual igualmente integram a trama”, completa, sublinhando ainda que alguns dos assuntos abordados no romance já estiveram presentes em outros textos de sua autoria, a exemplo do conto “A marca”, publicado na coletânea “Farol” (Moinhos, 2017), em que narra o encontro de uma prostituta e um cliente que poderia ser filho dela.
“Esse tema sobre reencontros inesperados, de resolver coisas do passado, também pode ser extraído nesse trabalho. Em ‘A palavra que resta’, o Raimundo carrega a carta por muito tempo até resolver aprender a ler e escrever, então na coletânea ‘Farol’ já havia algumas temáticas que me são caras e foram ampliadas no romance”.
Além dessa publicação, Stênio também assinou histórias nas coletâneas “Mirabilia” e “Quase nome”, da editora Labrador; “Limiar - Delírios cruzados”, da editora Chiado; e em “O castiçal, a escrivaninha, a cadeira e o rascunho”, contemplada por edital do Ministério da Cultura em 2018.
Outros olhares
A primeira versão de “A palavra que resta” foi finalizada em 2017. De lá para cá, as linhas escritas por Stênio vêm percorrendo diferentes olhares e tratamentos até chegar ao público maior. A primeira leitora foi propriamente Socorro Acioli, que colaborou com apontamentos e observações sobre a trama. Logo após, foi a vez da escritora e editora Vanessa Ferrari e da editora Julia Bussius, da Companhia das Letras.
A preparação do texto ficou a cargo de Márcia Copola e Lucila Lombardi. Já a capa do livro, de Alceu Chiesorin Nunes, traz uma pintura de Daniela Reis, artista portuguesa. Nesse ínterim, enquanto os procedimentos para concretização da obra eram realizados, Stênio fechou contrato com a Agência Riff, responsável por representar grandes nomes da literatura brasileira, a exemplo de Adélia Prado, Cristovão Tezza e João Anzanello Carrascoza.
“É uma cadeia muito grande de pessoas e eu sou muito feliz e agradecido a todo mundo que, de alguma forma, contribuiu para o livro chegar onde ele está chegando”, festeja Gardel.
Ele observa que os cursos de escrita e criação foram o primeiro passo para mostrá-lo que o caminho para criar histórias existe e há muitos aprofundamentos nesse campo.
“Talvez não seja aquilo que a gente é acostumado a ouvir quando cresce, de que escrever literatura é pura e simplesmente inspiração. Existe o caminho de estudar, existem pessoas que se dedicam a isso, e aquelas oficinas foram nesse sentido”.
Quanto à maneira como observa o próprio fazer literário, o escritor é enfático: sua prioridade é com o texto. “Aprender a ler as próprias linhas e tentar ver que uma coisa que eu escrevi que, para mim, pode ser muito legal, é uma imagem bacana, um jogo de palavras interessante, pode ser que não esteja funcionando para o texto como um todo. Minha preocupação é sempre essa, de que o texto esteja o melhor possível”, reforça.
“Eu não quero que, antes do texto, esteja a minha pessoa ou a minha figura de autor, sabe? Acredito na leitura pelas palavras. A presença do autor vai estar no conteúdo, claro, mas não quero que as pessoas cheguem ao livro por minha causa, mas que cheguem a ele por ele mesmo. Isso é o mais importante para mim, que o livro alcance as pessoas”, complementa.
Percepções
Tão presente no itinerário criativo de Stênio Gardel, Socorro Acioli recorda o comportamento do escritor ainda nos ateliês narrativos. Muito calado e tímido, ele cedo mostrou rudimentos da história de Raimundo.
“Seguiu fazendo todos os cursos que eu oferecia. Eu admirava a forma como entregava os textos escritos, perfeitamente diagramados, revisados, impecáveis. Textos impactantes, que desde o começo me fizeram entender que seu talento é especial”, situa.
Dentre as características de Gardel listadas pela premiada escritora está o fato de ele ser um grande leitor, “daqueles que lê com calma e cuidado, que também escreve com zelo, paciência”. “Ele consegue equilibrar a vontade de contar uma boa história com o capricho na linguagem. Seus personagens estão sempre no controle, é possível ouvir suas vozes o tempo todo, como decisão do autor”, percebe Socorro.
“Ele tem uma voz única. Não parece com ninguém, nem imita, nem emula um caminho. É ele, falando das coisas que viu e que doem até hoje. A semente deste livro é uma experiência no balcão de uma repartição pública, que ele enxergou, viu, reparou e tratou como um mergulho”, completa a autora de “A cabeça do santo” (Companhia das Letras, 2014) e “Ela tem olhos de céu” (Gaivota, 2012) e também coordenadora do curso de especialização em Escrita e Criação da Universidade de Fortaleza.
Ainda de acordo com ela, o romance deverá chamar a atenção por falar de amor, aceitação e humanidade de maneira única por meio de um grande narrador e um texto polido. Certa de que o livro será muito bem aceito no mercado brasileiro, Socorro ainda sublinha que o exemplo de Stênio tem muito a ensinar, sobretudo por ele ser um exímio leitor – “herdeiro de Faulkner, dos russos, dos contemporâneos” – e por saber esperar o tempo que o livro pede. Em suma, um escritor sem pressa.
“Ao contrário: quem mandou o livro dele para Companhia das Letras fui eu. Stênio está mais preocupado em escrever bem do que aparecer como escritor, forçando as portas. Tem paciência, cuidado, responsabilidade com cada palavra. Não grita nenhuma bandeira. A dor do preconceito sofrido pelo seu personagem dói na carne do leitor porque o texto é bom. É Literatura, com letra maiúscula”, conclui.
Colega de turma de Stênio no Ateliê de Narrativas, a jornalista Marina Solon endossa a opinião de Socorro Acioli. De acordo com ela, o texto de Stênio tem um quê de prosa poética e consegue ir além do lugar-comum do cotidiano.
“É um olhar muito bonito, que não é óbvio. Stênio não teve pressa de ser publicado, de ser lido, mas de fazer um chão sólido literário onde ele soubesse onde estava pisando. Por isso que eu acho que ele é uma das promessas da literatura brasileira, já que é um autor que passou muito tempo se maturando antes de escrever para ser publicado”, observa.
Marina teve acesso à primeira versão do romance e sublinha que o autor se abriu muito ao contraditório, a outras leituras críticas, para maturar o texto. “Ele concluiu o texto e poderia ter dado como perfeito, pronto pra lançar. Mas teve essa paciência de esperar, e aí é uma caminhada de anos”.
“É um romance que já chega muito bem, que já mostra muito da bagagem que o autor tem. Quando ele chega contando essa história – que é uma história de amor e que poderia ser algo banal – confere o olhar dele, maturado para ver uma sutileza que não está tão evidente ali. É muito, muito bonito”, acrescenta.
Urgências
Para Stênio Gardel, a literatura pode ser percebida de muitas formas, mas nela reside uma urgência: a possibilidade de leitura do próprio eu, construindo um elo de empatia que sirva para a reflexão da nossa realidade.
“Nesse sentido, é uma arte que visa a reflexão, a compreensão do que a gente vive. É um começo para possíveis transformações, um ponto de partida”, diz. Por sua vez, o escritor adianta que tem alguns projetos idealizados e que deve dividir o expediente literário com o trabalho no TRE.
“Vou manter os dois, mas ciente que a literatura e o livro vão exigir cada vez mais de mim. E eu quero estar pronto, me dedicar a este e aos próximos livros e ao fazer literário. Quero ter esse mesmo sentimento do primeiro livro muitas outras vezes”, vibra, enquanto aguarda o lançamento virtual da obra, marcado para o dia 20 de abril.
O término da conversa com o escritor foi um bate-bola animado, embora não menos árduo. Depois de cada pergunta, Stênio silencia, respira fundo e dispara a resposta. Então, quando questionado sobre um sonho, diz: “Publicar mais livros”; um medo: “Ficar só”; uma inspiração: a mãe, Raimunda Irene Maia, falecida no último mês de janeiro; um desejo para o Brasil: “Mudança”; um desejo para o mundo: “União”; e que conselho daria para quem está começando a escrever literatura agora: “Escreva e leia”.
A palavra que resta
Stênio Gardel
Companhia das Letras
2021, 152 páginas
R$ 54, 90 (ainda em pré-venda)