Fiscais de internet: ‘Apareço fazendo exercício ou comendo salada, chega um pra falar besteira’

Julgamentos e opiniões na internet fazem parte da rotina de quem trabalha com redes sociais ou é figura pública

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: Carol trabalha como influenciadora desde 2011 e sofre com comentários
Foto: Arquivo pessoal

Dar e receber pitaco. Soltar uma opinião disfarçada de crítica. Parece que em toda ação sempre há uma pessoa para ‘fiscalizar’. Quem nunca ouviu ou mesmo participou das rodas de fofoca da vizinhança? Se essa rede social foi uma grande responsável pelos burburinhos, hoje as virtuais deram ainda mais voz para comentários como esses.  

A influenciadora digital Carol Zacarias, por exemplo, trabalha com internet desde 2011 e ouve comentários quase que diários sobre o que faz ou deixa de fazer, especialmente com relação à aparência física. Carol é uma mulher gorda e bem resolvida com o próprio corpo, mas conta que não pode comer uma salada que chegam os ‘fiscais de internet’.  

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“Costumo falar que me amo da forma que sou, mas sempre que apareço fazendo exercício ou comendo salada chega um pra falar besteira: ‘mas não amava o corpo?’ É como se querer ter hábitos saudáveis fosse obrigatoriamente coisa de magro ou de quem tá buscando a magreza. Eu só amo salada desde pequena e quero ter a liberdade de poder comer sem comentários”. 
Carol Zacarias
influenciadora digital

Para Carol, a internet deu liberdade para que as pessoas fiscalizem a vida de quem nem conhece. “Eu mal consigo fiscalizar a minha vida e ainda tem gente que fiscaliza a dos outros e de muitos! Não costumo dar mais atenção a esse povo, mas vez ou outra aparece uns bem sem noção e eu tento ignorar e seguir a vida”, conta. 

Legenda: A influencer afirma ser muito bem resolvida com o próprio corpo, mas quem comer sem ter que ouvir comentários
Foto: Arquivo pessoal

‘Quem é a mãe? Sou eu’ 

Foi checando a certidão de nascimento da filha Manuela que a influenciadora digital Mila Costa anunciou para o mundo que só a mãe pode dar pitaco no próprio maternar. Desde que virou mãe, Mila relata receber diversos comentários sobre o modo de criação da pequena, seja o modo de sentar ou mesmo a sujeira que a introdução alimentar causa.  

No vídeo que viralizou nas redes sociais, a colunista do Diário do Nordeste brinca e diz: “hoje, sem eu ter perguntado absolutamente nada já deram 10 pitacos na minha maternidade, por isso eu trouxe a certidão de nascimento dela. Vamo ver quem é a mãe? Sou eu!”.  

“As pessoas acham que por você estar expondo sua vida, as portas da nossa casa estejam abertas, mas não é porque a porta tá aberta você pode fazer tudo. Não é porque tem um quadro que ela não gostou que ela pode dizer que quer mudar de lugar”, pontua.  

Nos últimos dois anos, quando começou a ter as redes sociais como um trabalho, Mila viu essas opiniões aumentarem e considera que algumas são bem-vindas, mas é preciso ter bom senso.  

“É interessante filtrar pra quem isso vai e o que é emitido. Essa opinião muitas vezes vem disfarçada de outras coisas, a pessoa quer jogar uma frustração dela, acaba dando palpite demais sem conhecer a verdade. A opinião é dada a partir de um recorte, não mostro tudo da minha vida”. 
Mila Costa
influenciadora digital

Menos exposição  

De acordo com Mila, comentários como esses acabam até afetando o trabalho, já que há dias em que a vontade é de não se expor. “Todo dia tenho vontade de fugir igual a Ana Paulo Arósio e me isolar”, brinca.  

“A gente sabe que, quando abre a porta, deixa a pessoa entrar, mas o problema é que não existe limite pra algumas pessoas. Às vezes não fazem nem por mal, mas se sentem à vontade pra opinar, porque eu mostro muito da minha vida, da minha família. Porém, existe um milhão de coisas por trás do que eu mostro e as pessoas não sabem”, destaca. 

A influenciadora considera, portanto, que terapia é fundamental para quem trabalha na internet para criar um suporte emocional e conseguir lidar com o que é desagradável. “Tem coisa que eu relevo, tem aquelas que deixam uma dorzinha, mas eu trabalho na terapia pra que isso me atinja cada vez menos”.  

Legenda: Após virar mãe, Mila ouve muitos pitacos sobre a maternidade
Foto: Arquivo pessoal

Carol diz sentir o mesmo e criou uma estratégia para quando vai fazer alguma publicação. Primeiro, analisa a responsabilidade social; segundo, evita certos conteúdos que possam cair no cansaço ou nos termos proibidos pelos Instagram; terceiro, para evitar os ‘fiscais de tudo’.  

Por isso, além de terapia, a também designer de moda conta que formou uma rede de apoio de amigos para desabafar. “Eles me escutam diariamente e sempre me dão força pra continuar. Na maioria das vezes, eu ignoro os comentários, mas quando percebo que há certa abertura da pessoa, eu ainda converso”.  

Julgamento e a internet  

A psicóloga e doutoranda em Saúde Pública pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), Maria Camila Moura, explica que alguns pensamentos são automáticos, vêm de modo imediato e sempre foi algo presente, mas na internet os limites do que é público e do que é privado ainda não são bem definidos.  

“O julgamento é até uma questão de sobrevivência, é meio que sem consciência, a questão é como esse julgamento é emitido e colocado juízo de valor em cima da vida de outra pessoa, sem me preocupar em como isso vai reverberar na vida do outro”. 
Maria Camila Moura
psicóloga

Além disso, a psicóloga pondera que, em uma conversa que acontece pessoalmente, é possível perceber de forma mais nítida se aquilo é desagradável, ao contrário do que acontece em uma interação virtual. Conforme, Maria Camila esses julgamentos também dizem mais a respeito de si.  

“Quando Pedro fala de Paulo, sei mais sobre Pedro que Paulo. Quando a pessoa que não te conhece vai lá e descarrega esse desafeto em cima de você, ela tá falando de si, do ódio que tem, mas é preciso lembrar também que nós também julgamos, mas é preciso não ultrapassar a fronteira do respeito. É muito pueril você achar que, se você julga, não será julgado”, diz.  

Sincericídio x sinceridade 

A psicóloga acrescenta a necessidade de diferenciar sinceridade e sincericídio, já que algumas pessoas usam a desculpa de estar falando a verdade para fazer certos comentários. “A sinceridade visa uma transformação de algum modo, o sincericídio é um homicídio porque as minhas palavras não provocam transformação e a pessoa que comete de forma reverberada comete a própria morte social”.  

Por isso, é importante que, quem sofra com essas opiniões, não alimente ou reproduza esse comportamento, mas ter a coragem de dizer que aquilo não foi legal e não é preciso fazer parte desse ‘tribunal de julgamento’.  

Uma estratégia que pode auxiliar, conforme Maria Camila, são as três peneiras de Sócrates. “Quando for falar algo, pense primeiro se aquilo é verdade, depois se é pra procurar o bem ou o mal, e, por último, se há a necessidade de falar aquilo. Com essa peneira, é possível ter mais bom senso”.  

 

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