"Homofobia tem cura: nos procure": artistas LGBT+ promovem performances em bairros de Fortaleza
Intitulada "POC - Procedimentos para Ocupar a Cidade", iniciativa parte da subversão linguística de um termo pejorativo direcionado a membros da comunidade LGBT+ para discutir questões relativas a identidade, corpo e arte no espaço urbano
Quem passa pelo bairro Demócrito Rocha, em Fortaleza, terá a oportunidade, a partir desta quinta-feira (14), de ler frases do tipo "Você tem se sentido homofóbico? Fale conosco" ou "Homofobia tem cura: nos procure". Posicionados em lugares estratégicos, os lambes que carregam esses dizeres fazem parte de uma ação cujo objetivo é promover uma aglomeração poética entre artistas LGBT+, suscitando reflexões acerca de temáticas como identidade, corpo e arte no espaço urbano.
Trata-se da mostra "POC - Procedimentos para Ocupar a Cidade". O projeto, contemplado no Edital de Arte Livre, da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, fomentado com recursos da Lei Aldir Blanc, realizará intervenções, utilizando-se da linguagem da performance, entre os dias 14 e 25 de janeiro. Elas acontecerão em diferentes bairros da Capital, onde residem os(as) artistas e/ou onde desenvolvem relações de afeto.
"Clínica de reabilitação para homofóbicos", dos artistas cearenses Eduardo Bruno e Waldírio Castro, poderá ser conferido a partir das 10h, próximo à estação de metrô do bairro Demócrito Rocha. De acordo com Eduardo, o trabalho – que se apropria de frases-jargões de clínicas e de uma diversidade de propagandas urbanas – busca pensar como é possível, a partir de uma provocação artística, promover uma reflexão sobre a homofobia naturalizada na sociedade.
"Durante muito tempo houve, e até hoje há – clandestinamente, muitas vezes, mas também de muitos modos não-clandestinos, porque é dito, de forma direta e indireta, em falas que patologizam a homossexualidade – clínicas para reabilitar homossexuais, como se a homossexualidade fosse um comportamento que pode ser mudado porque é algo errado, desviante da heteronormatividade, que se entende e se narra no mundo como a verdade da sexualidade", explica Eduardo Bruno.
"Com esse trabalho, a gente vira essa chave e provoca o outro a pensar que, na verdade, o que existe é a clínica de reabilitação para homofóbicos. Porque, se tem algo que precisa ser reabilitado e discutido é a homofobia, e não os homossexuais, transexuais ou bissexuais. A sexualidade é tão diversa quanto o número de corpos que têm no mundo", completa o artista, também pesquisador, curador e professor substituto do curso de Teatro da Universidade Federal do Ceará.
A iniciativa acontece no dia do aniversário de dois anos de casamento de Eduardo Bruno e Waldírio Castro que, em maio de 2019, estiveram no centro de um acontecimento que movimentou a cena artística de Fortaleza. A faixa que integrava uma exposição capitaneada pelo casal – colocada na fachada do prédio do Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), onde, à época, acontecia a 70ª edição do Salão de Abril – foi removida por ordem de funcionários do banco. O material, onde estava escrito "Em terra de homofóbicos casamento gay é arte" compunha a obra "O que pode um casamento (gay)?".
"Dois anos depois, quando pensamos em fazer uma ação no dia do aniversário do nosso casamento, a gente relembra esse ato de homofobia. Porque não foi só uma censura: foi uma censura atrelada à homofobia. Então, tomamos esse fato, nos apropriamos de uma ação de outro sobre a nossa vida e sobre nossos corpos, e reelaboramos isso com uma provocação artística", reitera Eduardo.
Ressignificações
O atual projeto em que Eduardo, Waldírio e mais seis artistas estão envolvidos(as) também parte da ressignificação. Subverte linguisticamente um termo pejorativo direcionado a membros específicos da comunidade LGBT+ – o uso de "poc" destina-se especialmente a travestis e homens gays e pobres/moradores de periferia –, utilizando-o como um dispositivo de luta. Nesse mesmo âmbito, igualmente reflete como a discriminação na língua opera contra diferentes corpos dissidentes de gênero e sexualidade.
Segundo Eduardo, "se a gente se apropria desse termo e faz esse jogo com ele, atribuindo-o essa sigla, afirmamos que, sim, somos poc, somos bicha, sapatões, travestis, pessoas que, nas suas constituições identitárias, se constroem e habitam a cidade sem ser dentro da heterocisnormatividade. Vivemos em um espaço urbano que geralmente expulsa nossos corpos, os marginaliza e os exclui. Com a mostra, criamos a seguinte proposição: oito artistas LGBT+ ocupando a cidade a partir de questões em torno de seus corpos e narrativas nas suas diferenças e perspectivas de ser e estar na urbe".
Uma dessas maneiras de se presentificar na cidade é a da artista multidisciplinar Ellícia Maria. Travesti, preta e residente na periferia de Fortaleza, atua como atriz, performer e DJ, investigando em seus trabalhos as noções de corpo travesti e colonialismo. Desenvolve também iniciativas artísticas a partir um ofício que parte da negociação entre o sagrado e profano, construindo novas possibilidades de escrita da história preta e travesti.
Na mostra "POC", Ellícia apresentará o trabalho "Via-trava", nascido em meio à vivência e perspectiva no campo social. "Por ser moradora de periferia e fazer deslocamentos longos com o meu corpo, até chegar em alguns principais polos da cidade, acumulei de forma exemplificada algumas ações violentas onde meu corpo era alvo. Cheguei , então, à conclusão de que não existem vias urbanas (onde classifico campo da cidadania) que gere acesso, movimento e segurança para meu trânsito. Em 'Via-trava', pretendo gerar esse questionamento sobre acessibilidade, e propor vias de fato, onde meu corpo esteja inserido e validado enquanto cidadã", explica.
Urgências
Conforme a artista – que se apresentará no dia 20 de janeiro, às 8h30, em uma das principais avenidas do Planalto Ayrton Senna – a importância de se apresentar no bairro onde mora dialoga com o entendimento de que existe uma necessidade, sobretudo de informação e de possibilidades efetivas de movimentos enquanto trabalho, afeto e vida da comunidade LGBT+, incluindo a pauta trans.
"Isso tendo em vista que o estado do Ceará disparou no número de mortes de corpos trans. Em meu trabalho, trago uma narrativa de vida, possibilidades, acesso e cidadania. A reflexão que quero gerar na verdade é um questionamento: 'Por que meu corpo ainda não está inserido de forma natural nessas vias?'", indaga.
Para Eduardo Bruno – que, além de participar como artista, é um dos idealizadores da mostra "POC", juntamente a Levi Banida e Aires –, o corpo das pessoas LGBT+ traz nele uma outra perspectiva de cena, uma outra centralidade de produção, com questões e mecanismos de criação específicos. Volver os olhares para esses fazeres é sempre necessário, segundo ele, principalmente no momento histórico que estamos vivendo.
"Mesmo que nós, enquanto participantes do projeto, estejamos fazendo nossas performances em bairros e dias diferentes, estamos ativando a perspectiva de corpos e corpas LGBT+ produzindo no espaço urbano, tanto de modo físico quanto simbólico", conclui.
Serviço
Performances da mostra "POC - Posicionamentos para Ocupação da Cidade"
De 14 a 25 de janeiro, em diferentes horários e bairros da cidade. Mais informações por meio do perfil @imaginarios_arte
> Confira a lista completa de apresentações:
- 14/01, às 10h: "Clínica de reabilitação para homofóbicos", de Eduardo Bruno e Waldírio Castro. No bairro Demócrito Rocha, próximo à estação de metrô
- 15/01, às 15h30: "Fisgada - O mar não é binário", de Levi Banida. Na Praia de Iracema, no espigão do Náutico, Praia dos Crush
- 17/01, às 9h: "Cova", de João Paulo Lima. Na ponte velha do Poço da Draga, Praia de Iracema
- 18/01, às 14h: "Plantas de casa vinte vinte", de Sy Gomes. No playground da Praça das Flores, Aldeota.
- 19/01, às 9h: "Gazela", de Aires. No Rodolfo Teófilo, atrás do Hospital Haroldo Jauçaba
- 20/01, às 8h30: "Via-trava", de Ellícia Maria. Na Avenida São Francisco, 2051, Planalto Ayrton Senna
- 25/01, às 10h: "Cacos", de Henrique Gonzaga. No Bom Jardim, no entorno do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ)