“Edits” e “acervos”: vídeos curtos nas redes sociais estimulam memória de cinema e novelas nacionais

Viralização de vídeos curtos que destacam trechos de filmes, novelas e outras obras do audiovisual brasileiro têm se destacado em diferentes plataformas

Escrito por João Gabriel Tréz , joao.gabriel@svm.com.br
Edit do filme 'Bingo: O Rei das Manhãs' (2017), dirigido por Daniel Rezende e protagonizado por Vladimir Brichta, foi compartilhado no Twitter em 30 de dezembro e acumula mais de 15 milhões de visualizações e muitos comentários de quem foi assistir o longa após ver o vídeo curto de divulgação
Legenda: Edit do filme 'Bingo: O Rei das Manhãs' (2017), dirigido por Daniel Rezende e protagonizado por Vladimir Brichta, foi compartilhado no Twitter em 30 de dezembro e acumula mais de 15 milhões de visualizações e muitos comentários de quem foi assistir o longa após ver o vídeo curto de divulgação
Foto: Arte: Louise Dutra

Em poucos segundos, a junção de trechos de cenas de um filme nacional dos anos 1980 e acordes de uma música que viralizou recentemente cumpre plenamente uma função importante na lógica das redes sociais: chamar atenção. Seja em contas que reúnem os chamados “edits” ou nas de “acervos”, vídeos curtos compartilhados nas plataformas têm sido ferramentas importantes para estimular o acesso à memória do audiovisual brasileiro.

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A descrição que abre este texto se refere a um edit produzido pela página Scfimoon — presente no Twitter, no TikTok e no Instagram —, criada em 2021 por Lu, editor e animador 2D freelancer paraense de 19 anos. 

No vídeo citado, ele juntou cenas do filme “Eu Sei Que Vou Te Amar” (1986), dirigido por Arnaldo Jabor e protagonizado por Fernanda Torres, e acordes da música “Teia” (2021), da rapper Flora Mattos.

@scfimoon Eu Sei Que Vou Te Amar (1986) #cinemabrasileiro #fernandatorres ♬ Diz uma coisa bonita pra mim... - lu

Um destaque recente em termos de repercussão para a página foi o edit do longa “Bingo: O Rei das Manhãs” (2017), dirigido por Daniel Rezende e protagonizado por Vladimir Brichta. Compartilhado no Twitter em 30 de dezembro, o vídeo acumula, até a publicação desta matéria, 15,7 milhões de visualizações.

A página surgiu, explica o administrador ao Verso, como “hobby” a partir de uma motivação específica: as próprias descobertas do cinema nacional. “Sempre ficava indignado porque os filmes eram pouco comentados, minha vontade era de chegar em mais gente para conhecer mais do nosso cinema, assim como eu estava conhecendo”, compartilha.

Outra página dedicada à produção audiovisual nacional é a Cinema Brasileiro Out of Context, administrada por uma pessoa de 24 anos, moradora de São Paulo e designer gráfica, que preferiu não se identificar. Neste texto, ela será referida como @outcinemabr.

Como explica @outcinemabr por e-mail, a página funciona “seguindo um tipo de linguagem de páginas de ‘acervo’ ou as próprias ‘out of context’”. Esse tipo de conta se baseia no compartilhamento de diversos trechos curtos e inteiros — ou seja, sem adição de música ou edição — de vídeos ligados a um tema específico. 

“A criação da página veio justamente por eu não encontrar muita coisa sobre o cinema brasileiro mais antigo em outros perfis do Twitter, uma coisa que felizmente parece estar crescendo agora”, contextualiza @outcinemabr. 

A maioria dos conteúdos compartilhados na conta é de pornochanchadas, gênero cinematográfico marcadamente brasileiro. Na conta, @outcinemabr destaca a intenção de apresentar cinema nacional “a um novo público e despertar curiosidade sobre esse universo tão peculiar”. 

Passado com “embalagem do presente”

O fenômeno de “buscar o passado”, destaca Naiana Rodrigues — professora de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) —, é “característico da nossa cultura”. A virada no caso desses vídeos curtos que viralizam é a forma de revisita.

“É uma cultura do passado que tem que vir na embalagem do presente, esse é o diferencial. Ela tem que vir na forma de um meme, de um vídeo ao melhor estilo Tik Tok, com cenas cuja construção imagética e sonora tem mais aderência ao estilo de produções de vídeos comuns nessas redes”, observa a pesquisadora.

Lu define o processo de produção de edits como “natural”. “Dá pra se fazer edit de qualquer coisa. Tenho edit até de uma galinha que aparece em 'Cidade de Deus' (2002)”, diz. “Geralmente edito filmes que eu acabo de ter visto. Sobre as cenas que uso, é a minha parte favorita, pois adoro brincar com a montagem”, destaca.

“Sempre tento fazer uma montagem que não seja óbvia, que seja chamativa e que dê curiosidade sobre o filme! Sobre as músicas usadas, muitas delas são gosto musical pessoal, outras uso de trends que estão em alta no Tik Tok”, segue o administrador.

Formatos “compartilháveis”

O formato em vídeo, ressalta Naiana, é em essência “compartilhável”. “São pequenos excertos de obras maiores divulgados fora do contexto original e ressignificados quando adentram a lógica de compartilhamento e visibilidade das redes sociais. Eles têm mais chance de viralizar em comparação a outros porque são audiovisuais, conteúdo privilegiado por essas plataformas”, aponta.

Além do “domínio da linguagem” das plataformas, a professora destaca ainda que os administradores de contas do tipo têm “senso de oportunidade de identificar temas e discursos do tempo presente” nas obras antigas, reforçando a ligação com questões contemporâneas.

Apesar de afirmar que os trechos escolhidos para a própria página "geralmente são aleatórios", @outcinemabr aponta que “gosta” de traçar paralelos encontrados nos filmes antigos com temas correntes. “Muitas situações nos filmes brasileiros de 40, 50 anos atrás ainda seguem atuais, seja pelo humor ou pela crítica social”, reforça.

“Imagino que compartilhar isso como uma forma de ‘meme’ talvez consiga quebrar um certo receio que existe para assistir a esses filmes”, avança. A fala ecoa uma ligação proposta por Naiana dos formatos de vídeos curtos com a lógica dos memes.

“Aquelas cenas, diálogos ou trilha sonora colaboram para a construção de um segundo sentido, o que é muito o efeito do meme: deslocar algo do lugar de origem e ressignificá-lo”, relaciona a professora. 

Edits e acervos pela memória do audiovisual

Apesar do sucesso nas redes sociais, parte significativa das obras destacadas em páginas de edits ou acervos são de difícil acesso atualmente. “Recebo frequentemente perguntas do tipo ‘como faço pra assistir esses tipos de filmes?’, porque realmente existe essa dificuldade de encontrá-los”, compartilha @outcinemabr.

Alguns filmes estão fora dos catálogos das plataformas e costumam circular por links não oficiais seja de download ou de YouTube, inclusive em perfis do nicho cinéfilo nessas redes. Outros, disponíveis em streamings, aproveitam a visibilidade adquiridas nas contas para serem “lembrados” em meio aos volumosos catálogos.

“(As páginas podem) dar a conhecer para esse público nichado algumas produções que estão escondidas nos streamings, que passaram em poucas salas de cinema”, observa a professora, podendo se tornar "referência, catálogo”. Na definição precisa de @outcinemabr, “a página consegue ao menos dizer que esses filmes existem”.

Do edit ao filme?

Tanto na Cinema Brasileiro Out of Context quanto na Scfimoon, o público é jovem: na primeira, a maior parcela é de homens entre 20 e 30 anos, enquanto na segunda a faixa vai dos 18 aos 34 anos, com maioria de público feminino.

As métricas de likes, compartilhamentos e seguidores são consideráveis, mas é difícil definir se essa repercussão nas redes se efetiva no consumo das obras originais. Nessa busca, a reportagem pediu à HBO Max informações acerca da audiência recente de “Bingo: O Rei das Manhãs”, disponível na plataforma. A assessoria informou, porém, que a Warner Bros. Discovery não divulga dados do tipo.

Já em visita à página do filme no Letterboxd, rede social popular entre o público cinéfilo, não foi possível aferir a quantidade exata de quantos usuários que marcaram a obra como “vista” nos últimos dias. No entanto, dezenas de resenhas recentes de “Bingo” citaram diretamente o edit da Scfimoon.

Páginas de 'edits' criam vídeos curtos e estilizados com cenas de obras nacionais que não são lançamento; de 2017, o filme 'Bingo - O Rei das Manhãs' teve um 'edit' que viralizou recentemente no Twitter
Legenda: Páginas de 'edits' criam vídeos curtos e estilizados com cenas de obras nacionais que não são lançamento; de 2017, o filme 'Bingo - O Rei das Manhãs' teve um 'edit' que viralizou recentemente no Twitter
Foto: João Naves / divulgação

“Se não fosse por um edit viral, eu confesso que raramente daria atenção para essa obra”, “confesso que não sabia da existência desse filme até o edit que eu vi no twitter” e “sem esse ‘empurrão’ que um simples edit deu, eu jamais teria assistido essa grandiosidade de filme” são exemplos das mensagens deixadas na rede cinéfila.

Na avaliação de Naiana, a hipótese é de que os conteúdos das páginas podem “atingir alguns sujeitos que vão ter mais predisposição a consumir um conteúdo mais longo e que vão buscar a obra original, mas não visualizo esse movimento de forma massiva”.

Para os próprios administradores, o impacto das páginas tem de fato um peso mais simbólico, inclusive em resposta à pecha histórica de "falta de qualidade" do audiovisual brasileiro. “Imagino que não seja desinteresse com o cinema brasileiro, mas sim um desconhecimento das obras, temáticas, diretores. Apresentar e valorizar o nosso cinema numa linguagem mais moderna na internet pode ajudar a desconstruir esse senso comum negativo”, aponta @outcinemabr.

“Perfis como o meu ajudam muito a virar uma chave na cabeça pra perceber que temos muitíssima coisa boa no nosso cinema! Assim como pode ajudar a colocar essas obras em alta, mas não é isso que vai salvar o cinema brasileiro, como tem muitas pessoas dizendo... O que pode salvar são as cotas de tela”, defende Lu.

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