Mangar, invocado, ficar de bode: a enciclopédia com quase 10 mil expressões e palavras do cearensês
Escrito pelo jornalista Tarcísio Matos, livro é dividido em dois volumes e investiga uma das marcas mais características de nosso povo
O cearense precisa ser estudado, comentam nas redes sociais. É verdade. Felizmente, pesquisas acontecem – e não são poucas. Uma das mais recentes diz respeito ao nosso jeito de falar, à forma como se propaga o maroto cearensês. Ou você acha que termos como “rebolar no mato”, “mangar” e “ficar de bode” iam ficar apenas no registro oral?
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“Grande Enciclopédia Infanto-Juvenil da Fala Cearense” resgata quase 10 mil expressões e palavras típicas do nosso linguajar diferenciado. O trabalho, realizado pelo jornalista Tarcísio Matos, sugere encararmos essa particularidade como um segundo idioma. Pudera: é tudo tão específico que apenas uma publicação assim para dimensionar a originalidade do povo.
Segundo o autor, a linguagem cearense – e nós concordamos, claro – é bem-humorada, tem ritmo e expressa a verve alegre e irreverente da cultura. “Se os tempos modernos impõem modismos que até na fala da gente interferem, esse trabalho vem para a permanência de um traço bem característico do nosso povo: a graça, a leveza, a molecagem que nos diferencia de todos os outros – inclusive no falar”, destaca.
O projeto de documentação é antigo, com pelo menos 45 anos de estrada profissional e 65 de trajeto humano. Tarcízio explorou os diferentes sinais e sonoridades de nossa língua própria por meio de andanças pelo interior do Estado. Foi se encantando e incorporando ao registro cotidiano os termos e expressões catalogados, a um só tempo hilários e vigorosos.
Também conseguiu ir além, imprimindo essa marca em escritos diversos assinados por ele. Até falando o jornalista se utiliza da gaiatice para deixar a conversa mais amena. “E me fazer melhor compreendido, pois essa é a minha língua. Minha ‘norma culta’ é fuleira. Cearensês é, pra mim, a penúltima flor da macaúba, invocada e só o mí disbuiado”.
Apelidos, exageros, comparações
Dois volumes em capa dura comportam a seleção de verbetes. Não existe divisão específica. É na “ruma” que tudo está posto, por ordem alfabética. Ultrapassando a complexidade do levantamento, Tarcízio Matos adicionou ao trabalho lembranças dos tempos de menino em Caucaia e Pacajus. O resultado são apelidos, tipos populares, fuleirosofias (filosofias fuleiras), exageros e comparações enumerados. “Mungangos” de toda ordem.
Autores do quilate de Patativa do Assaré (1909-2002), Arievaldo Viana (1967-2020), Klévisson Viana, Raimundo Girão, Jáder Soares, Chiquinho Peixoto e vários dicionaristas locais – a exemplo de Tarcísio Garcia, Andrea Saraiva e Marcus Gadelha – foram fartamente explorados pelo autor.
Tarcízio também recebeu colaborações valiosas de Falcão, Edmilson Filho, Assis Cavalcante, Helvécio Neves Feitosa e Audifax Rios. Jornada coletiva. Tão diversa que também recebeu o apoio de meninos e meninas provenientes de escolas públicas de Itaitinga e de Fortaleza.
Eles fizeram várias ilustrações para a publicação por meio do Projeto “O Traço e a Fala do Cearensês”, apoiado pela Lei Aldir Blanc numa parceria do Instituto Tonny Ítalo com o Espaço Cultural Artes em Conexão. Os desenhos ambientam situações nas quais as expressões e palavras são geralmente utilizadas.
Conforme Matos, algumas das mais curiosas são: “Balançar o pé de fava”, que quer dizer soltar pum; “Imento de mato”, ou ida constante ao banheiro – especialmente para “obrar”; “Palpite-de-porco”, significando má opinião, palpite sem futuro; e “Acordar com o ovo engasgado na cueca”, sinônimo de levantar-se mal-humorado.
Por sua vez, dentre as preferidas do jornalista estão: “Ó o mei”, em alusão a “Sai da frente”; “É confusão pra mais de metro”, indicando briga, desacerto; e “Bunitim é irmão do feim”, resposta que se dá ante o comentário sobre um recém-nascido, ao dizer, por exemplo, que ele é só “bunitim”, ou seja, nem tanto assim.
“Tudo isso mostra nossa capacidade de fazer o povo se abrir até com o que dói. Em tempo: tem nada inventado, é tudo coisa que o povo diz”, enfatiza. “Parafraseando Caetano Veloso, ao assinalar, na música ‘Língua’, que ‘Está provado que só é possível filosofar em alemão’, eu diria que ‘Está provado que só é possível frescar em cearensês’”.
À nossa maneira
Mas, afinal, por que o cearense desenvolveu uma forma tão particular de falar? De onde vem nossos neologismos e modos de traduzir o mundo por meio da oralidade? Tarcízio Matos reflete que, quando considera verbos como “distiorar” (deteriorar) e “interter” (entreter), põe-se a pensar que o cearense fala assim devido à facilidade da pronúncia.
“Deteriorar e entreter quebram a língua, dão trabalho. Ademais, é mais rítmico e engraçado no cearensês. Cearense ri até na morte, tem tempo ruim pra gente, não. Nossa resistência à natureza inclemente do tempo meteorológico e às estripulias humanas fizeram a gente criar anticorpos à tristeza. E aí vimo-nos diante da esfinge”.
Logo, em vez de sermos “jantados”, metemos o pé na carreira e nos salvamos todos, felizes à moda pinto em balseiro. “Acho melhor escapar fedendo do que morrer cheiroso”, declara Falcão. Tudo indica que estamos com ele. “Assim somos nós, cearenses. Traduzimos para o cearensês o que o mundo diz em suas línguas originais e complicadas, e fica tudo bem resolvido à nossa maneira”.
Com os dois volumes já lançados disponíveis em bibliotecas, escolas, espaços de convivência e universidades – quem quiser e puder, poderá adquiri-los – Tarcísio deseja estender o projeto. Desde que os livros chegaram às mãos do autor, no último mês de abril, já lhe repassaram ou ele lembrou de mais de 300 palavras e expressões novas.
A ideia, portanto, é de uma segunda edição ampliada e revisada, possivelmente ainda neste ano. A crença do pesquisador é passar dos 12 mil verbetes e expressões genuinamente cearenses. “E tem aquela parte adulta, que comporá o terceiro volume, a ser publicada mais tarde. O foco será sempre as coisas da cearensidade tão rica e diversa, bem-humorada e felicitante. Quem lê, se abre sozinho”. Alguém duvida?
“Grande Enciclopédia da Fala Cearense - O Cearensês ao alcance do Mundo”
Tarcísio Matos
Mentoria das Letras
2022; Volume 1 (294 páginas) e Volume 2 (282 páginas)
R$100 (diretamente com o autor)/ R$130 (pela Amazon, neste link)