Grupos cearenses acenam para novas possibilidades a partir de experiências dramatúrgicas virtuais

Com a internet sendo a única ferramenta de produção e idealização de trabalhos na pandemia, artistas e coletivos dimensionam desafios e potencialidades de projetos gestados neste momento

Escrito por Roberta Souza e Diego Barbosa , verso@verdesmares.com.br
Legenda: Espetáculo “12 Pessoas com Raiva”, do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação
Foto: Tatiana Henrique

Dentre as inúmeras urgências provocadas pela pandemia do novo coronavírus, a necessidade de enxergar perspectivas em meio a incertezas é uma das que ganham mais fôlego a cada dia. No contexto cultural, não poderia ser diferente. O setor, inclusive, permanece sem previsão de retorno das atividades presenciais no Ceará e em todo o Brasil, o que reforça o movimento de seguir buscando alternativas para resistir.
 
A internet, nesse sentido, emerge como única ferramenta de produção e idealização de trabalhos – dos mais simples aos mais diferenciados. Um exemplo recente aconteceu na última segunda-feira (27), quando o perfil do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, no Instagram, fez publicações simulando um ataque hacker. Tratava-se, contudo, de uma performance do grupo teatral fortalezense Nóis de Teatro (que utilizou o codinome Monstro Marinho), com reflexões sobre questões histórico-sociais.
 
O interesse de artistas em possibilidades de criação com distintas tecnologias, entre elas o ambiente virtual, não é algo novo, porém. A constatação é de Francis Wilker, professor do curso de Teatro da Universidade Federal do Ceará – o curso, inclusive, celebra 10 anos de atuação com encontros virtuais até 21 de agosto, nas plataformas Google Meet, YouTube e Instagram.
 
Conforme as pesquisas do estudioso, levando em consideração as artes cênicas, é possível mapear muitos nomes que já tinham interesse por esses caminhos poéticos antes mesmo do período vigente.

“O que está diferente agora é que todos nós estamos sendo impelidos a olhar para essas plataformas porque se tornaram praticamente a única possibilidade de seguirmos criando num contexto de isolamento social. Mas vejo as artes da cena sempre interessadas nos avanços tecnológicos”, afirma, citando práticas como o radioteatro ou radio-drama, na década de 1920, e o teleteatro, na década de 1950, como exemplos.

 
Segundo ele, este nebuloso panorama oportunizou a observação de duas dinâmicas: de um lado, alguns profissionais não se veem obrigados a ter que oferecer uma resposta artística de imediato ao público; de outro, há os que se sentem convocados a criar agora, reverberando questões deste instante, inclusive por necessidades de sobrevivência, tentando produzir e encontrar as pessoas mediados pelas telas.
 
“Acho que as experiências de criação nas plataformas virtuais abrem um horizonte de muitas possibilidades. Não se trata de substituir o que conhecemos como teatro ou abandonar nossos traços de linguagem. Para mim, é uma ampliação dos espaços em que os artistas teatrais podem atuar e, nessa experimentação, vão descobrindo procedimentos de composição, alternativas de mobilizar o público. Tenho visto que os traços da linguagem de um artista ou grupo seguem presentes nas suas criações on-line”, complementa Francis.

Legenda: Experimento cênico “Expedição Planta Baixa” tece reflexões sobre relações no espaço de uma casa
Foto: Divulgação

 
Reflexões
 
O próprio docente, interessado em investigar as relações com o espaço urbano, criou com outros artistas – Renato Abê, Loreta Dialla e Jander Alcântara – o “Expedição Planta Baixa”, experimento cênico cujas apresentações de estreia aconteceram no começo de julho pelo YouTube, de forma gratuita. O trabalho elege como principal disparador poético a casa e as relações tecidas nesse espaço.
 
Ao mensurar os desafios, perdas e ganhos de uma produção virtual feito essa, o dramaturgo Renato Abê elenca a ausência física do público como algo que desloca, de cara, a relação que se estabelece entre artista e plateia.

“Esse ponto mexe com tudo que envolve a obra: da dramaturgia à direção, impactando diretamente na atuação. Nesse sentido, o primeiro desafio é buscar essa presentificação mesmo mediada por uma tela, o que é dificultado pela natureza do equipamento (seja celular, computador, TV), que é associada à noção de consumo mais rápido e dinâmico”, situa.

 
Esse sentimento de aceleração que as telas evocam aflora ainda mais, segundo ele, a reflexão sobre a perda do interesse do espectador e gera dúvidas sobre os tempos de amadurecimento de cada cena e diálogo. “Por outro lado, a experiência levanta novas texturas que foram bons trampolins da construção do ‘Expedição Planta Baixa’ e que passam pelas ferramentas que as tecnologias oferecem na hora de bagunçar percepções sobre determinado jogo cênico”.
 
Um exemplo que cita é o fato de terem mesclado, ao vivo, duas cenas simultâneas feitas nas casas dos performers. Uma atriz estava em Fortaleza e um ator em Sobral, mas a medição eletrônica foi capaz de construir virtualmente o encontro corpo a corpo. Ainda assim, é impossível não pensar no que se perde sem a possibilidade do autêntico olho no olho. 

Legenda: Em "Expedição Planta Baixa", foram mescladas, ao vivo, duas cenas simultâneas feitas nas casas dos performers
Foto: Divulgação

 
“Pela tela, não é fácil ter um retorno próximo da energia do público (seja riso, choro, tédio..). Além disso, a transmissão da obra traz para o jogo cênico novos elementos, como qualidade do equipamento que transmite, estabilidade ou não da internet, características do áudio, entre tantas outras variáveis. A precariedade, em sua potência e dificuldade, passa a ser personagem, mesmo nas transmissões cênicas mais equipadas, e tudo isso chega no público e pode afastar, aproximar, instigar”, avalia Renato.
 
Compromisso
 
Outro caso que se soma a esse cenário é o do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação, projeto gestado exatamente durante a quarentena. Abraçando um compromisso com as questões do agora, os membros da iniciativa afirmam não ter necessidade de definir o que estão fazendo. Desejam, sobretudo, unir pessoas dentro das possibilidades e gerar pensamentos.
 
De acordo com o ator, diretor e produtor Juracy de Oliveira, a iniciativa surgiu a partir de pesquisas sobre o aplicativo Zoom com três processos diferentes. “Percebemos que seria inteligente juntar tudo isso em uma coisa só. Essa é a premissa do Pandêmica. Nos intitulamos de aglomeração online, mas também somos uma plataforma de pessoas, grupos e ideias. Temos hoje quatro experiências em repertório, outras quatro em processo para agosto e setembro, e vários contatos de artistas querendo estabelecer outras parcerias”, diz.

Legenda: Espetáculo "Safe & Comfort", do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação
Foto: Guilherme Souza

 
O início de tudo aconteceu em maio, com “12 Pessoas com Raiva”, que reúne um elenco de doze atrizes e atores de diversas partes do País. Depois, veio “Discurso Sobre Nada”, experiência do grupo com a atriz Alda Pessoa, do Ceará, e Marcio Abreu, do Rio de Janeiro. A partir daí, foram mais duas estreias que se somaram ao repertório do Coletivo, “Live ou Roda de 3 Amigos” e “Safe&Comfort”. “Hoje, somos mais de 40 artistas de vários estados”.
 
Também no movimento de produção de um festival online de arte LGBTQI+ preta, previsto para setembro, o grupo ainda analisa como estão se dando as vivências cênicas no meio digital. Juracy de Oliveira pensa que analisar perdas e ganhos nessa situação não cabe, visto que estão descobrindo uma nova linguagem, que não encerra nenhuma outra.
 
“O teatro que fazemos ainda existe, se mantém e já passou por crises e pestes piores do que esta. Sobreviveremos maiores. Esta nova maneira de comunicação que nós, artistas, estamos nos aventurando chega como mais uma possibilidade de expressão. Descobrimos que também é um lugar a ser ocupado. Pensando assim, eu só consigo ver ganhos”.

 
Hibridização
 
Primando pela hibridização de linguagens nos trabalhos, o grupo Núcleo de Estudos da Performance integra esse panorama de experiências dramatúrgicas virtuais com “A história é uma profetisa com os olhos para trás”. 
 
A primeira temporada do espetáculo – construído a partir de discussões sobre o capitalismo, embasado por leituras da obra de pensadores como Ailton Krenak, Eduardo Galeano e Félix Guattari – encerra as apresentações nesta quinta (30) e sexta (31), às 20h, com possibilidade de sessão extra no sábado. Uma segunda temporada deve acontecer em setembro.

Legenda: Experiência “A história é uma profetisa com os olhos para trás”, do Núcleo de Estudos da Performance
Foto: Divulgação

 
Contando com várias plataformas – WhatsApp, Facebook, Instagram, e-mail e Zoom – a montagem tem o público como co-partícipe a partir de uma dramaturgia de jogo. Conforme o artista e pesquisador Eduardo Bruno, o grupo já tinha feito algumas experimentações de vídeo-arte e relações com o digital, mas esse é o primeiro projeto com uma performatividade completamente online, surgido a partir do contexto de pandemia. 
 
“O que diferencia esse dos nossos outros trabalhos é que, quando se tem apenas a opção de realizar em apenas um suporte, você se pergunta ‘mesmo nessa repetição de formato, como produzir gerando uma diferença?’, afirma, situando o caráter inovador da empreitada.  

Ele também destaca não conseguir mensurar que efeitos essa experiência está trazendo para o público e para o grupo, evidenciando a necessidade de vivenciar o momento a fim de tentar levantar algumas hipóteses para o futuro da dramaturgia cênica no meio digital. “Acho que vai precisar de um tempo para a história da performance e da arte contemporânea compreender que sintomas, características e paradigmas foram construídos em decorrência desse instante de pandemia”, avalia.
 
“Mas certamente o que estamos passando vai afetar o campo da arte. Isso vai fazer parte do repertório de pensamento dos artistas? Vai. Do nosso? Também. Mas, não temos como garantir se, por exemplo, logo em seguida, com o fim da pandemia, essas práticas se manterão com tanta força, até talvez por uma necessidade de retomar alguns processos que foram deixados. Não acho, porém, que elas serão esquecidas”, conclui.

Serviço
Espetáculo “A história é uma profetisa com os olhos para trás”, do grupo Núcleo de Estudos da Performance
Nesta quinta (30) e sexta-feira (31), às 20h. Vagas limitadas. Ingressos: R$ 10. Informações: @nucleo_performance

Acompanhe os trabalhos dos outros grupos em @pandemicacoletivo, @quitandasolucoes@tupaufc e @teatroufc

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