“Não somos máquinas”, diz médica que procurou desacelerar durante a pandemia

Ciente do privilégio de acolher essa decisão em um momento tão nebuloso, Lara Aires se solidariza com os colegas de profissão e afirma que optou compreender os próprios limites para não adoecer

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Ser médica durante a pandemia afetou a determinação de Lara Aires de buscar tempo para o ócio, puramente por necessidade
Foto: Arquivo pessoal

Anestesiada. Foi como Lara Aires viveu boa parte do ano de 2020, em sintonia com o sentimento do mundo. O amargor pelo cenário de morte e angústia ocasionado pela pandemia de Covid-19 paralisou a compreensão da própria realidade e dos sentimentos. Resultado: a  médica cearense de 26 anos decidiu desacelerar.

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“Tenho inúmeros colegas que adoeceram nesse período, por ansiedade ou burnout. Atualmente, os profissionais de saúde seguem exaustos, e ver a situação do Brasil na pandemia é doloroso e revoltante. Escolhi trabalhar menos, mas tenho consciência do privilégio dessa escolha, porque a maioria das famílias não pode tomar essa decisão”, sublinha.

Assim, no lugar de cumprir expediente em postos de saúde e dar plantões em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de Fortaleza, ela optou por executar o serviço apenas nos postos, onde o fluxo de demandas é menor.

Além dessa mudança, Lara abraçou outra atitude. Ser médica durante a pandemia afetou a determinação de buscar tempo para o ócio, puramente por necessidade. “Tive que compreender meus limites. Seria isso ou adoecer. E esse momento de tantas perdas trouxe muita reflexão sobre como desejo viver”, explica.

Legenda: “Escolhi trabalhar menos, mas tenho consciência do privilégio dessa escolha, porque a maioria das famílias não pode tomar essa decisão”, sublinha a médica
Foto: Emanuel Alves

Agora ela está em um movimento de “lentificação”, conforme descreve. Antes disso, a médica caracteriza a rotina que levava como extremamente cansativa, em que tinha, por exemplo, pouca energia para interagir com as outras pessoas, deixando-se levar pela tristeza das notícias diariamente veiculadas.

“Eu realmente precisava me dedicar mais a mim, e isso tomou forma nesse projeto de lentificação, que começou com algumas observações”.

Tempo de espera

Dentre elas, a percepção de que mensagens podem esperar para serem respondidas; de que não é preciso estar conectada ao noticiário o tempo todo; e de que as redes sociais são apenas ferramentas, logo não devem alimentar no íntimo a necessidade de o indivíduo estar sempre atualizado com o efêmero. 

“Meu lazer só faz sentido se eu o busco por querer de fato vivê-lo, e não por metas de produtividade até do nosso tempo livre  – se ‘tenho tempo’, preciso ver um filme, ler um livro, fazer um curso, aprender algo. O ócio é uma necessidade humana, é contemplar, descansar. Estamos exaurindo nossa mente diariamente com informações e tarefas que não podemos comportar, a cabeça sempre trabalhando e absorvendo. É insustentável”, dimensiona a médica.

Render-se a um tempo de encontro consigo acabou sendo um caminho para Lara buscar a tranquilidade como uma forma de ser mais feliz, sem ter que achar finalidade para tudo que ela faz. “Já sou um ser completo na minha própria existência”, reitera, destacando que a prática da meditação começou abrindo esse espaço de cuidado próprio. Todos os dias, ela pausa e medita por quinze minutos, tentando afugentar todo e qualquer pensamento que a impeça de vivenciar plenamente esse instante.

Legenda: Render-se a um tempo de encontro consigo acabou sendo um caminho para Lara buscar a tranquilidade como uma forma de ser mais feliz
Foto: Arquivo pessoal

Um tempo maior para o exercício é reservado aos fins de semana, quando a médica fica em torno de uma hora sem fazer nada, “olhando o tempo”. Por sua vez, no dia a dia, Lara busca fazer uma refeição sozinha sem olhar para telas, não conferir as redes sociais no momento em que acorda, e dirigir sem ligar o rádio, contemplando o silêncio.

“Não fazer nada, paradoxalmente, pode ser difícil. O maior desafio para mim é o desejo de produtividade, sem dúvidas, por pensar que estou perdendo tempo. Tento perceber como ter meu momento de não fazer nada acaba sendo na realidade produtivo, porque depois, quando me dedico às minhas tarefas, é de forma renovada, com vontade”, diz.

“Outro grande desafio são os smartphones. Há poucos meses, desativei todas as notificações do meu celular, e isso me ajudou bastante para usar meu tempo de forma mais inteligente  – inclusive para o ócio”, conta. “Então é otimizar, vendo o que é realmente importante para a sua vida. Não fazer nada me fez usar meu tempo de forma melhor”.

Não somos máquinas

Ainda que envolvida nesse processo de suspensão do tempo, Lara Aires confessa lidar com a culpa por não estar fazendo nada. Muito desse sentimento, conforme percebe, deve-se a uma ideia enraizada na sociedade de que literalmente todo segundo precisa ser produtivo, principalmente no trabalho.

“A culpa sinaliza que tentamos viver como máquinas de produção, porque é isso que o sistema nos exige. Mas não somos máquinas. Há quem tenha jornadas de trabalho absurdas. É algo muito maior que nós como indivíduos”, considera. “Em uma rotina frenética, é fácil viver no automático. Se você tem a opção, acho que o que desejo é fazer um convite para refletir sobre seus objetivos, sobre como você gostaria de viver e, principalmente, sobre presentificar. Acredito muito no poder da simplicidade para nos trazer leveza, e isso para mim é essencial para uma vida plena. Somos mais que ferramentas”.

A opinião da médica ecoa na fala de Milena Assunção. Psicóloga clínica e orientadora educacional na rede municipal de ensino de Sobral, ela situa que, se alocarmos a discussão em uma perspectiva histórica, perceberemos que os indivíduos foram condicionados a sempre estarem fazendo algo.

“Na vivência do tempo, se pensarmos, por exemplo, na Idade Média, vemos que o sujeito vivia para o futuro. Havia uma vida ali, mas o que interessava era o porvir, a eternidade. Hoje, na contemporaneidade, nós vivemos para o agora. É como se não pudéssemos esperar pelo depois. O futuro é incerto, o que eu tenho certeza é este presente em que vivo, que se encarna no meu corpo, e eu tenho que dar conta de vários possíveis”, explica.

Nesse panorama, o ócio surge enquanto pista para a necessidade de uma vivência temporal de momentos diferentes. Logo, se há tempo para o trabalho, o conversar ou o assistir a um filme, também o nosso corpo e existência convocam para um instante de pausa. 

Muitas vezes nós confundimos o ócio com um tempo que eu tiro numa semana super agitada para assistir a uma série, por exemplo. Mas, na verdade, é um momento onde eu me permito, onde me coloco de forma corporal em que não faço nada. E o quanto esse fazer nada é potente, né? O quanto tem força isso”, salienta Milena.

Legenda: Segundo Lara, não fazer nada lhe fez usar o tempo de uma melhor forma
Foto: Arquivo pessoal

Esferas positivas e negativas

De acordo com a psicóloga, uma vivência positiva do ócio é justamente aquela que compreende que a existência convoca a períodos de pausa. Parar para perceber e, assim, direcionar a si próprio no caminho de algo

Por outro lado, não é possível estar sempre parado. Essa atitude, quando levada ao extremo, pode ser um mecanismo de fuga dos compromissos e realidades do sujeito. “É aquela famosa frase, ‘estou procrastinando o que eu tenho para fazer’”, ilustra Milena. “Assim, são questões diferentes. Neste meu momento de ócio, estou me permitindo parar e ter uma vivência corporal da pausa ou estou fugindo de algo?”.

Vivemos, portanto, um paradoxo: somos convocados a assumir inúmeros papéis e possibilidades na ordem do aqui e agora; mas também atravessados por uma política que evidencia a necessidade de cuidado físico e mental. 

“Como é que um sujeito pode dar conta de dois discursos tão diferentes? Como ele habita esses dois lugares? Ele tenta habitar. Então, quando eu tenho uma pessoa que vive nesse frenesi e tenta habitar o ócio, muitas vezes vem o sentimento de culpa”, contextualiza.

A pandemia aflorou nossas percepções?

O contexto pandêmico, na ótica de Milena, não trouxe grandes novidades no sentido da busca pela produtividade no trabalho e nas vivências, mas aflorou essa urgência.

Legenda: Conforme a psicóloga Milena Assunção, uma vivência positiva do ócio é justamente aquela que compreende que a existência convoca a períodos de pausa
Foto: Arquivo pessoal

“Ao mesmo tempo em que ela nos convoca a essas emergências da produtividade, também nos pergunta o que é importante, o que é da ordem do íntimo para cada um, o que é que pode e não pode faltar nas nossas vidas. Ao trazer essas convocações filosóficas, abre espaço para que o indivíduo reflita e tente mudar. E que momento é oportuno para perguntas sobre nós, o mundo e o outro? O ócio, que me permite focar no que importa”.

De uma forma geral e diretiva, a orientação da psicóloga é que criemos uma rotina, o que é extremamente necessário para se organizar e se colocar no mundo. Contudo, é importante que essa agenda não nos capture, condicionando-nos a fazer apenas o que está programado. 

“Se eu tenho cada hora do meu dia programada dizendo o que eu tenho que fazer – e muitas vezes fazendo várias coisas naquela mesma hora – não necessariamente sou produtivo. Talvez ter uma hora do meu dia para não fazer nada seja a hora mais produtiva que eu tenha”, exemplifica.

“Se pensarmos de forma operacional, ter uma rotina é importante com certeza. Mas tê-la de uma forma real, possível, executável, que aquele sujeito consiga dar conta. Uma rotina que não seja possível esquecer que somos humanos, antes de tudo. Se cortamos todas as possibilidades do sujeito, o que vai sobrar para ele?”.

Legenda: "Se cortamos todas as possibilidades do sujeito, o que vai sobrar para ele?”, questiona psicóloga
Foto: Divulgação

O prazer da experiência

Quando questionada sobre a relevância do parar no cotidiano, a professora de yoga e comunicadora social Raquel Amapos – fundadora do espaço Santosha Yoga Shala, localizado no Salinas Shopping, em Fortaleza – diz que recorda de um artigo intitulado “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, escrito pelo doutor em Filosofia da Educação e professor da Universidade de Barcelona, Jorge Larrosa Bondía.

No texto, o autor defende que o saber mais válido é o da experiência e que, para ser sujeito da experiência, é preciso suspender o tempo. “Parar para poder sentir, suspender o excesso de opinião e de informação, se permitir estar ‘atravessável’ pelo que está se manifestando ao nosso redor”, detalha Raquel.

Assim sendo, ela observa como um privilégio o fato de exercer uma atividade econômica que lhe permite organizar os horários e proporcionar momentos de ócio. Esses instantes se manifestam em períodos de apreciação que a professora encaixa ao longo da semana. 

“Meia hora em frente ao mar, alguns minutinhos de olhar atento e exclusivo pro meu gato, deitar no chão ouvindo uma música e ali me demorar olhando pro céu ou pro teto, sentindo o corpo soltar as tensões dos dias que tanto correm e demandam da gente”, enumera. “E também na própria prática da meditação  – do sutil gesto de sentar, alinhar a coluna e apenas observar o fluxo da respiração, silenciando aos poucos o tumulto que se manifesta na cabeça e no coração”.

Segundo Raquel, o yoga foi uma prática com muita adesão desde o primeiro lockdown no Ceará, decretado em maio do ano passado. Esse movimento, de acordo com ela, é justificado. O yoga faz convites para olhar com mais amorosidade e cuidado para si, com exercícios, muitas vezes, simples – não necessariamente fáceis – de respiração, alongamento e força, movendo as energias e abrindo possibilidades para encontrar, no próprio íntimo, o conforto que precisamos e tanto buscamos fora.

“O yoga ensina que a gente precisa estar atento ao nosso corpo e aos sinais mentais e emocionais que ele somatiza com o tempo. É claro que eu percebo muito no ensino as sutilezas das manifestações somáticas em corpos e em estilos de vida diferentes, mas foi mesmo a minha prática pessoal que permitiu que o meu corpo gritasse e pedisse por um pouco de pausa e também por um movimento mais consciente e atento”, diz.

Legenda: Os instantes de ócio da comunicadora social e professora de yoga Raquel Amapos se manifestam em períodos de apreciação encaixados ao longo da semana
Foto: Arquivo pessoal

Encontrar dentro o que procura fora

Aos fins das práticas de yoga conduzidas por Raquel Amapos, é costume ter o Shavásana, momento em que os participantes deitam no chão, sentem a respiração e enviam comandos mentais de relaxamento para todo o corpo. A ideia é que, naquele instante, assim como em algumas práticas de meditação, toda a atenção se mova para apenas sentir o corpo se entregar ao chão. 

“São 7 a 10 minutos poderosos que restauram o corpo, dão um respiro para a mente e, inclusive, permitem que o campo das emoções se manifeste, como se ali houvesse uma oportunidade de olharmos para o que sentimos, protegidos de todas as demandas que consomem cada milésimo do tempo que nutrimos acordados”, descreve.

Legenda: "O yoga ensina que a gente precisa estar atento ao nosso corpo e aos sinais mentais e emocionais que ele somatiza com o tempo", explica Raquel Amapos
Foto: Arquivo pessoal

“Tem gente que diz que  um shavásana com entrega restaura uma noite mal dormida, e eu acredito muito nas potências desses instantes de pausa, de respiro. A gente aprende a estar inteiro. Pausar é perceber que você consegue encontrar muita coisa que busca fora, dentro. E isso é se descobrir um tanto mais livre. Assim, em tempos de ‘trabalhe enquanto os outros dormem’, o saber da pausa é feito ouro e nutre corpo, mente e emoções”, complementa.

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